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segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Os primórdios

 

Recebi, na semana passada, a revista VISÃOHistória de outubro, totalmente dedicada a Portugal na Idade Média. Traz duas informações que nos interessam diretamente.
A primeira é este mapa que nos mostra ter sido a serra da Gardunha a fronteira entre o Condado Portucalense, uma "província" do reino de Leão, e o Al-Andalus muçulmano. Não sei, e o mapa não mostra, se a vertente sul da serra já pertencia aos cristãos do Norte ou se apenas foi integrada no grande impulso dado à Reconquista, no tempo de D. Afonso Henriques. Mas a antiga pertença de São Vicente à Covilhã quase nos permite atrever-nos com a hipótese da nossa pertença à Cristandade ainda antes de existir Portugal.
A revista traz também a informação de que já nessa época os reis raramente participavam em batalhas. D. Afonso Henriques tem o record, com 5 presenças, seguido do seu filho D. Sancho I com 4. Ora isto arruma de vez com a questão da presença ou não do nosso primeiro rei na batalha da Oles (mas não põe em causa a sua existência).

José Teodoro Prata

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

O sonho

Estava já no sofá a gozar o lazer do serão. O bulício e o cansaço do dia, que acabara, trouxeram-me a dormência que é a antecâmara do inconsciente. As pálpebras tinham o peso de duas portas de castelo, com os seus pesados gonzos metálicos e teimavam em fechar-se. Meio adormecido, de olhos semicerrados, a entrar no mundo desconhecido das nossas próprias sombras, pareceu-me estar a viver um sonho. Esse sonho era assim:

Era num dia do mês de setembro do ano de 1173. Após as colheitas do fim do verão, mas quando os dias ainda estavam quentes, um grupo numeroso de moradores da muito nobre Vila de S. Vicente da Beira (que, então, ainda não tinha este nome), meteram os pés a caminho, mobilizando carros de bois, carroças, cavalos, e muita gente apeada e foram à presença do rei D. Afonso Henriques, a Lisboa, oferecer a sua terra. A fim de que o rei a tomasse como própria e a considerasse fiel a si e ao seu reino cristão, então em formação e franco crescimento.
Havia festa em Lisboa! As ruas estavam engalanadas com muitas bandeiras com a cruz de Cristo de cor azul sobre o fundo branco. O rei recebeu-os num dos seus palácios, em frente de toda a corte, onde pontuavam os nobres e inquebrantáveis cavaleiros da Causa Portuguesa que, anos antes, em 1147, haviam conquistado Santarém e, logo a seguir, a própria cidade da capital. E assim falaram os representantes daquela Vila:
— Pode El-Rei contar, aqui lho juramos, com esta geração de homens que está diante de vós e com toda a outra gente que aqui não pôde vir, daquela terra longínqua, inculcada na Gardunha, não muito distante da raia com Castela. Postada na margem de um dos braços do rio Ocresa, cujas águas se misturam com as deste belo rio Tejo que aqui tendes à vossa frente. Gente, que se obriga a render a Vossa Mercê o seu mais humilde preito de homenagem e fidelidade. E, solenemente, aqui se compromete a lutar, assim como os seus vindouros, para todo o sempre, a vosso lado e dos vossos descendentes, contra o infiel e contra todos os vossos inimigos, no alargamento de vossas terras e senhorios. Dai-nos, vos pedimos, um nome para a dita nossa terra, pois nome no vosso reino cristão ainda não aprouvestes dar-lhe! E que tudo seja para vossa honra e fama e dos vossos filhos, nossos reis, e nosso benefício, para glória de Nosso Senhor Jesus Cristo!
O rei, ao ouvir tamanha prova de lealdade, disse do alto da Sua Majestade:    
— Olhai meus dignos e fiéis súbditos, gente honesta e boa, que viestes de tão longe e que tantos trabalhos passastes para aqui chegar: hoje trasladam-se para a Sé Catedral, nesta magnífica cidade de Lisboa, os restos mortais de S. Vicente, esse grande exemplo de abnegação e coragem, na fé católica, da nossa Santa Madre Igreja. Em vista de tão importante acontecimento, do esforço por vós despendido e da dedicação que mostrastes ao vosso rei, hei por bem honrar-vos com a proteção desse santo, para que dela possais beneficiar, tanto no corpo, como, mais ainda, na alma. Dai a essa vossa terra da Gardunha, lá para as bandas de Castela, o nome deste Santo Mártir S. Vicente. Além disso - disse ainda o rei - vos dou também um osso do maxilar do seu respeitável corpo, para guardardes, como relíquia, na vossa igreja, através dos tempos! Assim me apraz! Assim, pois, procedei!
Os da Vila ficaram admirados com tão alta distinção que ouviam da boca do rei! Tinham ido a Lisboa a oferecer a sua terra simples e singela a Sua Majestade e vinham de lá com o nome do santo como padroeiro!
Mas El-Rei continuou. E os que isto ouviram ficaram atónitos:
— E, mais que isso – disse ele - estes nossos reinos não estão ainda em paz com Castela, que bastas vezes nos vem afrontando, a nós e a nossos leais cavaleiros. A vossa terra, na Gardunha, mais próximo da raia, serve bem os nossos desígnios de guerra contra nossos primos. Pois se nos afigura que esta cidade de Lisboa, muito digna embora, encontra-se afastada dos campos de luta, onde são necessárias pessoas e armas. A vossa terra ajuda, por isso, muito melhor, essa a nossa empresa, se para lá mudarmos a capital do país. Assim, poderemos garantir, mais solidamente, pela bravura das nossas armas, o nosso sagrado território de Portugal. Guardar melhor as fronteiras e as terras conquistadas e a conquistar aos mouros, para sul, onde novas famílias cristãs, sob a nossa bandeira, se querem instalar, progredir, construir o seu futuro e criar os seus filhos e netos. Assim o estamos a intentar, em nossas propriedades, doando terras às expeditas gentes da grei e aos laboriosos frades dos mosteiros, para que as arroteiem e façam produzir. E para ganharmos o respeito dos outros reinos temos empreendido também diligências, através da nossa diplomacia, junto de outras realezas e autoridades da Europa e, particularmente, de Sua Santidade, o Papa.
Ao contrário de outros políticos que nunca fazem o que prometem, o rei fez tudo o que havia prometido; ou não fosse a sua palavra uma palavra de rei! Enviou, então, os seus arautos pelo país fora, ordenando que em todos os locais públicos das vilas e cidades de Portugal, fosse lida a sua ordem de transferir a capital do reino de Portugal da cidade de Lisboa para a Vila de S. Vicente da Beira. E todo o povo do reino ia ficando admirado com aquele anúncio!
Aprazou o rei o início do mês de janeiro seguinte para que se fizessem os necessários preparativos, a fim de que no dia 22, dia da festa do Santo Padroeiro, S. Vicente, fosse assinado o decreto da transferência da capital de Portugal para aquela remota terra das Beiras. E por forma a que se começasse a mobilizar todo o seu séquito, com nobreza clero e povo. E que a criadagem se alvoroçasse, a preparar e acomodar os utensílios e haveres dos seus senhores para a viagem. Os cavaleiros preparavam-se para acompanhar o rei com os seus estandartes, pendões, achas de armas e arreios. Toda a imensa mole de gente, que nestas circunstâncias, acompanha o monarca, já se preparava. E precavia-se contra a aspereza dos caminhos e a rudeza do tempo durante a mudança. Os artistas da pedra desejosos de servir o seu rei preparavam-se para desenhar e edificar na Vila vários palácios dignos de um rei, para instalar a família real, os nobres e a governação do país! Tudo só encontrando paralelo nas presidências abertas do Dr. Mário Soares!
São Vidente da Beira, capital de Portugal! Que honra, que distinção!
E andava tudo numa fona! Mas, longe de ser pacífica e, apesar da autoridade e prestígio do rei junto dos seus fiéis partidários e seguidores, a sua decisão encontrou forte oposição junto da nobreza e da burguesia do país que entendia que Lisboa devia ser a capital.  
Reuniram-se as Cortes para discutir o assunto. O mais encarniçado dos defensores de Lisboa como capital, era um tal Martim de Sousa Coutinho, dono de muitas e extensas terras. E um dos braços direitos do monarca, seu partidário desde a primeira hora, que se distinguira em várias lutas travadas, tanto contra sua mãe, D. Teresa, em S. Mamede no ano já longínquo de 1128, ainda o rei era um jovem príncipe, como contra o vizinho castelhano, como nas campanhas do sul.
— Quer Vossa Senhoria mudar a capital de Portugal para S. Vicente da Beira! Bem sei que é uma terra simpática, de gente patriótica e apoiante das nossas hostes e da nossa causa! Lembro-me muito bem da batalha que travámos na Oles, abaixo da serra da Gardunha a pouca distância dessa dita terra, contra os nossos inimigos infiéis que se bateram valentemente, mas apesar disso, sofreram uma derrota marcante que muito dignificou as nossas armas, para grandeza da cruz da nossa bandeira branca. Sei-o muito bem! Mas isso não é razão para que vós, nosso rei, mudeis a capital de Portugal para S. Vicente da Beira. Lisboa é uma cidade linda! É grande, branca e espalha claridade pelas suas sete colinas! Tem o sublime Tejo a seus pés! E o mar aqui tão perto, que parece convidar-nos a um secreto desejo de aventura!
Do lado do rei e da sua opinião política para mudança da capital, pugnava um outro fidalgo com não menor valor e prestígio, Mem de Freitas Afonso, um dos seus generais, que se enchera de bravura nas lutas já travadas, que pediu a palavra ao rei e disse:
— Se o príncipe D. Afonso VII, muito poderoso rei de Castela e Leão, primo de nosso senhor e rei D. Afonso Henriques, tem estabelecida a sua capital em Toledo, no interior do seu território, caem por terra as vossas doutas palavras e argumentos. Não vejo por que razão não possa ser mudada a capital de Portugal para S. Vicente da Beira. Uma terra airosa, colocada na encosta da serra da Gardunha, último acidente geográfico das serranias no norte. A partir de cujo sopé, para sul, se inicia a dita Beira Alentejana, às terras da Idanha e da raia, sempre a raia, com suas campinas dilatadas!  
Estavam os contendores nesta obstinada luta de argumentos. E era tal a algazarra que grassava no palácio real e tão pertinazes as suas razões que o próprio rei se perturbou a pontos de mandar encerrar a discussão, de forma que por muito tempo não se falasse do assunto que tanto dividira os seus estimados cavaleiros!

Foi, então, que acordei!
Dos sonhos nada nos fica. Mas com este não foi assim. É que, se esta terra nunca chegou a ser a capital do país - na verdade, isso nunca passou da estreiteza de uma simples soneca no meu sofá – pelo menos, a mesma terra, desde que o povo foi, historicamente, apresentá-la ao seu rei, à capital, que ficou a chamar-se, a Lisboa Pequena.
Lisboa e S. Vicente da Beira, a Lisboa Pequena, são, afinal, duas irmãs em armas heráldicas. Em ambas figura a barca e os dois corvos que, diz a tradição, guardavam o corpo do Santo Mártir Vicente, não deixando que os outros corvos se alimentassem do seu venerável corpo. As próprias cores da bandeira concelhia de Lisboa e de S. Vicente Beira são iguais, em ambas figurando o preto e o branco.
O patrono de Lisboa, ao contrário do que muitos pensam, não é Santo António, o santo de Lisboa e Pádua, e sim S. Vicente que deu o nome à mesma terra beirã.
Optou-se por pôr muitas paróquias sob a proteção de Nossa Senhora, pelas razões que já foram apontadas neste blog. Terá havido uma indicação, nesse sentido, do Concílio de Trento – razão religiosa. Mas também a partir da Revolução de 1640, em que Portugal ficou sob a proteção de Mãe de Cristo, muitas mudaram de nome – razão política. E, motivo pelo qual, Portugal é também chamado Terra de Santa Maria.
Seja como for, São Vicente, o Mártir de Valência, não deixa de ser – todos o admitem – o Santo Padroeiro Honorário de S. Vicente da Beira!
O sonho, afinal, não foi em vão!     


José Barroso