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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Amato Lusitano

Comemora-se, este ano, o 5.º centenário do nascimento de Amato Lusitano (1511-Castelo Branco / 1568-Salónica). A data foi assinalada com inúmeros realizações que culminaram num congresso sobre Amato Lusitano, nos dias 10, 11 e 12 deste mês de Novembro. No dia de abertura, houve espetáculo no Cine-Teatro Avenida, onde, entre outras artes, foi apresentada uma peça de teatro da minha autoria, levada à cena pelo grupo de teatro da escola onde trabalho. Como a crítica a considerou uma obra asseada, aqui vo-la deixo.


Na corte do papa Júlio III.
(A abóbora é um produto biológico vicentino e também é nosso o topónimo Casal do Grilo!).


O AMATO DA LUSITÂNIA
José Teodoro Prata

Personagens
Amato Lusitano, o doente
Amato Lusitano, o médico
Amato Lusitano, a criança
Mulher muçulmana
Camponesa
Filha da camponesa
A outra camponesa
A Loucura
Personagens que contracenam com a Loucura
Damião de Góis
Erasmo de Roterdão
Embaixador de Portugal
Rapariga com fenda palatina
Mãe da rapariga com fenda palatina
Músicos, pintor, poeta, escultor...
Grupo de crianças-sangue

(À boca de cena, a um canto do palco, jaz Amato Lusitano, num cadeirão, doente de peste. É um homem de 57 anos, de barbas e cabelos grisalhos, com gânglios inchados e negros nas partes visíveis do corpo. Ali ficará durante toda a peça, tratado por uma mulher muçulmana. A sua atitude deve ser, ao longo de toda a representação, de sofrimento e humildade. Nos outros espaços do palco, desenrolar-se-ão as restantes ações desta peça.)

Amato Lusitano, o doente (Dirigindo-se à mulher que o trata): Sai desta casa mulher imprudente. Não vês como fiquei por tratar os doentes de peste? Se aqui continuares, acabará por te acontecer o mesmo. Foge daqui e não voltes mais!
Mulher muçulmana (Dando-lhe de comer, na boca): Um dia bati à sua porta, com o meu filho nos braços, a arder em febre há três dias. O senhor doutor curou-o, mesmo sabendo que sou da religião muçulmana e não tinha nada para lhe pagar. Por isso, não o abandonarei. Coma esta sopinha. Vai ajudar o seu corpo a vencer o mal! (Ele come duas colheradas e depois faz sinal de que não quer mais; a mulher tenta distraí-lo e animá-lo.) Sei que não é daqui. Como se chama a sua terra?
Amato Lusitano, o doente: Vim de muito longe, do reino de Portugal, também chamado Lusitânia, que fica na outra ponta da Europa, para o lado onde o sol se põe.
Mulher muçulmana (Aproveitando para lhe enfiar mais uma colherada de sopa): Então é por ser da Lusitânia que se chama Lusitano!
Amato Lusitano, o doente: Sim, e Amato é o meu apelido de família. Amato Lusitano.
Mulher muçulmana: E é bonita a terra onde nasceu, tão grande como esta nossa Salónica da Grécia?
Amato Lusitano, o doente: Não, é apenas uma vila, mas muito bonita. Espraia-se na encosta soalheira de um pequeno monte, rodeada de muralhas e com um castelo no alto. O castelo não é branco, mas chama-se Castelo Branco. Entre as pedras da muralha cresce uma pequena planta cuja flor parece uma pequena avezinha.
Mulher muçulmana (Compondo-lhe as almofadas): Deve ser muito bonita. E lá, na sua terra, o senhor doutor curava as pessoas como aqui faz?
Amato Lusitano, o doente (Recordando): Depois de me formar em Salamanca, no reino vizinho de Espanha, fiquei em casa pouco tempo e só acudi a algumas pessoas que me pediram ajuda, como tu fizeste um dia. O caso mais interessante passou-se com uma menina que, no pino do sol, ia com a mãe levar o almoço aos ceifeiros e foi mordida por uma víbora.
(No fundo da sala ouve-se um grito de criança. Ambas pousam as cestas que levam. A menina chora e a mãe grita aflita, chupando o sangue da mordedura na perna da filha. Esta começa a desfalecer e a mãe pega-lhe ao colo e grita por socorro. Na boca de cena, encontra uma mulher, pára e coloca a filha no chão.)
Camponesa (A gritar, aflita): Ajuda-me, a minha menina foi mordida por uma víbora!
A outra amponesa: Ata-lhe casca de trovisco acima da mordedura que atalha o veneno!
Camponesa (Aflita): Mas aqui, onde é que vou achar trovisco?
A outra amponesa (Procurando): Olha ali uma touceira! (Parte um ramo, tira a casca e com ela ata a perna da menina.) Agora tens de ir ao médico a Castelo Branco!
Camponesa (Pegando na menina ao colo): Faz-me um favor: vai chamar o meu homem que anda no Casal do Grilo com os ceifeiros. Eu vou indo para casa, a atrelar a burra. Valha-nos Nossa Senhora dos Aflitos! (A mulher sai de cena, por onde entrara.)
Mulher muçulmana: E conseguiu salvar a menina, como fez com o meu filho?
Amato Lusitano, o doente: Bateram à porta dos meus pais três horas depois. A menina já vomitara bílis e vinha atacada de tremores, com vertigens e perda de sentidos. Mandei o cirurgião golpear toda a perna e das feridas saiu um sangue negro. Depois apliquei, nas feridas, um emplastro de alhos e cebolas azedas. Também lhe receitei suco de freixo, para beber, e outros tratamentos. Um mês depois, estava completamente curada.
Mulher muçulmana (Ocupada a arrumar o quarto): Essa é a melhor recordação que tem da sua terra?
Amato Lusitano: Alcançar a cura para os meus doentes sempre foi a razão de ser da minha vida. Mas as melhores recordações são os tempos da minha infância, em casa de meus pais, com os meus irmãos e primos. E nunca esqueci um poema que me ensinou o meu mestre das primeiras letras. Era de um fidalgo-poeta da minha terra, chamado João Roiz ou Rodrigues, como eu, que morreu nos meus tempos de rapaz.
(Entra em cena um rapazito – Amato Lusitano, a criança - que recita o poema.)

Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora d' esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

(Amato Lusitano, o doente, fica triste, desanimado, quase choroso.)
Mulher muçulmana (Com voz calma, maternal): Pronto, já chega de conversa. Descanse agora um pouco.
(Amato Lusitano, o doente, fecha os olhos e dorme. A mulher muçulmana aconchega-lhe a roupa e depois coloca-lhe a mão na testa.)
Mulher muçulmana: Arde em febre. Pobrezinho! Um homem tão sábio e bom, neste sofrimento atroz. Que Alá lhe acude! (Vai buscar uma bacia de água e aplica-lhe uma toalha húmida na testa, refrescando-lhe o rosto e o pescoço.)
Amato Lusitano, o doente (Agita-se e fala em delírio): Loucura… Antuérpia… Erasmo… A loucura do Erasmo… O Góis…Antuérpia…
(A mulher não sai da sua beira, tentando baixar-lhe a febre. Entra em cena uma personagem mitológica, a Loucura, que semeia a discórdia por onde passa. Sugerem-se várias situações, como roubo, assassinato…)
Amato Lusitano, o doente (Continua agitado, em delírio): Antuérpia… Erasmo… A loucura do Erasmo… O Góis… A loucura…
(Aparecem em cena dois homens, conversando animadamente.)
Damião de Góis: Ora, meu amigo Amato, bons olhos o vejam nesta mui nobre e rica cidade de Antuérpia. Que notícias me traz do nosso Reino de Portugal?
Amato Lusitano, o médico: Más notícias, meu caro Damião de Góis. Intolerância, perseguições e fuga! Uma nova diáspora para o povo eleito de Abraão e Moisés, perseguido por todo o reino de Portugal. Só dor e tristeza!
Damião de Góis: (Lamentando): É uma tragédia nacional. Saem os mais esclarecidos e o reino fica privado da sua iniciativa e dos seus cabedais. (Animando-o.) Mas, aqui, nesta pérola da Europa do Norte, podes estar descansado. Muitos da tua religião já aqui se refugiaram e os seus negócios prosperam. Também tu te sentirás como em tua casa. Mas eis que chega o meu amigo Erasmo de Roterdão, ilustre autor da obra “Elogio da Loucura”. (Cumprimenta o monge Erasmo de Roterdão, com uma abraço.) Apresento-lhe João Rodrigues de Castelo Branco, mais um notável médico cristão-novo fugido da nossa madrasta Lusitânia.
Erasmo de Roterdão: É uma loucura! Os grandes da sociedade, políticos e religiosos, levam uma vida de luxo e de prazeres, desprezando os mais humildes. Os cristãos viraram-se uns contra os outros e ninguém se entende. A Igreja de Cristo começa a partir-se aos pedaços, dividida entre católicos, protestantes e anglicanos. E, não satisfeitos, perseguem os crentes das outras religiões do Livro, judeus e muçulmanos. Raros são os oásis de tolerância como esta minha Flandres. (Levantando as mãos para o céu.) Que Deus ilumine as consciências dos homens é tudo o que Lhe peço! (Vão saindo de cena, a conversar, agora em voz baixa.)
(Amato Lusitano, o doente, acorda, já mais aliviado da febre. A mulher muçulmana dá-lhe água a beber.)
Mulher muçulmana: Beba água, porque suou muito (Dá-lhe água e ele bebe.) E agora este xarope que me ensinou a fazer.
Amato Lusitano, o doente: Dormi, mas pouco descansei, porque as más recordações entraram no meu sono. Passa-me aquele livro!
(A mulher pega num livro e entrega-lho. Ele folheia-o.)
Mulher muçulmana: O que há nesse livro?
Amato Lusitano, o doente: Este livro é o quinto volume das minhas Centúrias, onde explico como tratei os doentes.
Mulher muçulmana: E tem alguma história engraçada?
Amato Lusitano, o doente: Por acaso, na cura 14, descrevo um caso muito curioso.
(Entra em cena Amato Lusitano, o médico, e chega uma mulher com a sua filha.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: Senhor doutor, a minha menina tem um buraco no céu-da-boca. Estou farta de correr os médicos e nenhum faz nada!
Amato Lusitano, o médico: Olá, moça. Como te chamas?
Rapariga com fenda palatina (Com voz de cana rachada.): Chamo-me Margariga.
Mãe da rapariga com fenda palatina: Vê, senhor doutor? Todos zombam dela!
Amato Lusitano, o médico: Abre a boca!
(Ela abre a boca e o médico observa. A mãe aproxima-se e aponta.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: É aquele buraco. A comida passa por lá e volta a sair pelo nariz. Pobrezinha da minha menina!
(Amato Lusitano, o médico, medita no caso e tira-lhe o molde do céu da boca, com uma massa.)
Amato Lusitano, o médico: Vou ver o que posso fazer. Venham cá para a semana.
(A mãe e a filha saem e Amato Lusitano, o médico, trabalha numa prótese para colocar na fenda do céu da boca. Mãe e filha voltam a entrar.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: Bons dias, senhor doutor. Mandou-nos voltar cá por via do buraco que a minha filha tem no céu da boca.
Amato Lusitano, o médico: Olá, Margarida.
Rapariga com fenda palatina (Com voz de cana rachada): Olá, senhor doutor.
Amato Lusitano, o médico: Abre a boca. Vou tapar a fenda que aí tens, com esta prótese. (A rapariga abre a boca e o médico coloca-lhe lá uma prótese.) Diz-me lá como se chama a tua mãe!
Rapariga com fenda palatina (Com voz normal.): A minha mãe é Joaquina.
(A rapariga fica surpreendida com o som, o médico sorri e a mãe fica maravilhada.)
Mãe da rapariga com fenda palatina (Exuberante.): A minha rica filha já fala como as demais! O senhor doutor é um santo. Deus lhe pague! Todo o dinheiro do mundo não chega para pagar o bem que fez à minha menina.
Amato Lusitano, o médico (Sorrindo.): São só 5 florins.
(A mãe da rapariga paga-lhe e continuam a falar em voz baixa, enquanto saem de cena.)
Mulher muçulmana: Foi uma sorte para esta rapariga ter sido tratada pelo senhor doutor! E diga-me mais uma coisa: de entre tantas pessoas que curou, qual foi a mais importante.
Amato Lusitano, o doente: Para um médico, todos os doentes são igualmente importantes. Mas percebo o que queres dizer. A pessoa mais famosa que tratei foi o papa Júlio III, na cidade de Roma.
(Em cena, entra um grupo musical e toca. Este grupo pode ser substituído por uma música renascentista gravada e colocada no início desta cena que pretende retratar a corte papal de Júlio III. Num lado, um pintor dá uns retoques num quadro. No outro, um poeta escreve. Estas sugestões podem ser substituídas por outras, desde que se crie o ambiente de uma corte renascentista. Deve existir um símbolo papal, que informe tratar-se da corte pontifícia. Entra Amato Lusitano, levado pelo embaixador de Portugal em Roma.)
Embaixador de Portugal: Agradeço a Vossa Mercê a prontidão com que acorreu à minha chamada. Sua Eminência Reverendíssima está gravemente doente e até agora nenhum médico deu com o mal.
Amato Lusitano, o médico: Eu é que lhe agradeço a Vossa Excelência, Senhor Embaixador, por ter oferecido à corte pontifícia os meus humildes serviços médicos. É para mim uma grande honra contribuir para a cura do chefe da Igreja Católica.
Embaixador de Portugal: E é também um enorme prestígio para o reino de Portugal! Vamos, eu guio-o à ala dos aposentos de Sua Eminência.
(Saem os dois e depois o poeta, o pintor e os músicos, se houver.)
Amato Lusitano, o doente: Felizmente, tive sucesso na cura do papa Júlio III e tornámo-nos grandes amigos. Infelizmente, sucedeu-lhe um papa intolerante com os judeus e vi-me obrigado a fugir de Itália.
Mulher muçulmana (Dando-lhe uma colher de xarope.): O senhor doutor descobriu tantas curas para as doenças! Qual acha que foi a sua maior descoberta?
Amato Lusitano, o doente: Na Universidade de Ferrara, também na Itália, trabalhei com o médico Canano e juntos descobrimos as válvulas da veia ázigos. Foi uma descoberta muito importante, pois permitiu que, alguns anos mais tarde, o meu colega André Vesálio explicasse toda a circulação do sangue.
(Entra em cena um grupo de crianças vestidas de vermelho. Algumas crianças formam em coração, dilatando-se e contraindo-se. A cada contração, sai uma criança, a simular a saída do sangue por uma artéria. Do outro lado, entra no coração uma criança, a simular a reentrada do sangue por uma veia. Nesta encenação, deve tapar-se da vista do público Amato Lusitano, o doente, que não volta a parecer.)
Mulher muçulmana (Olhando Amato Lusitano, o doente, prostrado no cadeirão.): E assim foi a vida deste homem sábio e bom. Nunca lhe conheci mulher ou filhos. Dizia que os seus filhos eram os seus discípulos aprendizes. Nasceu numa terra longínqua e percorreu toda a Europa. Foi médico de reis e papas, senhores e comerciantes, mas nunca recusou tratamento aos mais humildes, cobrando a cada um segundo as suas posses. Morreu sozinho e saudoso da sua pátria natal, ele que foi tão grande entre os homens. Amato Lusitano deixou o seu exemplo, a sua sabedoria e a sua marca na história da Medicina.
(Entram em palco as personagens, vestidas de médico, pela ordem que se segue. Vão ler trechos do Juramento Médico de Amato, escrito em Salónica, nos últimos anos da sua vida. Depois das falas, permanecem no palco, para o aplauso final.)
Amato Lusitano, o médico: «Juro perante Deus imortal e pelos seus dez santíssimos sacramentos, dados no Monte Sinai ao Povo Hebreu, por intermédio de Moisés, após o cativeiro no Egipto, que na minha clínica nunca tive mais a peito do que promover que a Fé intacta das coisas chegasse ao conhecimento dos vindouros.»
Camponesa: «Quanto aos honorários que se costumam dar aos médicos, fui sempre moderado no pedir, tendo tratado muita gente com mediana recompensa e muita outra gratuitamente.»
A outra amponesa: «Muitas vezes rejeitei firmemente grandes salários, tendo sempre mais em vista que os doentes por minha intervenção recuperassem a saúde do que tornar-me mais rico pela sua liberalidade ou pelos seus dinheiros.»
Mãe da rapariga com fenda palatina: «Nunca divulguei um segredo a mim confiado; nunca a ninguém receitei poção venenosa; com a minha intervenção, nunca foi provocado o aborto; nas minhas consultas e visitas médicas femininas, nunca pratiquei a menor torpeza; em suma, jamais fiz coisa de que se envergonhasse um médico ilustre.»
Erasmo de Roterdão: «Para tratar os doentes, jamais cuidei de saber se eram hebreus, cristãos, ou sequazes da Lei Maometana.»
Damião de Góis: «Sempre tive diante dos olhos, para os imitar, os exemplos de Hipócrates e Galeno, os Pais da Medicina, não desprezando as Obras Monumentais de alguns outros excelentes Mestres na Arte Médica.»
Amato Lusitano, a criança: «Fui sempre diligente no estudo e, por tal forma, que nenhuma ocupação ou circunstância, por mais urgente que fosse, me desviou da leitura dos bons autores.»
Embaixador de Portugal: «Nem o prejuízo dos interesses particulares, nem as viagens por mar, nem as minhas pequenas deambulações por terra, nem por fim o próprio exílio, me abalaram a alma, como convém ao Homem Sábio.»
Mulher muçulmana: «Os discípulos que até hoje tenho tido, em grande número e que, em lugar dos filhos, tenho educado, sempre os ensinei muito sinceramente a que se inspirassem no exemplo dos bons.»
Amato Lusitano, o doente (Trazido pelos dois outros personagens Amato Lusitano): «Os meus livros de Medicina nunca os publiquei com outra ambição que não fosse o contribuir de qualquer modo para a saúde da Humanidade. Se o consegui, deixo a resposta ao julgamento dos outros, na certeza de que tal foi sempre a minha intenção e o maior dos meus desejos.»

FIM

Notas:
1. Este texto dramático foi elaborado com objectivos educativos (pedagógico-didáticos).
2. Na realidade, Amato Lusitano inventou uma prótese para a fenda palatina de um rapaz e não de uma rapariga. Mas esta peça de teatro foi escrita à medida e o Clube de Teatro da minha escola (Escola Cidade de Castelo Branco) tem muito mais raparigas do que rapazes. A prótese era uma folha de ouro em forma do céu da boca, com uma haste envolta em espuma que encaixava na fenda.
3. Na encenação, a minha colega Carla Salgueiro dividiu o palco em três espaços: na boca de cena decorreram as animações (embora também nos outros planos), em segundo plano estava Amato Lusitano deitado numa cama e imediatamente atrás havia uma estrutura alta onde foram encenadas as recordações de Amato. As animações estiveram a cargo do Clube de Ginástica Acrobática da minha colega Magda Rocha.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

A República

Decorreram, no ano de 2010, as comemorações do Centenário da República.
Muitas foram as realizações destinadas a assinalar a implantação da Répública, em 5 de Outubro de 1910.
No Arquivo Distrital de Castelo Branco, esteve patente uma exposição de documentação sobre as ocorrências, no distrito, ligadas a tão grande acontecimento nacional.
De São Vicente da Beira, um registo no livro de correspondência do Governo Civil, informando que o Regedor de São Vicente da Beira «Participa que é Republicano para todos os efeitos e deseja continuar no cargo de regedor da mesma freguesia.» Não vem indicado o nome.
Foram muitos séculos de miséria e o desenrascanço passou a estar inscrito nos nossos genes!
Na minha escola, a data foi assinalada com grande solenidade. Uma das realizações foi a representação, pelo Clube de Teatro, de uma peça de teatro escrita por mim, sobre a acontecimento cujo centenário se comemorava.
A peça tinha um objectivo didáctico e destinou-se aos alunos do 4.º ao 7.º anos. Como resultou bem, aqui vo-la deixo. Pode ser encenada em qualquer altura, como forma de ensinar a implantação da República. O discurso da Menina Monarquia é um documento histórico importante: o comunicado de Machado Santos ao povo de Lisboa!



A Dona Monarquia e a Menina República
José Teodoro Prata

Personagens:
Dona Monarquia
Menina República
Dirigente republicano 1
Dirigente republicano 2
Zé Povinho
Popular 1
Popular 2
Popular 3
Popular 4
Popular 5
Popular 6
Popular 7

Acto Único

Em cena, atrás, estão dois dirigentes do Partido Republicano, sentados a uma mesa. No meio deles, está uma bela jovem sorridente, vestida com as cores da República (verde e vermelho). Ao fundo, vê-se o brasão da Câmara Municipal de Lisboa, uma câmara republicana desde as eleições de 1908.
Na boca da cena, anda uma senhora vestida com as cores da Monarquia (azul e branco), muito pintada, mas já caquéctica, embora solene, apoiada numa bengala. Demonstra angústia e nervosismo.
Os populares vêm de fora da cena, do lado do público, de preferência, permanecendo depois até final da peça. Eles são o público-alvo a quem se dirigem os populares recém-chegados.
Os dois dirigentes republicanos e a Menina República conversam entre si, em voz baixa. Sempre que os populares falam, eles ouvem atentos e depois retomam as suas conversas. No início, estão nervosos e preocupados, mas a partir do avanço de Machado Santos para a Rotunda, começam a animar-se, com excepção do momento em que Paiva Couceiro bombardeia as posições republicanas na Rotunda. O ponto alto do entusiasmo dos dirigentes republicanos é a rendição do Quartel-General, a que se segue a proclamação da República.


Dona Monarquia(Entrando em cena, de preferência vinda do público, para dar tempo a que se ouça mais de metade do hino monárquico. Quando chega à boca da cena, fala para o público.) Tristes tempos estes, senhoras e cavalheiros, em que já não se respeitam a vida e a tradição. Oitocentos anos de História são espezinhados pelos homens do povo que ignoram o que é a honra e desprezam as instituições.
Os alicerces de Portugal foram erguidos pelas realezas de Leão e Castela e de Borgonha. Delas nasceu o rei fundador, D. Afonso Henriques, o primeiro da dinastia de Borgonha.
Zé Povinho(Estava sentado na primeira fila do público e levantou-se. Aparte, para o público) D. Afonso era um gigante! A sua espada pesava tanto, que eram precisos três homens para a levantarem!
Dona Monarquia(Continuando) Depois, em 1383-85, este mesmo desrespeitoso povo não aceitou os direitos sagrados da filha de D. Fernando e impôs um rei novo. Mas encontrou algum homem digno de reinar, fora da linhagem dos reis? Não, o próprio povo o reconheceu e escolheu D. João, o filho d´el-rei D. Pedro.
Zé Povinho – Viva a padeira de Aljubarrota!
Dona Monarquia – E iniciou-se a dinastia de Avis, a qual levaria às longínquas terras dos mares remotos o glorioso nome de Portugal. Depois aconteceu a tragédia de Alcácer Quibir e Portugal ficou a ser governado pela Casa Real de Espanha. Por pouco tempo. Em 1640, um valoroso grupo de nobres portugueses expulsou os espanhóis e entregou o poder ao herdeiro da linhagem de Avis, o duque de Bragança, D. João.
Zé Povinho(Olhando para o céu, de mãos postas) Valha-nos Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal!
Dona Monarquia – Este D. João IV iniciou a quarta dinastia, a mesma que ainda hoje carrega aos ombros o pesado fardo de governar Portugal. Mas as modas francesas estão a infectar o nosso Reino e o respeito e reconhecimento deixaram de ser valores que os portugueses prezem.
Há dois anos, vis criminosos mataram o amabilíssimo rei D. Carlos, grande entre os maiores nas artes, na ciência e na política. Rei amado e respeitado por toda a Europa, foi neste povo mal agradecido que encontrou os seus algozes.
Zé Povinho(Aparte) Rei morto, rei posto.
Dona Monarquia – Sucedeu-lhe o filho, D. Manuel. É muito jovem e impreparado, pois o primogénito D. Luís Filipe também encontrou a morte no trágico regicídio.
O futuro a Deus pertence e que Ele proteja a Santa Monarquia e a Casa Real dos Braganças!
Zé Povinho(Fazendo o gesto de quem rouba) Os Braganças…
Dona Monarquia – Mas temo pelos dias incertos que vivemos. Os republicanos enganam o povo, com promessas de facilidades. E têm cada dia mais apoiantes. Esta Câmara de Lisboa já eles a governam, mas querem mais, só se vão contentar quando tiverem tudo!
Zé Povinho(Fazendo um gesto com o polegar para cima) Os republicanos…
(A Dona monarquia afasta-se para um lado, desgostosa, e senta-se num cadeirão. Entram dois populares, apressados e aflitos, e falam para o público.)
Popular 1 – Uma desgraça, uma tragédia imensa! Mataram o Doutor Miguel Bombarda!
Popular 2 – Foi no Hospital de Rilhafoles. Um maluco do manicómio deu um tiro ao Doutor Miguel Bombarda!
Popular 1 – Contou-nos um merceeiro da Rua do Ouro, que soube por uma criada do Conde da Cotovia, que o ouviu da boca do cocheiro que fora com o senhor às fazendas do Lumiar e viu uma grande confusão à porta do Hospital, quando passou em Santana.
Popular 2 – Coitado do Doutor Miguel Bombarda. Grande médico e grande político republicano! (Meio em segredo) Consta por aí que o Partido Republicano se prepara para derrubar a Monarquia. O Doutor Miguel Bombarda vai fazer muita falta!
Zé Povinho – Já se viu uma coisa assim? O doutor a tratar o maluco e ele PUM!, mandou-o desta para melhor.
(Os dois populares continuam a conversar sobre o assunto, em voz baixa. Os dirigentes republicanos e a Menina República dão sinais de grande desgosto e preocupação, pela morte de um dos seus principais dirigentes.)
Popular 3(Entra apressado e diz, em tom confidencial) A conspiração republicana foi descoberta. O Governo sabe de tudo e já pôs as tropas de prevenção!
Popular 1 – Mas estes republicanos não conseguem preparar um golpe de Estado em segredo? Nos últimos anos, já é a terceira ou quarta vez que isto acontece!
Zé Povinho – Querem o poleiro dos monárquicos, mas são incompetentes como eles!
Dona Monarquia(Contente) Óptimo, Óptimo!
Popular 4(Entrando) Que tragédia, que desgraça! Morreu o Almirante Cândido dos Reis.
Popular 3 – Quando? Onde?
Popular 4 – Há pouco, na Azinhaga das Freiras. Matou-se com um tiro de pistola! Quem me contou foi a porteira do meu prédio, que o ouviu do aguadeiro, que soube por um peixeiro que voltava de Odivelas.
Popular 1 – Mas porque é que se suicidou? Tinha medo de ser preso?
Popular 4 – Qual medo? O Almirante Reis era muito corajoso! Diz-se que chefiava o golpe militar republicano, mas desorientou-se, porque muitos oficiais republicanos não revoltaram as suas unidades militares e os poucos que pegaram em armas já estão a abandonar a Rotunda.
Popular 3 – Coitado do senhor Cândido dos Reis, almirante da Marinha, deputado das Cortes e um grande republicano!
Zé Povinho – Não se aguentou. Essa é que é essa!
Popular 3 (Num lamento) São só desgraças! Os republicanos estão feitos, não têm hipóteses. Nunca vamos sair da cepa torta.
Dona Monarquia(Aparte, para o público, mostrando contentamento) Isto está a correr às mil maravilhas!
(Ambiente de consternação entre os dirigentes republicanos e também entre os populares.)
Popular 5(Entra eufórico) Machado dos Santos marchou com as suas tropas para a Rotunda e reorganizou a resistência republicana. Os militares e os populares já conseguiram rechaçar a investida das tropas fiéis à Monarquia.
Popular 4 – Como é que ele conseguiu, quando tudo parecia perdido?
Popular 5 – Foi a coragem, a bravura dos heróis! Os chefes da revolta queriam desistir e muitos oficiais já tinham abandonado as suas posições, no alto da Avenida da Liberdade. Então, eis que irrompe Machado Santos.
Zé Povinho – O comissário Machado Santos é o herói da Rotunda!
Popular 5 – Os republicanos ganharam novo ânimo e já cantam vitória! Centenas de populares da Carbonária juntaram-se a ele!
Popular 6(Entrando precipitadamente, ao mesmo tempo que se ouvem explosões.) Quem nos acode? Fujam todos!
Popular 5 – O que é? O que se passa?
Popular 6 – Os navios ancorados no Tejo estão a bombardear os ministérios do Terreiro do Paço. As pessoas fogem da Baixa. Aqui, na Câmara Municipal, corremos perigo!
Zé Povinho – É melhor dar às de Vila-Diogo!
Popular 5 – Aqui é que estamos seguros! (Apontando para os dirigentes republicanos) Os revoltosos não vão bombardear uma câmara republicana, onde está concentrado o directório do Partido Republicano!
Popular 6 – O Palácio das Necessidades também foi bombardeado. O rei D. Manuel II quis chefiar um contingente militar e atacar os revoltosos, mas não o deixaram e teve de retirar para Mafra!
Dona Monarquia(Exclamando, num lamento, aparte, para o público.) O meu menino!
Zé Povinho(Rindo, com escárnio) Coitadinho do menino da mamã!
Popular 2(Fazendo os gestos de chuchar e roubar) Esse não volta a chuchar o povo. Os monárquicos estão entalados entre os navios de guerra no Tejo e as tropas do Machado Santos na Rotunda. Estão no papo. Vou-me juntar aos patriotas. Viva a República!
(Ninguém o secunda, todos receosos do desenrolar dos acontecimentos. As personagens, em palco, conversam entre si, mas cada grupo em separado.)
Popular 7(Entrando) Trago más notícias. A tropa do Paiva Couceiro bombardeou toda a noite as posições republicanas na Rotunda! Está a fazer estragos! Tem um poder de fogo muito forte e o Machado Santos não lhe consegue responder.
Zé Povinho – Raios! A coisa está a ficar preta!
Dona Monarquia(Contente, num aparte, batendo com a bengala no chão) Boa!
Popular 2 – (Entra, agitando uma bandeira branca) Calma, calma! Foi declarada uma trégua, para fazer sair os estrangeiros que estão no Avenida Palace. O pedido veio do diplomata alemão. O hotel foi ontem bombardeado e eles temem pela vida.
Popular 7 – E na Rotunda? O Machado Santos aguenta-se?
Popular 2 – Qual quê! Aquilo parece o arraial de Santo António! À chegada do diplomata alemão, a pedir tréguas, os republicanos viram a bandeira branca e julgaram que eram os monárquicos a render-se. Armou-se a festa e só faltou a sardinha assada!
Zé Povinho – Viva a República!
Popular 6 – (Todos ficam ansiosos, na expectativa das novidades.) Mas… E o Paiva Couceiro?
Popular 2 – O Machado Santos deu um golpe de mestre! Lançou-se Avenida abaixo, de rompante, com as tropas e o povo todo atrás, e tomou de surpresa o Quartel-General, no Rossio.
Zé Povinho – Xeque-mate! O Machado Santos é o pai da Pátria!
Popular 4 – E o Governo?
Popular 2 – Já não há Governo.
Zé Povinho – A velha Monarquia esticou o pernil! Viva a República!
Populares – Viva!
(A Dona Monarquia sofre um ataque e cai no chão. É ignorada por todos. Entretanto, a Menina República e os dirigentes republicanos dirigem-se à boca de cena. No meio, vem a Menina República, de braço dado com os dirigentes republicanos. Colocam-se na boca de cena, ao centro, em linha. Dos lados, ficam os populares, empunhando bandeiras republicanas.)
Menina República – Cidadãos! Um facto notável se acaba de dar, que ficará gravado a letras de ouro na história da nossa querida Pátria. A República, devido aos esforços dos bravos que acamparam na Rotunda, dos valentes marinheiros e da nobre e valorosa população civil da cidade de Lisboa, foi hoje proclamada! A dinastia de Bragança, que há 270 anos, pesando sobre o país, o levou à ruína, à miséria e ao desprezo das nações estrangeiras, vai a caminho do exílio e nunca mais os seus representantes ousarão macular o solo sagrado da Pátria!
Zé Povinho – (Aparte, com gestos a enaltecer os atributos físicos da Menina República) Viva a República!
Populares – Viva!
Menina República – Cidadãos! O vosso gesto altivo levou ao conhecimento do Mundo inteiro, que neste canto da Europa existe um Povo que deseja, em liberdade, trilhar o caminho do Progresso. Nunca mais os estranhos deixarão de olhar com respeito os filhos de Portugal!
Zé Povinho – Somos uns valentões! Viva Portugal!
Populares – Viva!
Menina República - A luta terminou! Já não há inimigos! Hoje todos os portugueses, trocando abraços fraternais, vão colaborar na obra da regeneração da pátria! Já não há inimigos! Há só irmãos!
Em nome do governo da República, louvo todos aqueles que lutaram pela República e, numa luta homérica de um contra dez, tão bem souberam defender os seus ideais: Pátria e Liberdade. Viva a República! (Os populares e o público gritam vivas)
Dirigente republicano 1(Toma a palavra, para anunciar a constituição do novo governo. Ao nome de cada personalidade, os populares batem palmas e dão vivas) Cidadãos! Cabe-me a distinta honra de anunciar ao país a constituição do Governo Provisório da República. Presidente do Governo: Teófilo Braga; Ministro da Justiça e Cultos: Afonso Costa; Ministro das Finanças: Basílio Teles; Ministro dos Negócios Estrangeiros: Bernardino Machado; Ministro do Fomento: António Luís Gomes; Ministro da Guerra: Coronel António Xavier Correia Barreto; Ministro da Marinha: Comandante Amaro Justiniano de Azevedo Gomes.
Dirigente republicano 2(Com solenidade) Povo de Lisboa! Juntemos as nossas vozes e entoemos “A Portuguesa”, o hino patriótico que os nossos pais cantaram nas manifestações contra o Ultimato Inglês e na revolta do 31 de Janeiro (Cantam todos):

Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Oh pátria sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!

Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela pátria lutar!
Contra os canhões
marchar, marchar!

(No final da 1.ª estrofe, a comitiva avança em direcção à saída, entoando o refrão. No final, dão-se vivas à República. A Dona Monarquia fica no chão, abandonada, ou é levada em padiola, por dois populares, que fecham o cortejo festivo.)

FIM