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domingo, 24 de abril de 2011

O nosso falar: talhada

Há anos, numa volta pelo Norte, parei em Tabuaço, a descansar de uma sinuosa viagem pelas margens do rio Távora. A tarde ia meio e fomos lanchar a uma pastelaria. Pedi uma talhada da tarte que, na montra, não despregava os olhos de mim. A minha família estranhou o meu falar e riu-se. Como eu não dava mostras de emendar, lá tiveram de explicar à dona que eu queria uma fatia de tarte.
Recordei esta história ao escrever o final do texto de ontem. Na nossa terra, se o pão se comia às fatias, o queijo, e quase tudo o que desse corte, comia-se às talhadas. Por vezes, até à fatia do pão se aplicava o termo talhada. Actualmente, esta palavra já quase caiu em desuso e utiliza-se o termo fatia para tudo.
O falar politicamente correto dos meios urbanos reduz drasticamente o número de palavras usadas no nosso dia a dia. Muito do vocabulário da língua portuguesa está a perder-se, irremediavelmente. Para os jovens de hoje, entender um livro de Virgílio Ferreira, Soeiro Pereira Gomes ou Aquilino Ribeiro, que escreveram na primeira metade do século XX, já começa a ser difícil. Até de Fernando Namora se queixam, ele que tanto e tão bem escreveu sobre a nossa Beira, nos anos 50.
Por isso, temos de teimar, insistir, em nome da diversidade e riqueza da nossa cultura.

Nota: Nesta minha incursão pelo nosso falar, que se prolongará por muitas semanas, estou a meter-me por terreno alheio, pois não tenho formação académica especializada. Agradeço todas as correções ou achegas que os leitores queiram compartilhar connosco.



Aleluia Aleluia !!

Ricordó Sinhor Vigário
Que já bate o sol na Cruz
Vamos dar as Boas-Festas
Ao Coração de Jesus.


Ernesto Hipólito

sábado, 28 de março de 2009

Tradições da Páscoa













Cerimónias de Sexta-Feira Santa, no ano passado, 2008.
Fotos de Filipa Rodrigues Teodoro


A Semana Santa e a Páscoa já se fazem anunciar. Por isso vos deixo um trecho de um trabalho que publiquei, em Castelo Branco, no ano de 2007.
Para os mais velhos, é uma doce recordação e os mais novos vão perceber melhor a nossa nostalgia das próximas semanas.
O texto faz-nos retornar aos anos 60 e qualquer um da minha geração ou das gerações próximas pode lê-lo na primeira pessoa, pois todos vivemos estas tradições de forma semelhante.


A Semana Santa era tempo de tristeza e oração. À noite, depois da ceia, os populares faziam a Ladainha, à luz de tochas, das seiras dos lagares. Era uma espécie de procissão, mas sem sacerdotes. Por volta das onze horas, soavam os Martírios, que terminavam à meia-noite, no Calvário, junto ao cemitério, com as seguintes quadras:

Ó almas que tendes sede,
vinde ao calvário beber.
O Senhor tem cinco fontes,
todas cinco a correr.

Ó almas que estais dormindo,
nesse sono tão profundo.
Rezemos um padre-nosso,
pelas almas do outro mundo.

Na Quinta-Feira Santa, à tarde, havia a Missa do Beija-Pés e, à noite, a Procissão do Ecce Homo. Na Sexta-Feira Santa, depois do jantar, era a Procissão do Encontro, que terminava no Calvário, seguida da Adoração da Cruz, na Igreja. À noite, fazia-se a Procissão do Enterro, o ponto alto da compaixão por Cristo. Nestes dois dias, os sinos não tocavam, em sinal de luto, e só as matracas chamavam os fiéis à devoção.
Não se trabalhava na quinta-feira à tarde e em todo o dia de sexta-feira, era pecado. Esse tempo era do Senhor.
O sábado aproveitava-se para preparar a grande festa da Ressurreição. Semanas antes, tinham-se comprado os tremoços, que se deitavam de molho e depois se coziam. Mas amargavam e deixavam-se a adoçar na água do ribeiro das Lajes. Chegada a véspera da Páscoa, traziam-se para casa e salgavam-se.
O forno ardia toda a tarde. As mulheres andavam em volta da farinha e dos ovos, a amassar e a deitar colheradas de massa para as latas, que iam ao forno pouco aquecido. Depois tiravam-se os doces para as bacias e nós, os mais novos, raspávamos as latas e reacendíamos o forno. E isto ia-se repetindo, até chegar a ordem de aquecer bem o forno, para os bolos. Era nesta altura que, às vezes, a lenha se acabava e tínhamos de correr aos pinheiros a ver de mais. Valia-nos a barriga cheia de esquecidos e bolos de leite.
A minha mãe, que amassara os bolos e depois os deixara a fintar, enquanto fazia os doces, vinha agora a ver o forno, mandando meter mais lenha ou espalhando o brasido, à espreita dos lares, que deviam esbranquiçar, mas não demasiado. Se estava quase bom, corria à cozinha a tender os bolos. Depois chegava com o tabuleiro cheio e poisava-o ao lado da porta do forno. Com o rodo, puxava as brasas para a porta e, com o vassouro, varria o chão de brasas e cinza. Um de nós segurava a pá, com a ponta pousada na soleira da porta do forno, e a minha mãe ia pondo os bolos, que depois arrumava lá dentro. Se o forno estivesse muito quente, tirava algumas brasas para fora e deixava as outras à porta. E ia espreitando, a ver se eles coziam lentamente ou se coravam de repente e era preciso tirar mais brasas. Quando estivessem bem altos e tostadinhos, tirava um, espetava-lhe uma caruma seca de pinheiro e via se vinha húmida. Se não, estavam cozidos e tiravam-se. Agora já não cabiam no tabuleiro, mas era lá que se colocavam, de cobulo, em sinal de festa e abundância.
Às onze da noite, íamos à Missa da Aleluia. O senhor Vigário zangava-se com tanta conversa entre campainhas e chocalhos, antes da Aleluia. Quando finalmente dizia a palavra mais ansiada da semana, troava uma babel de sons, a que dificilmente punha fim, passados minutos. Depois cantava-se a Aleluia. À meia-noite regressávamos a casa, mas alguns rapazes iam a casa do Padre Branco, a desejar-lhe as boas festas:

Rex, Rex, senhor Vigário,
que já dá o sol na cruz.
Venha dar as boas festas,
ao coração de Jesus.

Aleluia, Aleluia,
Aleluia, Aleluia. (bis)

E continuavam com outras quadras, até que o padre viesse à porta, com uma garrafa na mão, a festejar com eles a Aleluia.
No domingo, a meio da manhã, fazia-se a Procissão da Aleluia, seguida da Missa da Páscoa. Depois jantávamos e vínhamos logo para a Vila, às Boas-Festas.
O senhor Vigário entrava em cada casa, benzia-a com a água benta e cumprimentava os da casa, trocando umas palavras com eles, que insistiam para que ele comesse ou bebesse alguma coisa. Entretanto, já o sacristão, o senhor António Maria, dera o crucifixo a beijar a toda a gente. Seguia-se outra casa e, se fosse da mesma família, todos saíam a correr, para ultrapassar o padre e chegar a tempo de beijar o Senhor. A cada saída, os mais novos tiravam da mesa repleta um doce ou uma mão cheia de tremoços. Se na rua já tinham acabado as casas dos parentes e amigos, iniciava-se então a volta ao contrário, entrando e ficando em cada casa, a comer e a beber, até que alguém dizia que o senhor Vigário já estava perto da casa de outra família chegada, a morar mais longe. Nesta correria, íamos fazendo a digestão dos tremoços e dos doces. O meu pai é que, sem a nossa ajuda, não conseguia subir a quelha para a Tapada, no escuro da noite, quando a festa chegava ao fim.
As Boas-Festas eram no Caldeira e na Tapada, logo no dia seguinte, segunda-feira. Da barreira víamos o Senhor a passar pelo ribeiro das Lajes e a subir, nas calmas, até lá acima. O senhor Vigário demorava-se em cada casa, pois só havia quatro famílias. Às vezes comia um doce e bebia um copo, de vinho ou de água, da mina da Barroca.
Duas semanas depois era a festa da Santa Bárbara, no Casal da Fraga, onde vivia a grande família do meu pai. Era então que se davam as Boas-Festas e nós, os Teodoros da Tapada, passávamos lá o dia, entre a missa, o beijar da cruz e os tremoços e bolos.
Só no quarto domingo de Maio, na romaria da Senhora da Orada, é que a festa da Páscoa terminava, com as Boas-Festas às casas das Quintas, à tarde, depois das merendas.

(PRATA, José Teodoro - Instantes saborosos, “Estudos de Castelo Branco”, Julho de 2007, Nova Série, N.º 6, Direcção de António Salvado)