segunda-feira, 15 de julho de 2024

A taberna da Amália

 É o lugar mais conhecido do Casal (quando mo perguntam e digo que moro em frente da taberna da Amália, ficam logo a saber onde é a minha casa), mas a fama já vem do tempo do pai, quando ainda era a do Marcelino, com outro ar e outra freguesia.

Atualmente é ponto de encontro, quase só de mulheres, para um café e dois dedos de conversa; nas tardes de verão há quem se demore na esplanada a beber um cai-bem, refresco feito com uma mistura de refrigerante gasoso e xarope de groselha, receita caseira. Mas isto são coisas dos tempos modernos, que, há pouco mais de cinquenta anos, nenhuma mulher se atrevia a entrar na taberna, mesmo que fosse para ir chamar o homem, esquecido a matar a sede depois de uma tarde de domingo a jogar à malha. Por isso mandavam os filhos, se já se fazia tarde para a ceia, que às vezes também eram encorridos para casa, apenas pelo apontar de um dedo e o olhar esbugalhados de quem quer afirmar a autoridade do chefe da família. Eles iam ficando sempre mais um pouco…  

Mas havia o Ti Miguel Jerolme, um andarilho toda a vida, sempre de um lado para ao outro à procura das melhores rezes para criar ou vender a quem lhas rogasse nos mercados e nos talhos. Era uma paz d’alma, amigo de toda a gente; também do Ti Marcelino, quase da mesma criação.

Quando deixou de andar por lá, no negócio do gado, era raro o dia em que não aparecesse no Casal, quem sabe se num chamamento do coração ao ninho onde se criou, ali a dois passos, e ficava até se fazer noite, entremeando a conversa com mais um copinho. Vendo-o magrito, não fosse o vinho cair-lhe na fraqueza, a Tia Trindade oferecia-lhe muitas vezes uma bucha, quase sempre um bocado de pão com uma mancheia de azeitonas ou uma talhada de queijo, e ele não dizia que não.   

Quando começava a passar da hora, ia-lhe dizendo: «É melhor ir andando, Ti Meguel, que se faz tarde e a sua mulher já deve estar ralada…». Mas ele nunca tinha pressa de abalar: «Já vou…», e ia-se deixando ficar, sentado num dos bancos corridos encostados à parede. Até que, já noite escura, aparecia a Tia Laurentina com a lanterna na mão, e parecia ele que via Deus: levantava-se logo, com a alegria de uma criança confiante na mãe e, com o equilíbrio possível, caminhava atrás dela, pela vereda que os levava até casa, no outro lado do ribeiro. E era assim, muitos dias…

Após a morte da Tia Laurentina, foi a Chão, a última das filhas em casa, que, com a mesma dedicação e amor da mulher, lhe serviu de estrela, alumiando-lhe as noites escuras no regresso, desde o Casal da Fraga da sua infância, até ao Casalito onde se tinham criado os dez filhos que Deus lhes deu.

 O Casal do Baraçal, já tão diferente, visto do Casal da Fraga (apenas as casas em primeiro plano, ao fundo é já a Devesa)

Nota: O senhor Miguel Jerónimo nasceu no Casal da Fraga, em 1905, numa casa duma travessa da rua de Santa Bárbara, uma das mais antigas do Casal, que ainda é habitada. Era filho de António Jerónimo Lopes, já aqui nascido, e de Maria Josefa, natural dos Pereiros. Teve oito irmãos. À exceção de uma irmã, todos se criaram, casaram e terão tido filhos. Do casamento com a senhora Laurentina Hipólito teve dez filhos, todos criados até à idade adulta, e só o Padre Zé e a Conceição (Chão) não deixam descendência. Será, por isso, uma das famílias com mais parentes em São Vicente. Faleceu em 1 de junho de 1981, poucos anos depois da mulher.

ML Ferreira

3 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Gosto de histórias com gente dentro, são as minhas preferidas.

M. L. Ferreira disse...

Na descendência do senhor Miguel e Laurentina esqueci-me da Conceição (nem sei bem se é o nome certo, porque sempre lhe chamámos "Chão", carinhosamente). Também não casou nem deixa filhos.

M. L. Ferreira disse...


Foi ainda no tempo da taberna do Marcelino, que, num domingo à tarde, depois do jogo da malha, se cozinhou a ideia de comprar uns bombos para o Casal: «Hemos de ser menos que os da Partida e Almaceda? Isso é que era bom!...»
Se bem o pensaram, melhor o fizeram: cada casa deu o que pôde e, não tardou, tinham o dinheiro preciso. Foi o Miguelito Leitão e o João Marau que foram até Lavacolhos e encomendaram do que melhor por lá se fazia. Tamanho médio, que se ajustava a todos.
Os bombos já não vieram a tempo da Festa do Casal, nesse ano, mas no dia em que chegaram foi uma alegria. Juntou-se o pessoal no largo e, velhos e novos, deram ao pé até às tantas. A algumas mulheres, ainda a usar as saias pelo meio da canela, até se lhes viu a perna para cima do joelho, de tanto que a levantavam!
Terá sido este o início do Grupo de Bombos Os Vicentinos, que continuam a animar a nossa terra.