segunda-feira, 24 de julho de 2023

Humor popular

 

A relação do povo simples com os padres sempre foi uma relação dual, de respeito e escárnio. Respeito/reverência porque eram os representantes de Deus, escárnio/crítica pois, com muitas exceções, que sempre existiram, o clero integrava o pequeno grupo (2%) dos privilegiados (clero e nobreza), a elite que detinha o poder político, económico, social, cultural e, no caso do clero, também religioso.

Isso está presente na literatura popular como a que integra a coletânea publicada na Etnografia de S. Vicente da Beira, pela Isabel Teodoro.

Das recolhas de Leite de Vasconcelos temos os “Dez mandamentos dos padres”:

1.     Amar a Deus por dinheiro.

2.     Enganar todo o mundo.

3.     Comer boa carne de carneiro.

4.     Jejuar depois de farto.

5.     Beber do branco e do tinto.

6.     Beijar as meninas bonitas todas a eito.

7.     Dar a bula por empréstimo.

8.     …nem da cabeça, nem do rabo.

9.     Dormir quando tem sono.

10.Não cobiçar as coisas alheias, nem precisar dos outros, depois das barrigas cheias.

Estes 10 mandamentos encerram-se em dois:

Deus dê aos padres, o que deu aos bois.

 

E que dizer do que o povo imaginava que os padres pensavam nos funerais?

Se é rico e tem dinheiro,

Faz-se-lhe o ofício inteiro;

Se é pobre e não tem nada,

Faz-se-lhe uma trapalhada.

Passo lento, passo lento,

Que este é rico e paga a tempo.

Enrola, enrola,

Deita o defunto à cova.

Se é viúva fica bem,

Não é para mais ninguém.

 

Quanto a doações/ofertas/pagamentos...

Se é para obras de castanho,

Venha a nós o vosso ganho.

E por alma do defunto,

Que venha mais um presunto.

 

O meu pai (António Teodoro) era um Teodoro, e isto só por si implica(va) ser uma pessoa muito religiosa e respeitadora das convenções sociais. Mas também era um Jerónimo, gente com açougues e comércio de gados, habituada ao contacto com outras terras e diversas gentes.

Quando os filhos eram pequenos, a nossa mãe foi operada em Castelo Branco e ele teve de ser pai e mãe por uns dias e isso implicava preocupar-se em transmitir-nos a religião. Rezava connosco todos os dias na cama, antes de adormecermos, bastante mais do que a minha mãe nos impunha! Mas fora desses dias, a religião era tarefa da minha mãe. Por isso ele, esporadicamente, aventurava-se em brincadeiras que refletiam o ancestral humor do povo com todas as coisas, mesmo com as de Deus.

Experimentem dizer esta lengalenga fazendo o sinal da cruz na testa, na boca, no peito e finalmente abrangendo todo esse espaço:

Pelo sinal,

Do Ingarnal.

Comi toucinho,

Fez-me mal.

Comi farinheira,

Fez-me caganeira.

Alcatruz,

Ámen Jesus.

 

Ou este sermão que deve ser dito imitando o padre Leal das Minas da Panasqueira que vinha cá pregar na Semana Santa. Não sei como é que a minha irmã o conseguiu, pois ele raramente o dizia.

Prego o meu sermão,

Carriça dum cão.

Sr. João Coelho,

Com seu barrete vermelho,

Sua espada de cana na mão,

Pra matar a garrana,

A garrana deu um berro,

Toda a gente atormentou,

Só uma velhinha ficou,

Embrulhada nuns farrapinhos,

Atolada num chocalho de merda até ao pescoço.

Meus irmãos,

Cortai os dedos e olhai prás mãos!

 

Parafraseando Picasso, ao contemplar as pinturas rupestres da gruta de Lascaux: o Gil Vicente, o Bocage e o Herman José não inventaram nada.

 

José Teodoro Prata

5 comentários:

Anônimo disse...

Ainda não tenho esse livro. Tenho de ver onde o posso adquirir. O posto dos correios de SVB tem lá o livro?

José Teodoro Prata disse...

O livro está à venda apenas na Biblioteca Municial, em Castelo Branco. Talvez venha a estar em São Vicente, mas por enquanto, não.

José Teodoro Prata disse...

Essas orações/lengalengas do nosso pai foram registadas era eu ainda muito nova, pois mais tarde já não as contava.
A religião fazia parte da vida das pessoas, talvez por isso mesmo fosse ainda mais apetecível poder brincar (e dizer umas verdades) com assunto tão sério... O proibidop é mais apetecido.

Como disse Giacometti, o sentido de humor varia ao longo dos tempos, o que não muda é a vontade de brincar com o proibido, com os poderes intituídos. Agora é o Ricardo Araújo Pereira, que "goza com quem trabalha", não poupando os poderosos, juízes ou políticos.

Maria Isabel Teodoro

M. L. Ferreira disse...

Que sorte a nossa que a Isabel Teodoro tenha ganhado gosto por estes aspetos da cultura da nossa terra e se tenha aventurado numa pesquisa tão exaustiva e variada como a que nos apresentou neste livro.
Lê-se quase sem pestanejar, com o prazer das viagens (neste caso ao passado), porque as memórias dela, ou das pessoas que lhas contaram, são quase as mesmas de todos nós.
Ficamos à espera do próximo livro…


Anônimo disse...

Já tentei vários comentários, mas, como se sabe, o meu telemóvel é da época dos Flintstones. A coisa torna-se difícil... e isso obriga-me a ser pouco mais que telegráfico.
Dou apenas dois exemplos com algum humor popular da literatura portuguesa, sobre a condição social do clero (cito de memória).
Num deles, "Manhã Submersa" de Vergílio Ferreira, o irmão mais velho diz a António Lopes, protagonista do livro, um seminarista, quando ele vai de férias à aldeia:
"Que raio de vida havias de escolher; nem uma mulher podes arranjar para tratar de ti!"
No "Malhadinhas" ( e não só), Aquilino brinca várias vezes com a condição de padre e dos arranjinhos deles com as paroquianas (ele, que creio que foi filho de padre), dizendo: "Danados e com unhas para a vida não há como filhos de padre!"
E quase sempre manifesta o mesmo autor uma compreensível complacência para com estes padres, dada a sua difícil situação de celibatários. Tudo, é claro, com imenso humor, mas sem esquecer uma boa dose de escárnio. Muito bom!
Parece-me que, afinal, não fui lá muito telegráfico...
Abraços, hã!
J. Barroso