terça-feira, 31 de outubro de 2017

Almas danadas ao santorinho

Na nossa vila, principalmente em noites gélidas, frias, brancas e ventosas invernais, logo que anoitecia as pessoas recolhiam aos seus lares. Depois da ceia, à luz da candeia, com toda a família sentada em redor do braseiro, rezadas as orações, os mais novos escutavam com atenção estórias que os mais velhos contavam. Umas eram comoventes, outras, assim, assim e algumas eram terríficas.
Avô Zé, com as tenazes “conchegava” os chamiços que ardiam; avó Ana encostava o púcaro de barro ao brasido cheio de água da Fonte Velha, quando começava a ferver deitava para dentro uma ou duas colheres de café, era tão bom, tão bom, perfumava toda a casa.
Para assentar, punha dentro do púcaro uma brasa; sabia tão bem!
Avó, lenço negro atado à cabeça, cabelos brancos entrançados, era uma santa mulher. Avô, com seus safões de pele de cabra, barrete enfiado até às orelhas, começava:
Uma vez, era novo, tinha ido à vila, conversa puxa conversa, estava na praça mais uns poucos da minha idade o sino bateu a meia-noite; assustei-me, assustámo-nos todos. Entre a meia-noite e a uma hora era muito perigoso andar na rua, podia aparecer a má hora, uma alma do outro mundo, uma alma penada.
“Quem está aÍ! Se és uma alma do Purgatório diz o que queres; se és o demónio, eu te arrenego em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.
Pessoas muito altas, gente com pés de cabra, lobisomens. Quem se cruzava com estes seres sinistros corria esbaforido em direcção a casa, queria gritar por socorro e não conseguia. Era uma hora má, aquela.
Olhos bem abertos, atentos e ao mesmo tempo cheios de medo, ouvíamos com atenção, não olhávamos para trás, não aparecesse uma alma penada.
Naquela noite, ia para o Caldeira, estava vento, fazia lua; quando cheguei ao fundo da barreira do Marzelo, rebolava na minha direcção uma grande bola. Corri para São Sebastião cheio de medo, dei a volta pela estrada em direcção às Poldras, subi o Souto do padre Teodoro, o vento ventava com todas as forças; ao outro dia outras bolas rebolavam pela estrada. Sabeis o que era! Sargaços.
Certa vez, um homem vinha do Casal, quando ia a passar junto ao Calvário um vulto muito alto apareceu em cima da parede do cemitério, começou a correr cheio de medo, quanto mais corria, mais a aparição o acompanhava. Morava ao fundo da rua de São Francisco, ao chegar à porta, abre-a, entra, coloca a tranca rapidamente, do lado de fora uma voz cavernosa, forte, gritou:
-Foi o que te valeu!
- Ai home, que se passa contigo? - pergunta a mulher toda atrapalhada.
Este, com o dedo indicador apontou para a porta, sem nada dizer, ficou sem fala.
A esposa abre a porta, olha para a rua, não vê vivalma. O céu estava limpo cheio de estrelas, a noite serena, deitou-se no catre, não falava. No dia seguinte contou à mulher o acontecido.
- Ai home, a minha alma está parva…
- Ó vô; Como são os lobisomens!
- Durante o dia são pessoas como nós, à meia-noite transformam-se em lobos danados, andam uivando por ruas, montes e vales. No dia seguinte aparecem todos arranhados, feridos, por causa do esforço que fizeram. Entregaram a alma ao diabo estes damonhos.
- Credo!
- Olhem; nos cruzamentos e em lugares previamente escolhidos dançam as bruxas encarrapatas juntamente com o mafarrico. Cruz da Oles, Fonte da Portela… são locais onde isso acontece. Era noite cerrada, desci a rua a caminho da nossa casa com os meus pais e irmãos, lanterna acesa, dormi toda a noite com a cabeça debaixo das mantas, não aparecesse a má hora.
Meu avô dizia o seguinte proverbio: “Pelos santos, neve nos campos”. Como mudou o tempo, já não há neve, em contrapartida, ardem as matas.
- Dê-nos um santorinho

J.M.S

Um comentário:

Anônimo disse...

Haverá várias razões para as pessoas mais idosas dizerem tantas vezes que «dantes é que era bom». Uma delas será pelo imaginário tão fértil, que dava origem a todas estas histórias que hoje nos deliciam.
Será também, e aí já eu me incluo, porque dantes éramos tantos a pedir o Santoro no Dia de Finados (acho que era nesse dia) e agora são cada vez menos e mais velhas as crianças que nos batem à porta neste dia. Ainda assim, é bom que não se perca a tradição.

M. L. Ferreira