Os 250 anos de elevação de Castelo Branco a cidade (em 1771) foram assinalados com várias iniciativas, entre as quais a publicação deste livro de muitos autores: vários da cidade, dois de Alcains e um de cada freguesia do concelho.
Fui convidado pela nossa Junta de Freguesia para escrever sobre nós. Tentei retribuir esta honra com um texto que nos dignificasse e penso que o consegui: na apresentação fui um dos autores destacados pelo apresentador (Dr.º João Ruivo) e a Paula Reis, do Louriçal, antiga presidente da Junta e cronista do Reconquista, escreveu no último número do jornal uma crónica a partir de ideias lançadas no meu texto, reforçando-as (a crónica intitula-se Gardunha 2021).
Só muito recentemente me apercebi da responsabilidade que carreguei aos ombros e por isso o que atrás deixei foram meros rebuçados que me deram alguma tranquilidade. Escrevi primeiro um texto histórico, mas após um dia de trabalho concluí que não era isso que nos interessava. O passado tinha de constar para explicar o presente e projetar o futuro. O espaço era limitado e houve aspetos que ficaram necessariamente de fora. Mas penso que ficámos bem representados e que o texto reflete o que somos e mostra as nossas potencialidades.
O livro é uma coletânea de textos, a maioria muito bons. Estará certamente à venda na Biblioteca Municipal de Castelo Branco. Aqui vos deixo o texto que nos representa:
Viver
com qualidade em São Vicente da Beira
A
freguesia de São Vicente da Beira é terra de transição entre a Gardunha, o
campo albicastrense e a charneca encravada no arco que a serra faz para
sudoeste. Abundam os vestígios arqueológicos que comprovam a presença humana
nos últimos três milénios antes de Cristo e nos séculos seguintes, até à
fundação da nacionalidade. De realçar, o topónimo Paradanta (Pedra de anta),
uma aldeia de montanha; o Castelo Velho, num penhasco alcantilado por cima do
Louriçal, com quem o partilhamos; inúmeros vestígios arqueológicos romanos no
sopé da serra, entre a Ocreza e a Ribeirinha, sobretudo na zona das Vinhas.
Conta
a lenda que, em meados do século XII, os moçárabes desta zona ajudaram D. Afonso
Henriques contra os muçulmanos, na batalha da Oles, limite entre São Vicente e
o Louriçal. Em agradecimento, o rei autorizou-os a fundar uma povoação, a que
deu o nome de São Vicente, ofertando-lhes algumas relíquias do santo, cujos
restos mortais acabavam de chegar a Lisboa, resgatados do Promontório Sacro,
ainda sob domínio dos infiéis.
Este
território vicentino foi depois delimitado pelo foral concedido por D. Sancho
I, em 1195. Na doação que seu pai fizera da Herdade da Cardosa à Ordem do
Templo ficara de fora o território da margem direita da Ocreza e nele o rei
traçou os limites do novo concelho: os cumes da Gardunha, a norte, a ribeira de
Almaceda, a oeste, e a ribeira da Ocreza, a sul e a este.
Destes
anos primordiais serão as ermidas de Santiago, junto à Partida, e da Senhora da
Orada, já dentro da serra, junto à via romana.
Os
anos finais da Idade Média e o alvorecer da Modernidade foram fecundos por
aqui. Datam deste período a maioria dos templos da freguesia e um rico
património artístico, quase na totalidade de caráter religioso.
Outro
período marcante foi o século XVIII, que constituiu o culminar deste mundo
antigo a que se convencionou chamar Antigo Regime. São Vicente da Beira tinha
juiz de fora licenciado; era terra de chegada de um importante fluxo migratório
com origem na zona interior do reino entre o Zêzere e o Douro; as filhas da
elite local de médios lavradores e rendeiros casavam com os filhos de elites de
outras zonas; a Vila tornou-se um dos principais polos industriais do atual concelho
de Castelo Branco, beneficiando da ligação com a Real Fábrica de Panos da
Covilhã.
Neste
século XVIII, que também foi marcante para a vila de Castelo Branco, cuja
elevação a cidade, em 1771, evocamos na passagem dos 250 anos, assistiu-se a um
reforço da ação governativa. São Vicente da Beira tinha Castelo Branco como
centro regional. A supervisão do concelho vicentino era feita pelo corregedor
da Comarca, pelo provedor da Provedoria e pelo bispo da nova diocese, sediados
em Castelo Branco. Pela nova cidade passava tudo o que ultrapassasse a esfera
concelhia.
Em
1807-12, as Invasões Francesas foram o princípio do fim deste Antigo Regime,
pela desorganização política, económica e social que trouxeram ao reino de
Portugal. Em 1820, chegou o liberalismo, a que se opôs quase toda a elite
política, económica e religiosa da região e consequentemente também a de São
Vicente da Beira. No nosso caso de forma mais gravosa, pois a família dos
Condes de São Vicente, grandes proprietários absentistas, integraram o exército
miguelista, na guerra civil
Uma
vez consolidado o liberalismo, os médios proprietários e rendeiros apossaram-se
das terras comunais e compraram as da Igreja e dos proprietários absentistas,
fortalecendo as emergentes casas agrícolas (visconde de Tinalhas, da Casa Cunha
e da Casa Conde).
Mas
o antigo mundo da autossuficiência agrícola e artesanal estava a mudar: a
indústria recentrou-se na Covilhã e as grandes rotas comerciais passavam no
campo, tal como mais tarde a linha do caminho de ferro. Por isso o concelho de
São Vicente da Beira foi extinto em 1895, no contexto de uma reforma
administrativa do reino.
Hipólito
Raposo escreveu que a extinção foi a contento dos comerciantes de Castelo
Branco e de facto parece que ficámos zangados por umas boas décadas, embora a
cidade tivesse continuado a ser o nosso centro administrativo.
O
dinamismo industrial dos anos 70 do século passado, no eixo Alcains-Castelo
Branco, recentrou-nos a sul, num tempo de desaparecimento do mundo rural, que
na Vila significou o fim das grandes casas agrícolas e o reencontro com nós
próprios.
Estas
últimas décadas têm sido de afirmação de uma nova identidade vicentina que
ainda não sabemos muito bem como é (porque em constante construção). Deixo
algumas ideias-força que nos definiram no passado e podem ajudar-nos a contruir
o futuro.
A
serra da Gardunha como unidade
orgânica de plantas, bichos e homens, o habitat a que pertencemos, desde
sempre, inscrito já no nosso código genético. Falta-nos um projeto integrador
para as três freguesias serranas (Louriçal, São Vicente e Almaceda), em
articulação com o que se faz na vertente norte, concelho do Fundão.
As albufeiras do Penedo Redondo, Pisco, Santa
Águeda e no futuro talvez Barbaído, todas alimentadas na totalidade ou em parte
pelas águas que escorrem da Gardunha, na nossa freguesia. Enriquecem-nos a
fauna e a flora e constituirão um entrave à desertificação futura.
O Castelo Velho, a escassos metros da rota da
Gardunha do Geoparque NaturTejo, é um património histórico e natural incontornável.
Nunca estudado, continua a esconder os segredos da civilização castreja que ali
floresceu e o papel que desempenhou durante a Reconquista, juntamente com os
seus filhos, o Castelo Novo e a Torre do Louriçal.
O caminho de Santiago, percurso de ares e águas
frescas e saudáveis. Seguia de Castelo Branco, por Cafede (ponte e ermida de
Santiago), Freixial, em linha reta para o Mourelo, Partida (capela de
Santiago), subindo para a Paradanta até à portela que corta a serra ao meio e é
a sua travessia mais baixa, continuando depois pelo vale da ribeira das
Ximassas até ao Castelejo, rumo a Compostela.
A ermida da Senhora da Orada, num recanto
acolhedor da Gardunha, junto à estrada romano-medieval que seguia do campo para
a Beira, local ideal para o viajante descansar e se refrescar, antes de subir
para a Portela de São Vicente, hoje Alto da Portela. No século XVI, ainda o
povo se juntava e ali vinha fazer novenas, proibidas pela Igreja. Alberga hoje
o retábulo policromado da igreja do extinto convento das religiosas
franciscanas, em adiantado estado de degradação. Nas imediações, são exploradas
as águas Fonte da Fraga.
O património artístico gótico-manuelino e
renascentista é outra das nossas potencialidades. Pinturas e esculturas
integrarão o futuro museu de arte sacra, sendo algumas obras de proveniência
estrangeira. A família Costa, daqui originária, que desempenhou o cargo de
Armeiro-Mor do reino, nos séculos XVI a XVIII, detinha a comenda de S. Vicente
da Beira da Ordem de Avis, cabendo-lhe administrar a Igreja. Foi a esse título
que terá adquirido algumas destas obras de arte, assim como outras incrustadas
nas paredes das capelas e de casas particulares.
A religiosidade popular, que tem como momentos
altos as romarias de Santiago e da Senhora da Orada, a Semana Santa, a
Procissão dos Terceiros e a festa do Santo Cristo.
A
singularidade das nossas terras. Nas aldeias, habitações,
templos, fontanários, fornos, e moinhos de um tempo que persiste na memória. As
nossas aldeias de montanha, Vale de Figueira, Paradanta e Casal da Serra, tão
em harmonia com a paisagem como as da Charneca (Tripeiro, Mourelo, Violeiro,
Pereiros e Casal da Fraga). A seguinte frase do ti Meguel Jerolme diz
tudo sobre as suas gentes: «Nunca te preocupes, filho. Aqui, na Charneca, há
sempre uma mesa com qualquer coisa para comer e uma cama, se for preciso, nem
que seja uma faixa de palha». E a Vila, a lembrar o urbanismo romano: a grande
praça com o seu pelourinho manuelino, ladeada pela Igreja, Misericórdia e Casa
da Câmara, e depois as ruas em quadrícula.
E
a terminar, as nossas gentes, desde os mais ilustres, que se foram da
lei da morte libertando, aos mais humildes, todos nos deixaram por herança este
chão onde só queremos ser felizes.
José
Teodoro Prata