Estava já no sofá a
gozar o lazer do serão. O bulício e o cansaço do dia, que acabara, trouxeram-me
a dormência que é a antecâmara do inconsciente. As pálpebras tinham o peso de duas
portas de castelo, com os seus pesados gonzos metálicos e teimavam em
fechar-se. Meio adormecido, de olhos semicerrados, a entrar no mundo
desconhecido das nossas próprias sombras, pareceu-me estar a viver um sonho.
Esse sonho era assim:
Era num dia do mês de setembro do ano de 1173. Após as
colheitas do fim do verão, mas quando os dias ainda estavam quentes, um grupo
numeroso de moradores da muito nobre Vila de S. Vicente da Beira (que, então,
ainda não tinha este nome), meteram os pés a caminho, mobilizando carros de
bois, carroças, cavalos, e muita gente apeada e foram à presença do rei D.
Afonso Henriques, a Lisboa, oferecer a sua terra. A fim de que o rei a tomasse
como própria e a considerasse fiel a si e ao seu reino cristão, então em
formação e franco crescimento.
Havia festa em Lisboa! As ruas estavam engalanadas
com muitas bandeiras com a cruz de Cristo de cor azul sobre o fundo branco. O
rei recebeu-os num dos seus palácios, em frente de toda a corte, onde pontuavam
os nobres e inquebrantáveis cavaleiros da Causa Portuguesa que, anos antes, em
1147, haviam conquistado Santarém e, logo a seguir, a própria cidade da capital.
E assim falaram os representantes daquela Vila:
— Pode El-Rei contar, aqui lho juramos, com esta
geração de homens que está diante de vós e com toda a outra gente que aqui não
pôde vir, daquela terra longínqua, inculcada na Gardunha, não muito distante da
raia com Castela. Postada na margem de um dos braços do rio Ocresa, cujas águas
se misturam com as deste belo rio Tejo que aqui tendes à vossa frente. Gente,
que se obriga a render a Vossa Mercê o seu mais humilde preito de homenagem e
fidelidade. E, solenemente, aqui se compromete a lutar, assim como os seus vindouros,
para todo o sempre, a vosso lado e dos vossos descendentes, contra o infiel e
contra todos os vossos inimigos, no alargamento de vossas terras e senhorios. Dai-nos,
vos pedimos, um nome para a dita nossa terra, pois nome no vosso reino cristão ainda
não aprouvestes dar-lhe! E que tudo seja para vossa honra e fama e dos vossos
filhos, nossos reis, e nosso benefício, para glória de Nosso Senhor Jesus
Cristo!
O rei, ao ouvir tamanha prova de lealdade, disse do
alto da Sua Majestade:
— Olhai meus dignos e fiéis súbditos, gente honesta
e boa, que viestes de tão longe e que tantos trabalhos passastes para aqui
chegar: hoje trasladam-se para a Sé Catedral, nesta magnífica cidade de Lisboa,
os restos mortais de S. Vicente, esse grande exemplo de abnegação e coragem, na
fé católica, da nossa Santa Madre Igreja. Em vista de tão importante
acontecimento, do esforço por vós despendido e da dedicação que mostrastes ao
vosso rei, hei por bem honrar-vos com a proteção desse santo, para que dela possais
beneficiar, tanto no corpo, como, mais ainda, na alma. Dai a essa vossa terra da
Gardunha, lá para as bandas de Castela, o nome deste Santo Mártir S. Vicente. Além
disso - disse ainda o rei - vos dou também um osso do maxilar do seu
respeitável corpo, para guardardes, como relíquia, na vossa igreja, através dos
tempos! Assim me apraz! Assim, pois, procedei!
Os da Vila ficaram admirados com tão alta distinção que
ouviam da boca do rei! Tinham ido a Lisboa a oferecer a sua terra simples e
singela a Sua Majestade e vinham de lá com o nome do santo como padroeiro!
Mas El-Rei continuou. E os que isto ouviram ficaram
atónitos:
— E, mais que isso – disse ele - estes nossos reinos
não estão ainda em paz com Castela, que bastas vezes nos vem afrontando, a nós
e a nossos leais cavaleiros. A vossa terra, na Gardunha, mais próximo da raia, serve
bem os nossos desígnios de guerra contra nossos primos. Pois se nos afigura que
esta cidade de Lisboa, muito digna embora, encontra-se afastada dos campos de
luta, onde são necessárias pessoas e armas. A vossa terra ajuda, por isso,
muito melhor, essa a nossa empresa, se para lá mudarmos a capital do país. Assim,
poderemos garantir, mais solidamente, pela bravura das nossas armas, o nosso
sagrado território de Portugal. Guardar melhor as fronteiras e as terras
conquistadas e a conquistar aos mouros, para sul, onde novas famílias cristãs,
sob a nossa bandeira, se querem instalar, progredir, construir o seu futuro e
criar os seus filhos e netos. Assim o estamos a intentar, em nossas
propriedades, doando terras às expeditas gentes da grei e aos laboriosos frades
dos mosteiros, para que as arroteiem e façam produzir. E para ganharmos o respeito
dos outros reinos temos empreendido também diligências, através da nossa
diplomacia, junto de outras realezas e autoridades da Europa e, particularmente,
de Sua Santidade, o Papa.
Ao contrário de outros políticos que nunca fazem o
que prometem, o rei fez tudo o que havia prometido; ou não fosse a sua palavra
uma palavra de rei! Enviou, então, os seus arautos pelo país fora, ordenando
que em todos os locais públicos das vilas e cidades de Portugal, fosse lida a
sua ordem de transferir a capital do reino de Portugal da cidade de Lisboa para
a Vila de S. Vicente da Beira. E todo o povo do reino ia ficando admirado com aquele anúncio!
Aprazou o rei o início do
mês de janeiro seguinte para que se fizessem os necessários preparativos, a fim
de que no dia 22, dia da festa do Santo Padroeiro, S. Vicente, fosse assinado o
decreto da transferência da capital de Portugal para aquela remota terra das
Beiras. E por forma a que se começasse a mobilizar todo o seu séquito, com
nobreza clero e povo. E que a criadagem se alvoroçasse, a preparar e acomodar
os utensílios e haveres dos seus senhores para a viagem. Os cavaleiros preparavam-se
para acompanhar o rei com os seus estandartes, pendões, achas de armas e
arreios. Toda a imensa mole de gente, que nestas circunstâncias, acompanha o
monarca, já se preparava. E precavia-se contra a aspereza dos caminhos e a
rudeza do tempo durante a mudança. Os artistas da pedra desejosos de servir o
seu rei preparavam-se para desenhar e edificar na Vila vários palácios dignos
de um rei, para instalar a família real, os nobres e a governação do país! Tudo
só encontrando paralelo nas presidências abertas do Dr. Mário Soares!
São Vidente da Beira,
capital de Portugal! Que honra, que distinção!
E andava tudo numa fona! Mas, longe de ser pacífica
e, apesar da autoridade e prestígio do rei junto dos seus fiéis partidários e
seguidores, a sua decisão encontrou forte oposição junto da nobreza e da
burguesia do país que entendia que Lisboa devia ser a capital.
Reuniram-se as Cortes
para discutir o assunto. O mais encarniçado dos defensores de Lisboa como
capital, era um tal Martim de Sousa Coutinho, dono de muitas e extensas terras.
E um dos braços direitos do monarca, seu partidário desde a primeira hora, que
se distinguira em várias lutas travadas, tanto contra sua mãe, D. Teresa, em S.
Mamede no ano já longínquo de 1128, ainda o rei era um jovem príncipe, como
contra o vizinho castelhano, como nas campanhas do sul.
— Quer Vossa Senhoria
mudar a capital de Portugal para S. Vicente da Beira! Bem sei que é uma terra simpática,
de gente patriótica e apoiante das nossas hostes e da nossa causa! Lembro-me
muito bem da batalha que travámos na Oles, abaixo da serra da Gardunha a pouca
distância dessa dita terra, contra os nossos inimigos infiéis que se bateram valentemente,
mas apesar disso, sofreram uma derrota marcante que muito dignificou as nossas
armas, para grandeza da cruz da nossa bandeira branca. Sei-o muito bem! Mas
isso não é razão para que vós, nosso rei, mudeis a capital de Portugal para S.
Vicente da Beira. Lisboa é uma cidade linda! É grande, branca e espalha
claridade pelas suas sete colinas! Tem o sublime Tejo a seus pés! E o mar aqui
tão perto, que parece convidar-nos a um secreto desejo de aventura!
Do lado do rei e da sua
opinião política para mudança da capital, pugnava um outro fidalgo com não
menor valor e prestígio, Mem de Freitas Afonso, um dos seus generais, que se
enchera de bravura nas lutas já travadas, que pediu a palavra ao rei e disse:
— Se o príncipe D. Afonso VII, muito
poderoso rei de Castela e Leão, primo de nosso senhor e rei D. Afonso
Henriques, tem estabelecida a sua capital em Toledo, no interior do seu
território, caem por terra as vossas doutas palavras e argumentos. Não vejo por
que razão não possa ser mudada a capital de Portugal para S. Vicente da Beira. Uma terra airosa, colocada na encosta da serra da
Gardunha, último acidente geográfico das serranias no norte. A partir de cujo sopé,
para sul, se inicia a dita Beira Alentejana, às terras da Idanha e da raia,
sempre a raia, com suas campinas dilatadas!
Estavam os contendores
nesta obstinada luta de argumentos. E era tal a algazarra que grassava no
palácio real e tão pertinazes as suas razões que o próprio rei se perturbou a
pontos de mandar encerrar a discussão, de forma que por muito tempo não se
falasse do assunto que tanto dividira os seus estimados cavaleiros!
Foi, então, que acordei!
Dos sonhos nada nos fica. Mas com este não foi assim. É que, se
esta terra nunca chegou a ser a capital do país - na verdade, isso nunca passou
da estreiteza de uma simples soneca no meu sofá – pelo menos, a mesma terra, desde
que o povo foi, historicamente, apresentá-la ao seu rei, à capital, que ficou a
chamar-se, a Lisboa Pequena.
Lisboa e S. Vicente da Beira, a Lisboa Pequena, são, afinal,
duas irmãs em armas heráldicas. Em ambas figura a barca e os dois corvos que, diz
a tradição, guardavam o corpo do Santo Mártir Vicente, não deixando que os
outros corvos se alimentassem do seu venerável corpo. As próprias cores da
bandeira concelhia de Lisboa e de S. Vicente Beira são iguais, em ambas
figurando o preto e o branco.
O patrono de Lisboa, ao contrário do que muitos pensam, não é
Santo António, o santo de Lisboa e Pádua, e sim S. Vicente que deu o nome à
mesma terra beirã.
Optou-se por pôr muitas paróquias sob a proteção de Nossa
Senhora, pelas razões que já foram apontadas neste blog. Terá havido uma
indicação, nesse sentido, do Concílio de Trento – razão religiosa. Mas também a
partir da Revolução de 1640, em que Portugal ficou sob a proteção de Mãe de
Cristo, muitas mudaram de nome – razão política. E,
motivo pelo qual, Portugal é também chamado Terra de Santa Maria.
Seja como for, São Vicente, o Mártir de Valência, não deixa de
ser – todos o admitem – o Santo Padroeiro Honorário de S. Vicente da Beira!
O sonho, afinal, não foi em vão!
José
Barroso