Terão
muito de fantasia as memórias dos dias felizes da infância, quando acompanhava
a minha mãe à Ribeira para a lavagem da roupa da semana (na verdade, não seriam
dias fáceis, principalmente se era inverno).
Chegávamos
cedo, pela fresca, para apanhar a água mais funda e a pedra maior, mas, às
vezes, os melhores lugares já tinham em cima alguma peça de roupa deixada de
véspera ou de madrugada, sinal de que o lugar estava guardado. Normalmente esse
sinal era respeitado, se não, podia ser pretexto para grandes discussões e
zangas entre as mulheres.
E
não tardava que as margens, ao longo da Ribeira, se enchessem de lavadeiras, de
pés enfiados na água ou ajoelhadas em pedras que cobriam com alguma peça de
roupa grossa para tornar menos penosas as horas passadas naquela posição, a
ensaboar, esfregar, passar por água, ensaboar de novo… até que a relva, à roda,
se enchia de roupa a corar. Enquanto esperavam, as conversas fluíam sobre as
coisas da vida, algumas vezes da vida alheia, que as delas pouco tinham para
contar…
Nós,
as crianças, divertíamo-nos a chapinhar nos açudes, a fingir os primeiros
gestos de nadar ou a perseguir libelinhas e alfaiates, que quase sempre corriam
mais que nós; os rapazes pescavam, um anzol improvisado na ponta de uma linha
presa a uma cana. Naqueles dias, de combinação arregaçada e água pouco acima
dos tornozelos, via-me na praia da Nazaré ou da Figueira da Foz, coisa de
ricos, de que mal tinha ouvido falar, mas imaginava tal e qual a nossa Ribeira.
Passaram
alguns anos, até que em 1966 começaram as obras para a construção da barragem
do Pisco, no leito da Ribeira. Foi um acontecimento importante para a nossa
terra. Nunca tínhamos visto tantas máquinas e tanta gente junta a trabalhar. A
Vila ficou diferente, cheia de pessoas vindas de fora, principalmente do
Alentejo. No início todos olhávamos esses estranhos com desconfiança,
principalmente porque não iam à missa aos domingos e até nos diziam que era
perigoso falar com eles porque eram comunistas; mas a pouco e pouco fomos começando
a apreciar outros aspetos da sua maneira de ser, sobretudo a simpatia e facilidade
em relacionar-se connosco, que também lhes éramos estranhos. O contacto com
pessoas diferentes foi importante para alguma abertura nas mentalidades, ainda
muito fechadas, que tínhamos na altura.
Três
anos depois de terem começado as obras, em março de 1969, a Barragem foi
oficialmente inaugurada pelo Governador Civil de Castelo Branco, mas, para nós,
o dia mais importante foi só em setembro, quando cá veio o Presidente do
Conselho, Marcelo Caetano. Nesse dia fomos todos, para lá da Fábrica, receber o
Senhor Presidente, e era um mar de gente por aquela estrada fora. Já o conhecíamos
do retrato na parede da escola ou das Conversas em Família, mas vê-lo em carne
e osso, fora da televisão, era outra coisa e fazia da nossa terra o centro do
mundo.
Quando
a festa acabou e Castelo Branco e outras povoações aqui à roda começaram a
beber a água da Barragem, saiu uma lei que proibia toda a gente de lavar roupa
na Ribeira. Sem alternativa, tanto as mulheres da Vila como as do Casal da Fraga
não tiveram outro remédio que desafiar a lei e as ordens do guarda-rios, que aparecia
quando menos se esperava, fardado a rigor, a impor autoridade. Ao princípio só
assentava o nome das mulheres num papel, mas avisava: «Para a outra vez, se a
apanho, passo-lhe a multa. Olhe que são oitenta mil e quinhentos!». «Ó senhê Manel,
onde é que uma pobre como eu, que nem água tem em casa, vai lavar a roupa de
tanto filho?», era a questão de muitas. E o senhor Manuel, o guarda-rios, ia
fazendo “vista grossa”.
Mas
quando a Maria da Silva e a Celeste Pique foram multadas e levadas a tribunal,
enfrentaram o juiz com a coragem de quem tem a razão do seu lado. A Mena, filha
da Maria da Silva, diz que ainda se lembra de ver mãe, sentada no tribunal a
reclamar: «Se queriam beber a nossa água, tivessem feito a barragem lá mais
para cima. A Ribeira é nossa e é lá que havemos de continuar a lavar, que não
temos outro sítio!»
Revoltadas
com tanta injustiça, as mulheres resolveram ir a Castelo Branco protestar. A
Luz “da Esperança” ainda se lembra: «Juntámo-nos todas e alugámos um autocarro,
tudo pago à nossa conta, e fomos protestar em frente do Governo Civil e da
Câmara. Quem organizou a manifestação e foi falar com o presidente foi o Zé
Eletricista, que sabia falar melhor.» O que ele terá dito já ninguém sabe
dizer, mas a verdade é que as multas foram retiradas e o processo não seguiu
para a frente.
Entretanto
a Junta de Freguesia mandou fazer um lavadouro comunitário no Quintalinho, mas deixou
as mulheres do Casal sem alternativa à Ribeira. Na Vila, a solução também não
foi bem aceite por ninguém. Habituadas a lavar na água a correr, as mulheres
não gostaram daquela modernice: a roupa não ficava tão bem lavada nem o cheiro
era o mesmo como quando a lavavam na água limpinha e fresca que corria da
Senhora da Orada. Segundo se dizia, havia até quem tivesse visto piolhos por
cima da água.
E
durante anos, continuaram a ver-se mulheres, de bacia à cabeça, a subir e a
descer os caminhos dos dois lados da Ribeira. A pouco e pouco, com os tanques
de cimento e depois as máquinas de lavar roupa em cada casa, essa visão foi
desaparecendo completamente. Hoje é tudo mais cómodo, mas ainda há quem diga
que não é a mesma coisa…
Maria Libânia Ferreira
2 comentários:
Tendemos a dizer mal dos tempos presentes, mas o passado foi bem mais "imperfeito": projetou-se a barragem, mas não se planearam medidas para resolver o problema das lavadeiras e muito menos o do azinagre dos lagares, já aqui o afirmei. Os lavadouros junto ao forno foram construídos graças a esta polémica e à ida de uma camioneta cheia de gente a Castelo Branco.
Claro que os jornais locais nada referem sobre o assunto. A censura não permitia a publicação de notícias que revelassem o desrespeito dos poderes pelas populações.
A propósito dos preconceitos iniciais relativamente às famílias alentejanas que vieram para São Vicente na altura da construção da barragem, lembro-me de um acontecimento que me marcou para a vida: teria os meus doze ou treze anos, andava na telescola, e um dia, no fim das aulas, a Dona Teresinha, monitora daquela última aula, disse-me que não saísse da sala porque precisavam falar comigo. Intrigada, fiquei à espera. Vejo depois entrar a dona Natália e o Senhor Vigário, que se sentam à secretária, e eu em frente, de pé (resquícios da Inquisição?).
Alguém lhes tinha ido dizer que me tinham visto a falar com um desses alentejanos à porta do café da Ti Janja. Que não era bonito, disseram-me, com argumentos que eu não entendia nem aceitava. Principalmente vindos de pessoas que eu admirava tanto. Senti-me tão humilhada e injustiçada, que acho que a partir desse dia resolvi que, quando fosse grande, era eu quem decidia com quem podia ou não falar. Com uma ou outra vacilação, tenho tentado cumprir.
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