sábado, 3 de setembro de 2022

Espaços de leitura

A notícia desta exposição de fotografias foi divulgada em vários semanários regionais. Esta foi retirada do Reconquista.

O desafio feito pela Alma Azul e Câmara Municipal de Castelo Branco foi que se fotografassem possíveis espaços de leitura, o que permitiu dar asas à imaginação e criatividade dos participantes (ler um livro é bom em qualquer lugar…). O resultado foi interessante e muito variado.

Em São Vicente tínhamos várias opções, mas resolvemos participar com esta fotografia, se calhar demasiado óbvia, mas que serve também de divulgação de um espaço que está a renascer na nossa terra:

Algumas pessoas conhecem e já terão frequentado este espaço, mas haverá ainda quem não saiba que temos um lugar como este, com muitos livros que podem ajudar-nos a crescer e voar para lá da pequena migalha do universo que nos coube na vida. São isto, as bibliotecas!

Existem de facto muitos livros, doados por instituições ou por particulares, mas que estavam arrumados sem grande critério, alguns em segunda fila nas prateleiras (faltam-nos algumas estantes…) e, por isso, de difícil acesso. O trabalho que tem estado a ser feito desde há algum tempo é, tanto quanto possível, separar os livros por temas, autores, e idades, e criar instrumentos que tornem a biblioteca num espaço cómodo, funcional.

Apesar do envolvimento de muita gente (o Miguel Jorge que criou uma página na internet e iniciou a separação dos livros, alguns ainda encaixotados; a Elsa Santos que criou um programa para registar o inventário e fazer as requisições; a Sara Varanda que ajudou a selecionar parte dos livros e a Isabel Teodoro que organizou a secção infanto-juvenil; a São Luzio, a Celeste Teodoro e eu a fazermos um pouco de tudo), ainda temos muito trabalho pela frente, mas esperamos dar boas notícias em breve.   

M. L. Ferreira       

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Retrato de antepassados

«Nunca fui afeto a essa vaidade necrófila que leva tanta gente a pesquisar os que passaram, buscando os ramos e os enxertos da arvora que nenhuma botânica menciona - a genealógica. Entendo que cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que por cá anda. Saber de onde vimo e o que é que nos gerou, apenas nos dá um pouco mais de firmeza civil, apenas concede uma espécie de alforria para a qual em nada contribuímos, mas que poupa respostas embaraçosas e olhares mais curiosos do que a boa educação haveria de permitir. Ser filho de alguém bastante conhecido para que não fiquem em branco as linhas do cartão de identidade, é como vir ao mundo com uma espécie de salvo-conduto.

Para mim, nada me incomoda saber que para lá da terceira geração reinam as trevas completas. É como se os meus avós houvessem nascido de geração espontânea num mundo já todo formado, do qual não tinham qualquer responsabilidade: o mal e o bem eram obra alheia que a eles só competia tomar nas mãos inocentes. Apraz-me pensar assim, principalmente quando evoco um bisavô materno, que não cheguei a conhecer, oriundo da África do Norte, a respeito de quem me contavam histórias fabulosas. Descrevem-no como um homem alto, magríssimo e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, de tão raro, era uma festa. Disseram-me que matou um homem em duvidosas circunstâncias, a frio, como quem arranca uma silva. E também me disseram que a vítima é que tinha razão: mas não tinha a espingarda.

Apesar de tão espessa nódoa de sangue na família, gosto de pensar nesse homem que veio de longe, misteriosamente de longe, de uma África de albornozes e areia, de montanhas frias e ardentes, pastor talvez, talvez salteador - e que ali fora iniciar-se na ciência agrícola, de que logo se afastou para ir guardar lezírias, de espingarda debaixo do braço, caminhando num passo elástico e balançado, infatigável. Depressa descobriu os segredos dos dias e das noites, e depressa descobriu também a negra fascinação que exercia nas mulheres o seu mistério de homem do outro lado do mundo.  Por isso mesmo houve aquele crime de que falei. Nunca foi preso. Vivia longe da aldeia, numa barraca entre salgueiros, e tinha dois cães que olhavam os estranhos fixamente, sem ladrar, e não deixavam de olhar até que os visitantes se afastavam, a tremer. Este meu antepassado fascina-me como uma história de ladrões mouros. A um ponto tal que se fosse possível viajar no tempo, antes o queria ver a ele do que ao imperador Carlos Magno.

Mais perto de mim (tão puro eu estendo a mão e toco a sua lembrança carnal, a cara seca e a barba crescida, os ombros magros que em mim se repetiram), aquele avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem teve contra si o rancor de toda a aldeia, porque viera de fora, porque era filho das ervas, e, não obstante, dele se enamorara minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por isso meu avô teve de passar a sua noite de núpcias sentado à porta da casa, ao relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinha jurado apedrejar-lhe o telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a noite pelo céu, enquanto minha avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E foi já de madrugada clara, que ambos se abraçaram um no outro.

E agora meus pais nesta fotografia com mais de cinquenta anos, tirada quando meu pai já voltara da guerra – a que para sempre ficou conhecida como a Grande Guerra – a minha mãe estava grávida de meu irmão, morto menino, de garrotilho. Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, com uma ara de gravidade solene, que é talvez temor diante da máquina que fixa a imagem sobre os rostos assim preservados. Minha mãe tem o cotovelo direito assente numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como se fosse uma asa. Ambos pisam, acanhados, um tapete de ramagens. Ao fundo, a tela mostra vagas arquitecturas neoclássicas. 

Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, um outro avô posto na roda, (filho oculto de uma duquesa, quem sabe?), uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato – que mais genealogia me importa? A que melhor árvore poderei encostar-me?»

Crónica do livro "Bagagem do Viajante", de José Saramago

Maria Libânia Ferreira

domingo, 24 de julho de 2022

Já passaram 19 anos!

A Dr.ª Maria de Lurdes Gouveia Barata (Milola) adora fotografia e tem por hábito fotografar as pessoas que encontra nos eventos culturais em que participa. Mais tarde presenteia-as com as fotos. Eu tenho a sorte de ser um dos agraciados e por assim recebo frequentemente um  envelope recheado de preciosidades.

De volta a tralhas mais antigas, deparei-me com estas fotos do lançamento do livro No tempo dos avós mais velhos, do José Miguel Teodoro, realizado na nossa Praça, no dia 17 de agosto de 2003.

A obra foi editada pelo GEGA e apresentada pela Dr.ª Maria de Lurdes Gouveia Barata. Houve festa na Praça, com a participação dos bombos e do rancho folclórico.

As fotos que aqui vos deixo não contam tudo, pois a fotógrafa oferece a cada pessoa sobretudo as fotos em que essa pessoa aparece.






José Teodoro Prata

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Madressilva da Gardunha

Esta trepadeira chama-se madressilva e cresce expontaneamente no Ribeiro de Dom Bento, 
nas imediações do ribeiro. 
Trouxe-a de lá e plantei-a no meu jardim.

O seu nome científico é Lonicera japonica

Família e descrição

Da família Caprifoliaceae, género Lonicera, a madressilva é uma trepadeira lenhosa de crescimento moderado que pode alcançar 2 m de altura.

Encontra-se em floração entre Abril e Agosto, com flores em forma de campainha que crescem em grupos de 2 a 6. O seu intenso e doce perfume atrai borboletas que asseguram a sua polinização.

Os frutos são bagas vermelhas.

 

Origem e habitat

Originária da China e Japão, é muito frequente nas regiões mediterrânicas.

Em Portugal poderemos encontrar três espécies nativas – Madressilva-das-boticas (Lonicera peryclimenum), Madressilva-caprina (Lonicera etrusca Santi) e Madressilva (Lonicera implexa Aiton). São frequentes nas regiões Centro e Sul, Açores, e numa região mais restrita do Nordeste transmontano, junto ao rio Douro.

Como habitat, a Madressilva prefere matagais, orlas de bosques, terrenos baldios e montanhas de baixa altitude.

 

Utilizações e curiosidades

São-lhe atribuídas inúmeras propriedades medicinais, sendo frequente a sua aplicação em fitoterapia desde tempos remotos. Registos antigos referem a prática de as crianças chuparem o néctar das suas flores (onde estão concentradas as suas propriedades medicinais).

O termo Lonicera respeitante ao seu género, foi adaptado ao latim por Carl Linné, como homenagem ao médico e botânico alemão Adam Lonitzer.

Os frutos são bagas vermelhas, tóxicas, suscetíveis de provocar vómitos e diarreias.

Deve ser cultivada em sol pleno, em solo fértil com boa adubação orgânica e regada periodicamente. É tolerante ao frio e multiplica-se por estacas.

Do site: https://gulbenkian.pt/jardim/garden-flora/madressilva/

 José Teodoro Prata

domingo, 17 de julho de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

Joaquim Simão

Joaquim Simão, filho de João Simão e de Antónia Duarte, cultivadores, nasceu no Casal da Serra, a 31 de julho de 1895.

Era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro, quando assentou praça em Castelo Branco, como recrutado. Após a conclusão da instrução da recruta, foi mobilizado para a guerra, e embarcou para França no dia 21 de janeiro de 1917, integrado na 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2.º Regimento de Infantaria 21, como soldado com o n.º 498, chapa de identidade n.º 9287.

Do seu boletim individual de militar do CEP constam as seguintes ocorrências:

a)   Baixa ao hospital em 23 de março de 1917; alta no dia 29;

b)   Diligência ao front em 20 de abril; presente em 26;

c)    Diligência para os postos da retaguarda, em vinte de janeiro de 1918; Punido em 14 de janeiro de 1919, com 4 guardas, por no dia 13 estar a fumar durante a formatura para a revista de saúde;

d)   Embarcou para Portugal com o Regimento de Infantaria 21, no dia 25 de fevereiro de 1919, a bordo do vapor Helenus.

Família:

Joaquim Simão casou com Olímpia da Conceição, no dia 26 de novembro de 1919, e tiveram 2 filhos:

·        João Joaquim, que casou com Maria da Conceição e tiveram uma filha;

·        Maria da Graça que casou com Joaquim da Cruz e tiveram três filhos.

Olímpia da Conceição faleceu em 1937, quando a filha mais nova tinha apenas cinco anos de idade. Joaquim Simão não voltou a casar.

Conta o neto João José que o avô era uma pessoa alegre e conversadora, mas não falava muito sobre o tempo da guerra. Lembra-se apenas de o ouvir falar de como era difícil a vida nas trincheiras e da fome que por lá passaram.

Viveu sempre com os filhos no Casal da Serra, onde trabalhou na agricultura e tratava de um pequeno rebanho. A terra e as suas cabras eram das coisas que ele mais gostava e, como diz o neto João José «mesmo já depois de muito velhinho, não largava o sacho da mão a arrancar as ervas da horta e ainda tinha uma cabra, mesmo só para se entreter.»

Depois do casamento da filha, acompanhou-a por várias localidades onde o genro ia sendo colocado como guarda de passagens de nível da CP. Por fim fixaram-se na Lardosa, localidade onde Joaquim Simão faleceu, no dia 3 de Março de 1974(?). 

(Pesquisa feita com a colaboração do neto João da Cruz)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Caixa Multibanco

 



A notíca é do jornal Reconquista da semana passada.

Penso que as caixas ATM são geridas por uma empresa, a quem a entidade detentora de cada caixa tem de pagar pela sua manutenção. O que esteve aqui em causa é que a Caixa Geral de Depósitos não quis continuar a suportar essa despesa e mandou retirar a caixa na nossa terra.

Entretanto, a notíca do jornal informa que a junta e a câmara estavam já a trabalhar numa alternativa (a CGD não quis esperar) que será idêntica à de Tinalhas: as despesas são suportadas pelo poder local (Câmara e Junta ou só uma delas).

José Teodoro Prata

sábado, 9 de julho de 2022

Oxalá que não!

 O parabolista

Nunca foi apurado de onde partiu o primeiro disparo. As potências em conflito acusaram-se mutuamente, enquanto foi possível ouvir rádio. Nem sequer havia consenso sobre onde caiu a primeira ogiva nuclear. Aparentemente, houve um disparo de origem indeterminada, mas o que primeiro atingiu o alvo no solo terá sido uma resposta a esse fantasmático primeiro disparo. Só se percebeu que, em poucas horas, foram disparados alguns milhares de mísseis regionais e intercontinentais, portadores de bombas nucleares, dum lado e do outro do Atlântico.

As primeiras dezenas de disparos apontavam para as áreas de lançamento e armazenamento das ogivas inimigas. A maior parte foi travada pelos sistemas de interceção, mas as explosões aconteceram na mesma, só que em altitude. A ogiva que atingiu a zona de Aviano, em Itália, provocou o rebentamento de, pelo menos, outras quatro ogivas, em prontidão. A explosão resultante vaporizou milhares de toneladas de solo e causou uma cratera de mais de um quilómetro de diâmetro.

À medida que os satélites adstritos ao uso militar foram sendo derrubados, perdeu-se grande parte da capacidade de deteção e interceção. Também os mísseis lançados deixaram de poder contar com os satélites para os guiar; passaram a usar sistemas de navegação incorporados, o que lhes baixou sensivelmente o grau de precisão. O que devia atingir a base da Nato em Oeiras foi cair perto de São Domingos de Rana.

Havia semanas que Eneias punha a eventualidade da guerra nuclear como muito possível. Percebia os apelos armamentistas, a retórica de confronto, a escalada bélica em crescendo. Quando o clarão apocalíptico acendeu o dia no seu quarto estremunhado, seguido de um abanão pavoroso, imediatamente mobilizou a família — o seu pai, com mobilidade reduzida, e as duas filhas adolescentes —, carregaram todos os víveres que tinham em casa e desligaram tudo. Provavelmente, não voltariam tão cedo. Tinha passado apenas meia hora depois do impacto e da onda de choque que estilhaçou janelas e destruiu edificações num raio de vinte quilómetros, quando partiram de Odivelas em direção ao interior.

Eneias optou pela circular exterior de Lisboa, pensando evitar o provável trânsito denso da autoestrada, mas, apanhou um engarrafamento monstro, logo ao entrar. Viram passar apenas duas viaturas da polícia de trânsito. Circulou a passo de caracol, contornando os inúmeros destroços e evitando os conflitos de trânsito quase forçosos, num contexto de enorme crispação e terror, percetível em muitos rostos. Meteu pela A10, assim que pôde e só conseguiu entrar na A1 quatro horas depois.

As notícias, das poucas rádios que se mantinham em funcionamento, eram alarmantes. Boa parte do leste dos Estados Unidos tinha sido destruída, assim como todo o ocidente da Rússia e variadas zonas no resto da Europa. Milhões de toneladas de cinzas radioativas subiam na atmosfera e toldavam o sol. Aparentemente, tinham parado os disparos, embora, presumivelmente, ainda houvesse alguns milhares de ogivas disponíveis. Eram horríveis os relatos das destruições e do estado dos corpos dos que ainda sobreviviam.

Eneias sabia que, provavelmente, ele e a família já carregariam alguma contaminação. Esperava tão só que as doses radioativas ainda não fossem mortais. Não tinha grandes planos. Para já, só fugir dos grandes centros, alvos mais prováveis de novos disparos e obrigatoriamente foco de desordens sociais. Quando passaram pela zona de Torres Novas, perceberam que o centro comercial que se via da estrada estava a ser alvo de pilhagem. Os dias que aí vinham prometiam provações terríveis para milhões de seres humanos.

Ainda antes de Abrantes, a mancha de cinza, que escondia o céu a oeste, sofreu vastos acrescentos negros a grande altura, de norte e leste, que foram enchendo o céu até tapá-lo completamente. Uma obscuridade estranha foi crescendo até transformar-se numa escuridão densa, que se tornaria a companheira de todos os dias, mas não era sensato parar. Ao longe percebiam-se incêndios em algumas povoações. Pouco depois do cruzamento de Belver, estranharam a inação do pai de Eneias. Estava morto. Frio, sem pulso, sem respiração, sem embaciar o ecrã do telemóvel que lhe puseram à frente da boca.

Eneias sentiu-se perdido. Não era aconselhável entrar numa cidade; as complicações que se seguiriam quando apresentasse o caso poderiam ser muito penalizadoras. E, para quê? O pai estava morto, sem qualquer dúvida. Assumiu a decisão de prosseguir com o pai no lugar do pendura, bem preso com o cinto, bem direito no banco. Na confusão reinante e no escuro, nenhuma improvável patrulha iria averiguar a saúde do idoso.

Ultrapassou os contrafortes da Gardunha quando uma ténue luminosidade anunciava que, por cima das nuvens de cinzas, brilhava o sol. Seria assim, daí para a frente, não se sabia se por uns dias, se por meses ou anos.

A sua casa entre serras, junto a Silvares, seria o refúgio possível num mundo enlouquecido. Com a devida discrição, sepultaram o avô das meninas numa pequena elevação sobranceira ao vale. Ninguém iria notar, ninguém iria saber. Ele deveria gostar, se soubesse.

Ainda nesse dia começou a cair muita cinza; radioativa, provavelmente. Tinha um cheiro fétido, um misto de plástico queimado, com reverberações olfativas metálicas. Eneias tinha consciência de que cada inalação que permitisse representava um foco de radiações a destruir o seu ADN, a facilitar cancros. A temperatura tinha baixado abruptamente e todos os dias foi baixando mais. O aquecedor a gás, mais o elétrico, eram insuficientes. Acenderam a lareira, mas nada conseguia aquecer a casa. A pilha de lenha diminuiu a olhos vistos.

As notícias das poucas rádios em funcionamento eram caóticas. Ainda havia crispação das grandes potências, mas as pequenas nações apelavam ao diálogo e ao trabalho conjunto para reconstruir o mundo. Um pouco por todos os continentes, os saques, o morticínio de grupos demonizados, os levantamentos militares, as revoltas populares estraçalhavam o que restara. Regimes oportunistas de todos os quadrantes surgiam e desapareciam no mesmo dia. A energia elétrica faltou de vez ao fim de três dias. Devia ser geral, porque nem o rádio de pilhas dava sinal. A sociedade desmoronava-se.

A casa já não era porto seguro. As cinzas tomavam tudo. Não era possível colher vegetais enegrecidos e “queimados” pela radiação, não era aconselhável consumir qualquer animal, qualquer ser exposto às cinzas. Viviam de conservas. O frio tornava-se debilitante. A temperatura tinha caído uns trinta graus, numa semana. O “Inverno nuclear”, teorizado pelos cientistas, confirmava-se. Sem luz solar, as plantas iriam mirrando e a maior parte morreria em poucas semanas ou meses. Havia que engendrar uma maneira de sobreviver. Ou então ousar partir para melhor refúgio.

Foi a proximidade das minas da Panasqueira, juntamente com a memória de uma visita, em tempos, a umas minas de sal-gema na Suíça, que iluminaram o espírito de Eneias. A temperatura em minas costuma ser baixa, mas constante. Lá, não chegariam poeiras radioativas, lá poderia captar água não contaminada, lá poderia cultivar cogumelos.



Caspar David Friedrich, Abadia no Carvalhal, 1809–1810.
Coleção Castelo de Charlottenburg, Alte Nationalgalerie, Berlim.

Passaram seis anos desde que Eneias chegou às minas da Panasqueira. A comunidade de uns cem refugiados que lá tinha já procurado refúgio passou a chamar-lhe Lote, por ter chegado com duas filhas, depois de um cataclismo de contornos de bombardeamento, como no episódio bíblico. Eram sobretudo habitantes da região, alguns muito maltratados pelas cinzas radioativas, das quais não tinham sabido proteger-se. A maioria morreu nos seis primeiros meses, alguns em grande sofrimento; outros foram morrendo de enfermidades não imediatamente relacionáveis com as cinzas. Até o desmoronamento, provocado por um dos vários terramotos de intensidade média, que se fizeram sentir no primeiro ano, fez duas vítimas.

Lote era tratado com curiosidade, por ter passado a falar por parábolas, que alguns achavam acertadas, mas, respeitavam-no por ter apontado alguns dos vários aspetos que podiam ajudar a mantê-los vivos. Havia quatro fontes nas galerias da mina. Não tinham garantia de que a água não viesse a chegar contaminada, mas tinham esperança que ainda demorasse uns anos. A cultura de cogumelos tinha sido um êxito. Desenvolviam-se bem em regime de ausência de luz solar, eram proteicos e havia quem lhes encontrasse nuances de sabor. A temperatura na mina, conforme previsto, era baixa, mas tolerável, desde que complementada com muitos agasalhos. A comunidade decrescia, apesar de as filhas de Lote e outras raparigas terem tido crianças, no entanto, caminhava-se para um equilíbrio. Não podiam deixar morrer a esperança.

Na rotina do cultivo dos cogumelos, há sempre quem, para dar resposta aos seus pensamentos, faz uma ou outra pergunta:

— Lote, não teria havido uma maneira de travar a guerra no início?

Lote tornou-se um ancião de olhos encovados e face macilenta. Abranda por uns momentos a atividade e depois debita uma inspiração:

— Em tempos que já lá vão, um jovem combinou uma saída com os amigos, para celebrarem a noite, a amizade e o álcool. No Cais do Sodré, já depois de uns shots e em clima de boa disposição, o jovem foi surpreendido por uma chapada que quase o atirou ao chão, sem saber como nem porquê. Virou-se ao agressor, contudo, este era um marinheiro nórdico, cheio de tatuagens e um corpanzil que aconselhava alguma prudência. Mesmo assim, galarito empertigado, o jovem pediu-lhe satisfações, mas recebeu de volta outro bofetão. Aí, percebeu que era melhor nem tentar saber porque é que estava a levar pancada; o que era urgente era tentar apaziguar os ânimos, porém, os amigos começaram a atiçá-lo, a gritar-lhe que não se podia ficar, que tinha de retaliar. «Tu podes derrotá-lo. Lembra-te de David e Golias», gritavam-lhe. «Tu chegas bem para ele. Nem te vamos ajudar, porque aí ele pode puxar de alguma faca, mas ficamos aqui a desmoralizá-lo.» E faziam um coro ruidoso de «Cara de avestruz! Cheiras mal da boca. Vais morrer de cancro. Estás a levar tantas que já não te tens em pé. Bêbado!» Ora, o desgraçado rapaz fez o melhor que pôde, mas acabou a noite muito amassado e foi mesmo parar ao hospital. Verdade seja dita que os amigos foram todos visitá-lo à enfermaria e alguns levaram-lhe flores. Depois veio a saber-se que o moço teria dito um piropo à rapariga do marinheiro, ou, pelo menos, este assim o entendeu. Eis aqui que não havia razão suficiente para a agressão inicial, não obstante, foi uma temeridade insensata enfrentar sozinho o brutamontes. Mais valia ter reconhecido a desvantagem física e ter ido para casa só com um olho negro.

Na tarefa de aparar o fino fio de água gelada que escorre da rocha, lá vem com frequência uma dúvida:

— Lote, porque é que começou a guerra e o que é que a Nato e a América tinham a ver com o caso?

Lote olha para o negro invisível do fundo da galeria e, depois de uns momentos de silêncio, debita uma lucubração:

— Havia em tempos um grande apicultor que prezava muito a qualidade do mel que produzia. Gabava-se de que o seu produto estava isento de pesticidas ou outros químicos nocivos. Num outro concelho, havia um grande agricultor que ensaiava todo o tipo de práticas agrícolas para obter boas produções de cereais, incluindo o uso de agrotóxicos, que o apicultor abominava. Ora isto durou, e nenhum problema houve, mas, aos poucos, os pequenos lavradores vizinhos do apicultor foram passando a usar os mesmos químicos que o grande agricultor usava e produzia. «Não quero aqui venenos junto ao meu terreno! O vento traz tudo para o lado de cá. Mata-me as abelhas e estraga-me o mel», gritava o apicultor. Porém, cada pequeno produtor ripostava: «No meu terreno não posso fazer o que quero?» E o mandante instruía-os: «Ninguém manda no vento. Se vai para a terra dele não é culpa vossa.» No entanto, o apicultor sentiu-se ameaçado no seu negócio e no seu modo de vida. Vendo as suas colmeias a morrer e a qualidade do mel a deteriorar-se, foi acumulando ressentimento e vontade de retaliação, sobretudo contra o produtor de venenos e instigador da pressão tóxica sobre os seus colmeais. Um dia de junho, já muito irritado, aproveitando uma brisa favorável, acendeu dezenas de balões de São João e lançou-os, em procissão punitiva. Conforme esperava, alguns balões caíram nos terrenos próximos e outros elevaram-se e foram aterrar lá longe na propriedade do grande produtor cerealífero, incendiaram as searas e causaram uma destruição avassaladora. Ao furioso coro do “Núcleo Agro-tóxico Ocidental”, como lhe chamava, o apicultor respondia com todo o cinismo: «Acaso não posso festejar o São João no meu terreno? Ninguém manda no vento.» E, para si, autojustificava-se, com um aforismo ouvido há muito: “Dizem do rio que é violento porque arrasou todo o vale, mas ninguém se preocupou com as margens que o oprimiam.” Eis assim que no nosso mundo ambientalmente encapsulado, nenhum terreno é uma ilha. Faltou muito respeito mútuo, muita capacidade de se pôr no lugar do outro, muita empatia pelo que é diferente, muito diálogo, muitas relações de boa-vizinhança. Porém, uma conversa franca e honesta, um entendimento de seres racionais, podia ter evitado aquele desacato.

Nas muitas vezes em que a pequena comunidade se junta, durante horas, em círculo à volta de uma chama, para se autogerir, para conversar, para socializar — imagem pós-apocalíptica de um grupo de silhuetas espetrais, embrulhadas em cobertores, em ambiente de quase escuridão —, com frequência lá surge um lamento, uma especulação, um desalento: «Será que voltaremos a ver um céu estrelado, que um dia voltaremos a percorrer campos abertos, respirando ar puro a plenos pulmões, com o sol no rosto e o futuro nos olhos?» E outro acrescenta: «E, se voltarmos a ter uma vida lá fora, não teremos de nos armar para a guerra, nem que seja com paus e pedras, já que ela parece estar no nosso “ADN social”?

Lote está muitas vezes de cabeça baixa. Certos temas levam-no a responder:

— Um escritor escreveu um romance, em que um homem e os seus irmãos chegaram a uma terra desconhecida, onde construíram uma casa e em que moraram em harmonia durante muitos anos, entretanto, um dia veio uma cheia que lhes derrubou a casa e lhes destruiu as colheitas. Era, pois, um drama que passava uma mensagem de tristeza e desalento. Ora, o escritor não gostou daquele final, não obstante, em vez de o alterar, prosseguiu a história. Deste modo, pôs os irmãos a corrigir o percurso, a reconstruir a casa fora do leito de cheia e a levantar uma pequena barragem, para regulação do rio. Eis que a história já continha uma mensagem de esperança e resiliência, todavia, surgiram alguns conflitos, alguma falta de solidariedade, algum desleixo social. Assim, o escritor não resistiu a fazer rebentar a barragem, com a consequente destruição do que tinham construído. Ora, este final também não lhe agradou e novamente continuou a história. Entretanto, suspeitando que o autor tinha inclinação para a desgraça ou as personagens para a asneira, experimentou mudar de personagens; então, pôs a nova geração de primos a fazer a reconstrução, com novos paradigmas. As novas personagens, só por serem outras e jovens, levaram a história por outros caminhos: logo fizeram nascer uma grande quinta e uma pequena sociedade em que, ainda que havendo problemas, eram resolvidos com diálogo e racionalidade. Eis que, depois de um final dramático, pode-se sempre imaginar uma continuação, uma nova narrativa, um final motivador.

O pequeno círculo de espetros vivos parece esperar mais respostas, soluções concretas, mas Lote baixa novamente a cabeça e cala-se. A meditação de cada um começa a divergir da de cada um dos outros, talvez alguma vislumbre um futuro viável, para quando a missão de cada um aspire a mais do que só sobreviver outro dia.

Joaquim Bispo