Hoje acordei com muitas ideias. Como o sonho comanda a
vida, vou tentar colocá-las nos seus devidos lugares, cronologicamente falando.
Comecei
por passar em revista as casas da nossa vila, como eram as habitações e como
são nos nossos dias.
Passavam de pais para filhos, estes mantinham-nas tal
qual as recebiam, medievas, a cheirar a mofo, com pouca luz, sem conforto, mas
acolhedoras. Guardavam dentro de si recordações, histórias únicas; a luz bruxuleante
da candeia, o candelabro, as velhas lucernas, a lamparina de azeite, tendo ao
meio uma torcida que se mantinha acesa com a ajuda de um pequeno disco de
cortiça com um furo ao meio de onde saía o pavio, iluminava o quarto, a sala… As
nossas ruas possuíam em locais estratégicos candeeiros a petróleo. Assim que
começava a anoitecer, um lanterneiro, escada numa mão, lata do petróleo na
outra, acendia-os. “Já era bem bom”, como me contou um dia o senhor Zé
coelhito.
Graças à eletricidade, tudo mudou. A noite escura
desapareceu das nossas moradas e das nossas povoações, a pasmaceira que seria
se ainda se vivesse assim. A energia eléctrica chega a todo o lado, os velhos
artefactos foram substituídos pelas lâmpadas.
Eu sou a Luz do mundo, disse Jesus.
Não viviam somente as pessoas nas casas, as lojas eram
ocupadas pelos animais que ajudavam nas lides domésticas, fossem vacas, burros,
cabras, galináceos. Se a casa possuía mais que uma loja, a segunda destinava-se
a guardar o vinho, a salgadeira, o azeite, as ferramentas… As paredes
exteriores eram construídas com pedra granítica, miúda; por dentro, as divisões
eram feitas de taipa, adobe; assoalhados de madeira… Cheiravam a mofo as casas
dos nossos pais, mesmo assim eram acolhedoras.
A casa dos meus pais, da qual eu gostava bastante,
certo dia foi totalmente derribada, só ficaram as paredes exteriores. Uns anos
mais, o interior de outra casa medieva desaparece, julgo ter sido a pioneira no
advir, morada da Maria do Ninho, casa grande feita de grossas paredes e taipa.
Um dia chegaram pessoas vindas de fora, orientadas pelo pai do general Eanes,
“construtor da obra” as madeiras foram substituídas por placas, vigas de
cimento, o solar ficou irreconhecível por dentro, o cimento, o tijolo… começou
uma nova era na edificação de edifícios
A vida na vila continuava a fazer-se como sempre se
fez até aos anos setenta do passado século. As galinhas esgravatam as pedras da
calçada, na esperança de encontrarem algum miolo, minhoca…; à porta das lojas
as cordas que guiavam os burros eram atadas a argolas, as mulheres munidas de
um caldeiro, onde iam as lavaduras e os restos de comida, desciam as escadas e limpavam
a pia, despejando nela a vianda. Quando os porcos comiam bem, eram uma boquinha
lavada.
Por vezes perdiam o apetite, a dona do animal ia à
casa da pessoa que sabia tirar o mau-olhado. Feito o esconjuro, o porco voltava
a comer, era um louvar a Deus. Por altura do Carnaval, os
vicentinos ofereciam ao Santo António chouriças, nacos de toucinho, presunto,
farinheiras, morcelas… O Chico Calmão empunhava o pau do santo e andava de rua
em rua a pedir para o ramo de Santo António.
No princípio dos anos sessenta, Goa, Damão e Diu foram
invadidas, ia sendo uma tragédia para os nossos soldados. Angola, Moçambique,
Guiné; os mancebos partem aos milhares para as áfricas combater os
“terroristas”. As feridas da segunda grande guerra ainda não estavam totalmente
saradas na Europa, era preciso construir; voltar a reedificar estradas, pontes
habitações… muitas famílias desapareceram do mapa, a Europa necessitava
mão-de-obra. Portugueses, espanhóis, italianos… procuram uma vida melhor para
si e os seus, grande parte dos trabalhos eram braçais, apesar de já existirem
máquinas, a força do homem ainda imperava.
Partiam aos milhares a salto, passadores guiavam-nos
até entrarem na terra prometida. Quando atravessavam as montanhas pirenaicas,
em estreitas veredas cheias de perigos, se tivessem o azar de escorregar e cair
precipício abaixo, iam parar ao rio e nunca mais… os outros seguiam cheios de
frio, sujos…
Quando
finalmente chegavam ao destino iam parar aos arredores da cidade onde se
situavam os bidonvilles, barracas de lata cercadas de lama; os pioneiros viviam
em condições péssimas, mesmo assim não desistiam, a vida aos poucos ia melhorando,
ganhavam mais numa semana que em Portugal num mês, os trabalhos eram duros,
verdade; valia a pena o sacrifício. As famílias juntavam-se, deixavam as
barracas para viverem em habitações condignas, o sonho da casinha e da courela
no lugar que os viu nascer tornava-se realidade. Só queriam ganhar dinheiro
para construir a sua maison e adquirir um pedaço de terra. Os filhos crescem, fazem
amigos, a palavra regressar não existia nos seus vocabulários. Havia o problema
das guerras coloniais, mancebos fugiam a salto, as casas estavam construídas, olivais,
courelas compradas. Foi passando o tempo, casaram os filhos, os netos surgiram
e os pais, que só queriam realizar o sonho de terem uma linda casa, foram-se
acomodando, a maior parte estão fechadas. É a vida.
Com o envio das remessas dos emigrantes, a construção
civil progrediu, a paisagem medieva, rural, transformou-se.
As guerras coloniais não tinham fim à vista; 1974,
militares milicianos protestam, o povo aproveita a boleia, surge a revolução do
vinte e cinco de Abril.
Descolonização, mais de quinhentos mil desalojados
portugueses abandonam haveres, terras, deixam tudo e regressam a Portugal.
Muitos
nunca conheceram outra terra, Portugal era um lugar estranho; traziam
experiência, conhecimentos, depressa se integraram na sociedade portuguesa,
sangue novo foi injectado, floresceu o comércio, a indústria, a construção, o
país aos poucos foi-se modernizando
Em 1985, Portugal assina o tratado de adesão à C.E.E., um
ano depois entrava oficialmente. Todos os dias chegavam milhões de contos aos
cofres. Auto-estradas, algumas quase paralelas, estádios, pavilhões… o dinheiro
jorrava, os bancos emprestavam; “queres mil, leva dois mil” foi um fartar
vilanagem.
Os valores especulativos dos bens caem, muitos bancos
não aguentam a pancada e desmoronam-se, as casas desvalorizam drasticamente, a
vida levou um tombo…
Portugal endividou-se, os empregos para toda a vida
passaram a ser precários, a torneira foi-se fechando, muitas empresas abriram
falência, o dinheiro fácil terminou. A sociedade actual é bem diferente da que
era há meio-século atrás, as aldeias estão desertas, as cidades aumentaram a
sua população, o perímetro urbano também, as vias de comunicação, os
transportes, a saúde, a educação…tornaram-se realidades, a economia está nas
mãos de empresas estranhas, a divida pública é enorme.
Os portugueses, povo forte e valente que sempre foi
capaz de dar a volta por cima, um país que descobriu meio mundo, onde a língua
de Camões é das mais faladas, um povo assim vencerá mais esta batalha.
As casas de outrora quase desapareceram das nossas
aldeias, ainda há os resistentes que souberam preservá-las dando-lhes uma nova
roupagem. Transformadas por dentro, acolhedoras, mantêm a traça exterior. Conserve-se
o que ainda resta, há valores patrimoniais. Quando se esbarrondam, nunca mais
se recuperam. Em vez de se esbarrondar, deve-se preservar, para que os nossos
netos fiquem com uma ideia de como eram as habitações, as ruas estreitas e
medievas no tempo dos seus avós.
O
mundo é uma escadaria; sobem uns, descem outros, porque para trás mija a burra.
«Eles não
sabem, nem sonham,
Que o sonho
comanda a vida,
Que sempre
que o homem sonha
O mundo pula
e avança
Como bola
colorida
Entre as mãos de
uma criança.»
Rómulo de Carvalho
J.M.S
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