domingo, 16 de junho de 2024

Santa Pulquéria

Este texto já foi aqui publicado, mas voltamos a ele, porque é muito bonito e bom para vos abrir o apetite para a 4.ª tertúlia do Conta-me histórias, desta vez no Casal da Fraga, no próximo domingo.

“Olha lá cachopos, se vandes pra Lisboa e virendes por lá a minha ‘sabel, dai-lhe recomendações nossas!”

“Nossas” era como quem diz, da tia Pulquéria e do irmão da Isabel, ambos moradores numa casa que já foi abaixo, pedra em cima de pedra, com um balcão que dava para a estrada, no que eu sempre acreditei ser o lugar mais soalheiro do nosso Casal da Fraga.

Já grandes e com a arrogância que o cosmopolitismo aparentemente confere, sorríamos e acenávamos que sim, incapazes de compreender tanta simplicidade – é mesmo desarmante, a simplicidade, não é?

A mesma inocência com que, depois das pregações da Semana Santa, quando, regressados da igreja, descíamos a barreira de São Francisco, a tia Pulquéria repetia partes inteiras do sermão, exaltando a beleza de um gesto bíblico ou o sentido de uma parábola, que ela retivera e a nós, adolescentes de fresco, soava a prosa infantil. “Não é tão lindo, cachopos?”, ouvíamos ela dizer. Nesses dias, por causa das exéquias, ela calçava uma espécie de sapatos de pano – pretos, com uma presilha que abotoava de lado.

Nunca, que eu saiba, houve pessoa mais pura neste mundo.

Incapazes de perceber, pequenos e grandes, à uma, fazíamos pouco dela: do porco foçador, já com oito ou nove anos, que por vontade da dona nunca iria à faca; ou da pressa com que se mexia – ela não andava, corria, porquê? se não se lhe conhecia sombra de compromissos ou obrigações; ou do xaile ou pano preto com que sempre se cobria, já em muito mau estado; ou da horta e da criação que não tinha. E do afilhado, já homem e de bom físico, que a madrinha não deixava trabalhar, ao dia, porque se cansava, ou da limpeza por fazer, tanto da casa, como do corpo de passarinho; ou, ainda, de ela ter uma interpretação literal das parábolas da Bíblia ouvidas na igreja, e de, na sua ideia, Lisboa ser apenas um pouco maior do que São Vicente.  Sem semear, nem colher, interrogava-se o senso comum, que éramos nós todos, de que é que viviam aqueles dois pobres de Cristo – por que milagre, sem um vintém a entrar-lhes em casa?

Pobre de espírito ouvi chamar mais de uma vez à tia Pulquéria, uma senhora que, nós já adultos, ainda nos chamava “meninos”, para quem a pobreza era como se não fosse – antes, uma condição natural vivida com amorosa ingenuidade.

Em boa verdade, tal transcendência, para mim, foi durante muito tempo um caso de santidade. Hoje, mais incomodado com o conforto das certezas do que com o desconforto da dúvida, não vou tanto por aí. Ainda assim, guardo dela uma memória feliz, e isso para mim é mais importante que as questões da santidade.

Sebastião Baldaque

SET. 2022

2 comentários:

José Teodoro Prata disse...

A tia Pulquéria era nossa prima, dos Teodoro, embora, em boa verdade, nas aldeias quase toda a gente seja primo de toda a gente, variando apenas o grau.
Era simpática comigo, por sermos parentes (via-me com o meu pai) e sobretudo porque toda ela era bondade. Com o sobrinho João era igual.
Conheci outras pessoas assim: simples, pobres e extremamente simpáticas.
Nas nossas festas religiosas passava pela nossa casa da Tapada uma velhinha com a sua filha, vinda do Casal da Serra, que nos ia sempre cumprimentar, esperando igualmente alguma oferta de comida.
O mesmo com o Tonho da Aldeia, que corria toda a região, comendo e ficando onde encontrava generosidade: parecia um dos franciscanos primitivos. Não alardeava generosidades, mas nunca o vi antipático ou agressivo para alguém. Conheci-o nos Cebolais e um dia dei-lhe boleia entre a Benquerença e a Meimoa.

M. L. Ferreira disse...

Era tão amorosamente ingénua que, para além de entender apenas o sentido literal das parábolas, por volta dos quarenta anos devia ter a mesma noção de bem e de mal que alguns de nós tínhamos aos sete ou oito, e nos fazia andar sempre a caminho do confessionário.
Lembro-me de uma vez, já lá vão muitos anos, um dos meus irmãos, de férias no Casal, ter posto a tocar um disco de uma banda Rock muito na moda na altura. Não tardou, ela de mãos na cabeça, aos gritos no balcão da casa: «Apaga isso, que são coisas do diabo! Esta mundo está perdido com tanto pecado!», e por aí adiante…
Claro que ele, mais por travessura que por maldade, aumentou ainda mais o volume da aparelhagem...
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