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domingo, 29 de setembro de 2024

Mais histórias vicentinas




Foi um bom momento de partilha, com histórias dos mais variados assuntos, mas com maior incidência nas nossos memórias das Festas de Verão. Venham mais Conta-me histórias.

José Teodoro Prata

Fotos da Maria da Luz Teodoro e do Joaquim Varanda

segunda-feira, 15 de julho de 2024

A taberna da Amália

 É o lugar mais conhecido do Casal (quando mo perguntam e digo que moro em frente da taberna da Amália, ficam logo a saber onde é a minha casa), mas a fama já vem do tempo do pai, quando ainda era a do Marcelino, com outro ar e outra freguesia.

Atualmente é ponto de encontro, quase só de mulheres, para um café e dois dedos de conversa; nas tardes de verão há quem se demore na esplanada a beber um cai-bem, refresco feito com uma mistura de refrigerante gasoso e xarope de groselha, receita caseira. Mas isto são coisas dos tempos modernos, que, há pouco mais de cinquenta anos, nenhuma mulher se atrevia a entrar na taberna, mesmo que fosse para ir chamar o homem, esquecido a matar a sede depois de uma tarde de domingo a jogar à malha. Por isso mandavam os filhos, se já se fazia tarde para a ceia, que às vezes também eram encorridos para casa, apenas pelo apontar de um dedo e o olhar esbugalhados de quem quer afirmar a autoridade do chefe da família. Eles iam ficando sempre mais um pouco…  

Mas havia o Ti Miguel Jerolme, um andarilho toda a vida, sempre de um lado para ao outro à procura das melhores rezes para criar ou vender a quem lhas rogasse nos mercados e nos talhos. Era uma paz d’alma, amigo de toda a gente; também do Ti Marcelino, quase da mesma criação.

Quando deixou de andar por lá, no negócio do gado, era raro o dia em que não aparecesse no Casal, quem sabe se num chamamento do coração ao ninho onde se criou, ali a dois passos, e ficava até se fazer noite, entremeando a conversa com mais um copinho. Vendo-o magrito, não fosse o vinho cair-lhe na fraqueza, a Tia Trindade oferecia-lhe muitas vezes uma bucha, quase sempre um bocado de pão com uma mancheia de azeitonas ou uma talhada de queijo, e ele não dizia que não.   

Quando começava a passar da hora, ia-lhe dizendo: «É melhor ir andando, Ti Meguel, que se faz tarde e a sua mulher já deve estar ralada…». Mas ele nunca tinha pressa de abalar: «Já vou…», e ia-se deixando ficar, sentado num dos bancos corridos encostados à parede. Até que, já noite escura, aparecia a Tia Laurentina com a lanterna na mão, e parecia ele que via Deus: levantava-se logo, com a alegria de uma criança confiante na mãe e, com o equilíbrio possível, caminhava atrás dela, pela vereda que os levava até casa, no outro lado do ribeiro. E era assim, muitos dias…

Após a morte da Tia Laurentina, foi a Chão, a última das filhas em casa, que, com a mesma dedicação e amor da mulher, lhe serviu de estrela, alumiando-lhe as noites escuras no regresso, desde o Casal da Fraga da sua infância, até ao Casalito onde se tinham criado os dez filhos que Deus lhes deu.

 O Casal do Baraçal, já tão diferente, visto do Casal da Fraga (apenas as casas em primeiro plano, ao fundo é já a Devesa)

Nota: O senhor Miguel Jerónimo nasceu no Casal da Fraga, em 1905, numa casa duma travessa da rua de Santa Bárbara, uma das mais antigas do Casal, que ainda é habitada. Era filho de António Jerónimo Lopes, já aqui nascido, e de Maria Josefa, natural dos Pereiros. Teve oito irmãos. À exceção de uma irmã, todos se criaram, casaram e terão tido filhos. Do casamento com a senhora Laurentina Hipólito teve dez filhos, todos criados até à idade adulta, e só o Padre Zé e a Conceição (Chão) não deixam descendência. Será, por isso, uma das famílias com mais parentes em São Vicente. Faleceu em 1 de junho de 1981, poucos anos depois da mulher.

ML Ferreira

sábado, 29 de junho de 2024

A lavadeira

São horas, está tudo a acordar

Um novo dia se aproxima

Vamos todos levantar

Em direção à cozinha

 

Após ter passado uma noite bem dormida ao lado de três irmãos, dois para cima e dois para baixo, eis que oiço o galo cantar, dando sinal de que vamos entrar num novo dia. Levanto-me, dirijo-me à cozinha e encontro a minha mãe já levantada, preparando o nosso pequeno-almoço, ou seja, café de cevada, que todos nós degustávamos com alguma satisfação, misturando um pouco de leite das ovelhas dos meus avós, quando havia e quando não havia era preto. Partíamos uma fatia de pão cozido no forno da tia Maria Estela para uma malga e tudo misturado, era a nossa primeira refeição, ou seja, o café migado.

 

Fizemos a higiene pessoal

Acompanhados da nossa mãe

A seguir fomos para o quintal

A ouvir o galo também

 

A minha mãe já tinha preparado uma grande bacia de roupa que iria lavar para a ribeira da senhora Encarnação (1), mas antes de sair de casa tinha a preocupação de nos lavar na casa de banho, porque já tínhamos esse miminho, não havia era a água canalizada ainda, tínhamos de a ir buscá-la à fonte, que está ali perto, despejá-la para um depósito no forro. A canalização estava feita internamente ligada a esse depósito, podendo assim utilizá-la na casa de banho e na cozinha, onde já havia uma torneira.

 

Tomámos o nosso café migado

Com alguma satisfação

Que a minha mãe tinha preparado

Antes de ir para a ribeira da senhora Encarnação

 

Acordo bem-disposto, porque finalmente entrámos de férias escolares, e feliz estava, porque tinha passado para a terceira classe. Depois de a minha mãe ter terminado todo este ritual e de ter acomodado as galinhas e os perus que tínhamos no quintal, dirige-se a mim, porque entendia que eu era o mais jeitoso para a ajudar, e diz-me:

- Daqui a três horas vais ter comigo à ribeira para me ajudar a trazer a roupa, porque é muita e eu não posso sozinha.

Eu, quando entendi, saio de casa, passo na Fonte Velha, vinha a Dona Zara a sair de casa, dirigindo-se a casa da Dona Maria; quando passo por ela, dou-lhe a salvação.

 

Desço rua abaixo contente

E na fonte paro um pouco

Vejo o João Carvalho e o Joaquim Valente

A entrar na tasca do João Coxo

 

Passo em frente à taberna do sr. João Coxo, estavam a entrar os senhores Joaquim Valente e João Carvalho, que de certeza iam matar o bicho. Vou direito à rua Velha, onde encontro o sr. Joaquim Ribeiro, mais tarde meu tio, porque casou com a minha tia e madrinha, à porta da sua casa, a ver quem passava. Chego a casa do sr. Albano Jerónimo e vejo um carro de bois à porta dele, sem o ganhão, que deveria estar a receber ordens dentro de casa; entretanto chega o sr. João Paulino com o seu grande burro, que devia ir para a propriedade que tinha na Senhora da Orada.

 

Em frente à casa do senhor Albano

Um carro de bois está parado

O ganhão recebe ordens do comando

E deve cumprir o que ficou combinado

 

Chego à Estrada Nova e vejo ao meu lado esquerdo o sr. Jaime Pique, que se encontra à porta do forno do sr. José Matias (2), a fumar o seu cigarrinho; e prossigo o meu objetivo direito à ribeira da senhora Encarnação. Entro no caminho onde se encontra agora o Nicho e chego à ribeira. Além da minha mãe, há outras mulheres a fazer o mesmo trabalho. Já estava calor, porque tínhamos entrado no Verão, mas a ribeira ainda levava água suficiente para lavar a roupa.



Com alguma satisfação

Finalmente chego ao destino

À ribeira da senhora Encarnação

Local onde bem me sinto

 

Eu gostava de estar ali, porque entrava na água e divertia-me. Não estava sozinho, havia outras crianças e todos nos divertíamos: uns apanhavam peixes com um cesto e outros divertiam-se a bachicarem-se uns aos outros e a jogarem às escondidas. Havia meninas em combinação, porque as mães aproveitavam para lhes lavarem os vestidos, para que no final viessem lavadinhas para casa.

Em frente encontrava-se o lagar da Luz Mesquita, mas de momento não estava a trabalhar. Lá mais a cima, junto às passadoiras, havia outro lagar que pertencia à Casa Conde. De repente vejo um homem a passar as passadoiras do Casal para a Vila. Era o tio Tota que era o varredor das ruas e ao mesmo tempo o coveiro. Mais tarde vim a saber que tinha morrido uma pessoa e ele vinha abrir a cova.

 

Toca o sino a dobrar

Sinal de que alguém morreu

O tio Tota vai passar

Pergunto-lhe, quem é que faleceu?

 

Entretanto, a minha mãe já lavou a roupa, a pôs a corar ao sol, voltou a passar pela água e colocou a secar. Quando está quase seca, vimos para casa. E assim se passou mais um dia na ribeira da senhora Encarnação.

 

João Maria dos Santos

Notas:

(1)   Antes do lagar da sr.ª Luz Mesquita ser construído, havia uma azenha naquele local, cuja moleira era a senhora Encarnação; por isso o sítio da ribeira em frente tinha o nome da moleira.

(2)   O local primitivo do forno do sr. José Matias foi ao fundo da Rua Nicolau Veloso, à esquerda, já junto à estrada.

quarta-feira, 26 de junho de 2024

A MEMÓRIA DO CAMINHO DA FONTE FERREIRA com sapatos à mistura

Fonte Ferreira, atualmente. No passado, era uma fonte de mergulho.

Da minha casa vê-se este caminho.

Não a Fonte Ferreira, mas o caminho, a Barreira de São Francisco quase toda.

À Fonte Ferreira vinhamos buscar água para beber, que guardávamos em cântaro de barro - em todas as cantareiras, em todas as casas havia um cântaro de barro, para a água de beber.

Também se bebia água no local, joelho em terra, o nariz dentro da poça, a água tantas vezes a entrar tanto na boca como no nariz.

No Inverno a Fonte quase sempre desaparecia, era preciso refazê-la quando acabavam as enchentes de Inverno na Ribeira.

A água para outros gastos de casa era apanhada ali em cima, do lado de cima das passadouras, mesmo depois de fazerem a Fonte do Casal.

Isto só mudou, nesta parte, para quem morava do lado de baixo da Estrada, quando, muito mais tarde, se construiu uma outra Fonte, no lado de cima da Quelha, na junção com o caminho que agora se chama travessa ou rua dos Nicolaus, fonte essa mais recentemente destruída, quando passou a haver água canalizada nas casas.

Do lado do Casal, este caminho chamava-se A Quelha; do lado da Vila, Barreira de São Francisco.

E a ribeira, pelo menos lá em casa, era a daqui, a Ribeira das Passadouras, e ali em baixo, a Ribeira da Azenha. O nome desta vinha do que todos conhecem como Lagar do Zé Mesquita, para nós uma edificação que fazia parte da história da família: ali tinha sido uma azenha, de moer cereal, a minha avó Encarnação era a Moleira, e ali na Azenha lhe nasceram vários filhos e filhas, incluindo a minha mãe, a mais nova. Por isso, àquele edifício, ouvi muitas vezes chamar "a nossa Azenha".

Tenho memórias muito vivas associadas a este caminho:

- os peixeiros da Vila, quando o peixe chegava a SVB, de caixa às costas, descendo a correr, do lado de São Francisco, apregoando o que levavam, para chamar os fregueses do Casal, a começar pelos da parte de baixo da Estrada, tudo fazendo para serem os primeiros a chegar à "Charneca" - o Maiaca, a Palmira Sardinheira, António Brocha, creio que o Pinura,..."Dois, 25 tostões", o chicharro, em certa altura; "Fresca e boa! Olha que é boa e barata", se era sardinha que levavam;

- os grupos, aos 3 e aos 4, às vezes mais, nos domingos, a caminho da missa - víamos eles descerem a Quelha, subindo depois ali do lado de São Francisco;

- as "passadouras", que a ponte é um melhoramento recente, creio que posterior ao 25 de Abril. E as enchentes da ribeira, que deixavam as passadouras intransitáveis - e lembro-me de ver o meu pai a passar às costas, em dia de missa, várias mulheres, do lado do Casal para o da Vila;

- ainda nos domingos - é uma memória de Verão - homens bêbados, virem de lá para cá, naquele estado, em graus diversos: foram à missa, trataram de algum pendente à saída da igreja, encontraram-se com este e aquele, "vai um copo?", o estômago em geral vazio, e regressavam a esta banda alguns em péssimo estado. O bêbado mais notório do Casal era o tio António Tota - lembro-me de o ver, dali da minha casa, sentado numa pedra, ali no cimo do Covão, em grande cantoria, dizendo de vez em quando "Eu sou o Tota", e chamando em altos berros: "Oh, Maria Amália", era a mulher, fula, com razão, fechada em casa, e ele por lá ficava naquilo...;

- muito viva ainda, a imagem das escadas do Calvário, ainda nos domingos, pejadas de gente, homens também, mas principalmente mulheres. Era o local e a hora de as mulheres mudarem de calçado, trocando os sapatos velhos, botas ou sandálias, cobertos de pó e lama do muito caminho andado, por "calçado de ir à missa"; no regresso, no mesmo sítio, voltavam ao "calçado de andar", para demandarem Pereiros, Mourelo, Partida, e não sei que mais. E eu, vendo-os, tinha um sentimento meio indistinto, acho que um misto de pena (acho que por sabê-los pobres) e de vergonha! Sei lá porquê, na verdade.

E por falar de calçado, há que falar de andar descalço. Na minha escola primária, havia miúdos que iam descalços à escola. Até me lembro da inveja que tinha, quando se jogava à "Espada Lua", em que é muito importante a velocidade de corrida, a inveja que eu (que era um cepo a correr) tinha de um outro miúdo, que corria muito - e eu associava o "correr muito" ao facto de ele andar descalço.

Também havia adultos que andavam descalços. Destes, a memória mais presente é de uma senhora que todos os dias, ou duas a 3 vezes por semana, fazia o caminho, a pé, de SVB para as Anexas - Pereiros, Mourelo, Partida - levando e trazendo o correio. Tenho ainda muito viva a imagem dessa senhora, cabeça, tronco e membros, o porte e o jeito de andar, mas ainda estou a ver, especialmente, os pés dela... Era a tia Maria Chamiça.

...

Se não tivesse já falado muito, ainda vos contava como eu e o meu irmão Artur fomos apresentados, aqui neste local, às batatas doces - que, de todo, não conhecíamos! -, e uma certa aventura de um martelo de brincar que me saiu numa rifa, cujo prémio maior era uma cobiçada bola de borracha, martelo esse que eu, a descer a Barreira de São Francisco, não tive coragem de deitar fora.

Casal da Fraga, 23 de Junho de 2024

J. Miguel Teodoro (que também assina Sebastião Baldaque)

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Conta-me histórias do Casal da Fraga

Foi um bom passeio, com muitas histórias para partilhar!

Comecemos pelo fim:

No final, na taberna do Marcelino, esperava-nos um bom lanche, para retemperar forças, e cadeiras para descansar as pernas. Obrigado pela generosidade!

Recordámos a ti Pulquéria e falámos da origem do nome Fraga.


Na capela de Santa Bárbara, o João Barroso, a Libânia Ferreira, o José Manuel dos Santos e o José Teodoro partilharam as informações que a tradição e os documentos nos dão sobre a trasladação da capela do Valouro para aqui, em 1932.


Antes, tínhamos ouvido a Fátima Jerónimo falar da fonte de mergulho que existia por baixo da ponte ao fundo da rua do restautante da Mila. Finalmente, existe a promessa do seu restauro. E contou outras histórias, logo secundada pelo João Maria dos Santos.


Aqui, à sombra de um sobreiro, no alto do Casal do Baraçal, o António Pereira protestou por quererem estender o nome da rua (Eduardo Cardoso) pelo casalito adentro, acabando ali a urbanização da Devesa: é Rua do Casal do Baraçal! 

E tendo à nossa frente quase todo o vale do antigo casal do Monte do Surdo, o José Teodoro falou sobre a importância deste casal do Conde de São Vicente, no passado. 

Na ribeira, antes de subir para o Casal do Baraçal, a Libânia Ferreira, a Luz da Esperança, o José Teodoro e o João Manuel dos Santos contaram a história da guerra das lavadeiras, em 1970, quando Castelo Branco começou a beber a água da barragem do Pisco.


E aproveitando a sombra dos amieiros e o fresco da ribeira, o António Pereira partilhou connosco o processo judicial de que ele e outros habitantes do Casal do Baraçal foram alvo por se recusarem a deixar de passar no caminho que dali os levava à Vila, no tempo do Vila Franca, do Cavaco Silva e do Mário Soares.

hj

Na Fonte Ferreira, o José Miguel Teodoro contou as suas vivências pelas geografias em torno da fonte.
 

Antes, um pouco mais acima, onde começámos, falou-se da aventura que era atravessar as passadouras em dias de enchente, da sua substituição pelo pontão e de outras histórias que a ribeira guarda e só nos conta se lhe souberemos perguntar.

Aqui participaram tantos! Se não estiveram lá, terão de esperar pelas suas histórias, quando eles as passarem para o papel (como o João Maria já fez).


E voltando ao final, aqui a caminho da taberna do Marcelino, agora da Amália.

José Teodor Prata

Fotos de Francisco Barroso e Maria da Luz Teodoro

domingo, 16 de junho de 2024

Santa Pulquéria

Este texto já foi aqui publicado, mas voltamos a ele, porque é muito bonito e bom para vos abrir o apetite para a 4.ª tertúlia do Conta-me histórias, desta vez no Casal da Fraga, no próximo domingo.

“Olha lá cachopos, se vandes pra Lisboa e virendes por lá a minha ‘sabel, dai-lhe recomendações nossas!”

“Nossas” era como quem diz, da tia Pulquéria e do irmão da Isabel, ambos moradores numa casa que já foi abaixo, pedra em cima de pedra, com um balcão que dava para a estrada, no que eu sempre acreditei ser o lugar mais soalheiro do nosso Casal da Fraga.

Já grandes e com a arrogância que o cosmopolitismo aparentemente confere, sorríamos e acenávamos que sim, incapazes de compreender tanta simplicidade – é mesmo desarmante, a simplicidade, não é?

A mesma inocência com que, depois das pregações da Semana Santa, quando, regressados da igreja, descíamos a barreira de São Francisco, a tia Pulquéria repetia partes inteiras do sermão, exaltando a beleza de um gesto bíblico ou o sentido de uma parábola, que ela retivera e a nós, adolescentes de fresco, soava a prosa infantil. “Não é tão lindo, cachopos?”, ouvíamos ela dizer. Nesses dias, por causa das exéquias, ela calçava uma espécie de sapatos de pano – pretos, com uma presilha que abotoava de lado.

Nunca, que eu saiba, houve pessoa mais pura neste mundo.

Incapazes de perceber, pequenos e grandes, à uma, fazíamos pouco dela: do porco foçador, já com oito ou nove anos, que por vontade da dona nunca iria à faca; ou da pressa com que se mexia – ela não andava, corria, porquê? se não se lhe conhecia sombra de compromissos ou obrigações; ou do xaile ou pano preto com que sempre se cobria, já em muito mau estado; ou da horta e da criação que não tinha. E do afilhado, já homem e de bom físico, que a madrinha não deixava trabalhar, ao dia, porque se cansava, ou da limpeza por fazer, tanto da casa, como do corpo de passarinho; ou, ainda, de ela ter uma interpretação literal das parábolas da Bíblia ouvidas na igreja, e de, na sua ideia, Lisboa ser apenas um pouco maior do que São Vicente.  Sem semear, nem colher, interrogava-se o senso comum, que éramos nós todos, de que é que viviam aqueles dois pobres de Cristo – por que milagre, sem um vintém a entrar-lhes em casa?

Pobre de espírito ouvi chamar mais de uma vez à tia Pulquéria, uma senhora que, nós já adultos, ainda nos chamava “meninos”, para quem a pobreza era como se não fosse – antes, uma condição natural vivida com amorosa ingenuidade.

Em boa verdade, tal transcendência, para mim, foi durante muito tempo um caso de santidade. Hoje, mais incomodado com o conforto das certezas do que com o desconforto da dúvida, não vou tanto por aí. Ainda assim, guardo dela uma memória feliz, e isso para mim é mais importante que as questões da santidade.

Sebastião Baldaque

SET. 2022

terça-feira, 11 de junho de 2024

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Conta-me histórias: sessão inaugural

 


Juntámo-nos à Comissão das Festas de Verão, para dar também o nosso contributo. O primeiro cartaz é o do projeto Conta-me Histórias, que será usasdo para publicitar todas(?) estas tertúlias.

A organização é d´Os Amigos dos Enxidros. Dos Amigos, porque a realização das tertúlias e o êxito que tiverem será sempre mérito de quem as anime e de quem vá assistir. Dos Enxidros, porque lancei o projeto através do blogue Dos Enxidros e porque os enxidros eram, no passado, os baldios da encosta da serra, entre a vila e os altos, da Oles à Senhora da Orada. Tal como os enxidros, este projeto também se quer de todos. A foto que serve de base ao cartaz é da Rua da Misericórdia, antes da demolição da casa do coronel (ela simboliza aqui um pouco do passado que estará presente em cada história que for contada).

Agradeço que divulguem o cartaz nas redes sociais que frequentam.

José Teodoro Prata