Fez há poucos dias um ano que festejámos as bodas de ouro sacerdotais do Pe. Hipólito Jerónimo. Na altura, foi posta à venda a sua autobiografia, da qual deixo aqui um trecho.
Capítulo III
Ida para a escola
(...)
Entrada na escola; a professora Dona
Susana
A
escola primária foi um tempo feliz para mim. Adorava ir à escola! Gostei desde
o primeiro dia. Durante quatro anos, fui aluno da professora Dona Susana
Barroso, senhora jovem, com raízes familiares na terra.
A
Dona Susana era excelente professora e catequista, delicada de corpo e de
trato. Raramente levantava a voz ou recorria à cana e muito menos ainda à
palmatória para manter a ordem. Só me lembro de ter levado uma leve palmatoada,
durante os quatro anos de escola primária!
Um
ou dois anos depois, chegou outra professora, a Dona Teresa, irmã da Dona
Susana, bem mais alta que ela. Ficou com as raparigas. Quando acontecia, embora
raramente, que uma delas faltava, a outra juntava os alunos de ambas. Havia
ainda outros dois professores bastante mais antigos, um casal, a quem
chamávamos os professores velhos.
A
escola primária tinha, pois, ao todo, quatro professores e oito turmas, quatro
de rapazes e quatro de raparigas.
O edifício das escolas
As
escolas funcionavam no edifício da antiga câmara municipal de São Vicente da
Beira. Situado no centro da vila, era
e ainda hoje é uma grande construção nobre, de granito. O espaço de recreio era
a praça da vila, logo em frente. Tudo o que era mais importante ficava, aliás,
muito perto: a igreja paroquial, a igreja da Misericórdia, o pelourinho, a
farmácia, os fontanários e os sanitários.
O coreto
No
centro da praça, erguia-se o coreto da música, onde atuava a filarmónica local, em dias de festa. O rés do chão
servia para arrumações, mas também como prisão ou cadeia, por algumas horas. Quando havia uma zaragata maior ou
alguma bebedeira mais carregada, principalmente por ocasião das festas, a
autoridade local, o regedor, que, nesse tempo, era o senhor João Ribeiro, homem
respeitado pela estatura e modo de ser, metia ali o prevaricador.
No
dia seguinte, se havia escola, nós, os miúdos, íamos logo meter-nos com o
preso. Chamávamos-lhe bêbado e outros mimos. Quando isso chegava aos ouvidos da
professora dona Susana, era certo e sabido haver ralhos, algum leve puxão de
orelhas e, de longe em longe, uma reguada.
Visita do Pe. Caio à escola de São
Vicente da Beira
O
ano escolar de 1948/49 aproximava-se do fim e começava já a viver-se com alguma
expectativa o final da escola primária que culminava no respetivo exame da
quarta classe em Castelo Branco.
Eis
se não quando, aconteceu algo de absolutamente inesperado. Num dia de maio ou
junho, da parte da tarde, irrompeu na sala o pároco Pe. Ramalho, senhor
vigário, no tratamento local, acompanhado de uma figura roliça de sacerdote, o
Pe. Caio, com sotaque brasileiro. Este, de repente e sem mais delongas,
lançou-nos o desafio:
-
Quem quer vir para o novo seminário missionário que vai abrir no Tortosendo?
Cinco
levantámos logo o dedo: o meu primo Francisco Nicolau Jerónimo, o José Maria
Roque Lino, o Francisco Alves, o Manuel Dias Clemente e eu. O Pe. Caio
perguntou-nos imediatamente onde é que moravam os nossos pais, pois queria
falar com eles.
Foi
tudo tão imprevisto e rápido que nós quase nem respirávamos.
Conversa do Pe. Caio com a minha mãe
O
Pe. Caio obrigou-me a levá-lo logo até à casa dos meus pais, pois era a que
ficava mais longe. A minha mãe andava na barreira a regar couves plantadas de
fresco, com a água que alguém tirava à burra da levada. Sem perder tempo e
enquanto a minha mãe limpava o suor do rosto com o avental e procurava
refazer-se da surpresa e compreender o motivo e o alcance da visita, o Pe. Caio
atirou-lhe:
-
Vai abrir um novo seminário no Tortosendo, um seminário missionário e eu ando a
recrutar rapazes que sejam bons mininos e
bons estudantes e possam vir a ser bons seminaristas.
O senhor Vigário e a senhora professora disseram que aqui o seu minino, o José – e apertava-me o pescoço
com força – é bom aluno, inteligente e bem comportado. É muito bom que ele
venha para o seminário! A senhora não acha?
A
minha mãe respondeu a tartamudear:
-
Isso era bom, era … mas não pode ser! Fica muito caro e nós não podemos pagar a
pensão, porque somos pobres e o Zezito tem muitos irmãos, alguns ainda mais
pequenos do que ele. Gostava muito que ele fosse, porque gosta de estudar,
aprende bem e diz que quer ser padre, mas nós não podemos pagar a mensalidade…
Além disso, também é preciso preparar-lhe o enxoval. Tudo isso custa muito
dinheiro e nós não temos posses.
Enquanto
falava, uma lágrima desprendeu-se-lhe dos olhos…
-
Qual muito caro! - replicou vivamente o Pe. Caio - A senhora decerto tem alguém
conhecido e amigo ou algum parente um pouco mais abastado que talvez possam e
até desejem contribuir com alguma coisa, para a roupa e mesmo ajudar a pagar a
pensão do minino… É preciso confiar
na Divina Providência! Nossa Senhora também vai ajudar…
-
Não, não! Tenho muita pena, mas não pode ser. - soltou, aflita, a minha mãe.
O
Pe. Caio, porém, continuou a batalhar por mais algum tempo. Disse-lhe que
falasse com o marido e rematou:
-
Fulano e cicrano, colegas de escola do seu José, também vão. Os pais deles já
disseram que sim e agora vou falar com os que ainda faltam. A senhora e o seu
marido certamente não querem ser os únicos pais que não deixam ir o filho para
o seminário… Isso seria muito mau! Eu fico até amanhã em casa do senhor vigário e, antes de me ir embora, quero uma resposta, que deve ser sim.
Em
casa dos meus pais, começou logo a viver-se a ideia de eu ir para o seminário,
com alguma intensidade, ora dizendo-se que sim, que se havia de arranjar alguma
maneira de preparar o enxoval e pagar a mensalidade, ora repetindo-se que a
família não podia suportar as despesas e … ponto final.
Exame da 4.ª classe em Castelo Branco
Entretanto,
aproximava-se o final do ano escolar e o exame da 4.ª classe em Castelo Branco.
Para isso, fomos todos os alunos da 4.ª classe para Castelo Branco e ficámos
uns três ou quatro rapazes hospedados na mesma casa, pertencente a parentes
distantes de dois de nós. A mãe do Zé Maria Lino e a do Chico Alves
revezaram-se a ficar connosco e a cuidar de nós.
Eu,
sempre mais ou menos distraído, arranjei logo maneira de bater com a canela da
perna direita no rebordo de uma banheira velha que servia de floreira, no
pequeno jardim interior da casa. Num primeiro momento, a ferida não me causou
grande incómodo, mas continuava a sangrar e por isso lá tive de ir fazer
curativo ao hospital. Ainda hoje tenho a marca do golpe na canela…
O
exame da quarta-classe decorreu sem sobressaltos (...).
José Teodoro Prata