Fazer testamento dos bens que se possuíam era uma prática comum já em várias civilizações antigas. Tinham como função principal expressar as últimas vontade do testador e, de certa forma, também a intenção de perpetuar a memória do falecido e a gratidão dos que eram beneficiados. Por vezes revelavam também a intenção de continuar a exercer algum poder e controlo social para além da morte.
Em Portugal há referência a este documento desde quase a sua origem, nomeadamente nas indicações que os forais já davam sobre a forma como os bens da família podiam passar para o cônjuge ou para os descendentes, a equidade na partilha, a herança de dívidas, a validade do documento, etc. Mas terá sido pelas Ordenações Afonsinas, no século XV, que, de forma mais clara, ficaram estabelecidas as leis que regulamentavam esta matéria.
Pela grande influência da Igreja na vida das pessoas, orientando-as na prática das virtudes terrenas com vista a alcançarem as graças divinas, os testamentos, para além da indicação sobre a partilha dos bens materiais da família, refletiam também o medo e a preocupação com a vida para além da morte. Será devido a estas preocupações que, ao percorrermos os registos de óbito do século XVIII, disponíveis nos Registos Paroquiais, encontramos a transcrição de muitos testamentos, o que parece paradoxal, sabendo que a maior parte da população, por ser pobre, não tinha bens para legar aos descendentes ou outros familiares (em muitas das situações em que o falecido não tinha feito testamento ou codicilo, um espécie de testamento mais simples, o pároco dizia que era “por ser pobre”, o que, naquele tempo, significaria que não tinha quaisquer meios de sobrevivência; nestes casos a missa e o funeral eram feitos gratuitamente, por amor de Deus).
Para assegurar o perdão dos pecados cometidos e, muitas vezes, legitimar a aquisição e usufruto dos bens materiais durante a vida, uma parte muito significativa das disposições dos testamentos era dedicada a enumerar as missas, esmolas e outras obras de caridade a serem feitas após a morte do testador. Começavam quase todos da mesma maneira: a escolha da mortalha, o local da sepultura, quem iria acompanhar o funeral, as missas pela própria alma e pelas dos familiares (em alguns casos chegavam a ser às centenas), as esmolas aos pobres, à Igreja e às ordens religiosas, etc. Só depois de todas estas vontades bem descriminadas, surgiam as disposições relativas aos bens materiais: nomeação dos herdeiros e repartição da herança, e, se fosse o caso, pagamento de dívidas feitas em vida pelo autor do testamento.
No caso de pessoas com poucas posses, o testamento limitava-se quase sempre a referir o local da sepultura, as missas pela alma do próprio e outros familiares mais próximos, e a indicar alguns familiares a quem eram deixadas as roupas de uso pessoal ou de casa (quase sempre já usadas), alguns “trastes” de mobiliário e animais domésticos.
Este testamento de Maria de Lemos Franca, falecida em 28 de fevereiro de 1766, é um bom exemplo do que eram as últimas vontades e a mentalidade de uma pessoa daquela época:
Deixo o essencial, mas ampliando o documento, consegue ler-se quase tudo.
Começa por dizer que quer que o seu corpo seja envolto no hábito de São Francisco e sepultado na igreja matriz, junto do altar de Nossa Senhora do Rosário; pede depois que seja acompanhada pelas Irmandades de que é irmã e que lhe seja feito um Ofício de nove (?) e que a ele assistam os padres que seus herdeiros determinarem (controlo da vida dos filhos depois da sua morte); que se lhe digam uma missas ao Anjo da Guarda, uma a Nossa Senhora da Piedade, uma a Santa Catarina, uma a São Francisco e Santo António, uma a São Vicente e uma a São José; que sejam ditas duas missas pelas penitências mal cumpridas, três pela sua alma, três pela alma de seu marido, três pela de seus pais e uma pela de sua tia; todas as missas seriam mandadas dizer por seus testamenteiros pela esmola de cem reis.
Depois destas disposições de carater mais espiritual, nomeia os seus herdeiros forçados (?), filhos legítimos tidos do casamento com Manuel de Andrade: Vicente José de Azevedo, Maria Joaquina de Andrade e Martinho de Andrade constituindo-os seus herdeiros universais e pedindo que sejam seus testamenteiros. Seguem-se depois as suas vontades quanto à divisão dos bens pelos filhos. É interessante a referência aos Canavéis de Cima e a umas casas que seriam de seus tios Simões e confinavam com as de sua filha Joaquina.
Outra referência interessante neste testamento é a que faz a uma rapariga chamada Manuela Maria, que teria na altura cerca de vinte anos e era pobre. Diz que é filha de Manuel de Andrade (seu marido?), e que vivia em sua casa desde os oito anos de idade, servindo-a a ela e a seus filhos sem nunca lhe ter sido retribuído o trabalho senão com algumas vestiduras. Pede que lhe sejam dados dezanove mil e duzentos reis e alguma roupa de cama e de vestir pelo muito trabalho que tem tido naquela casa e é bem merecida. Tudo isto por descargo de consciência, como diz.
Por último, declara que tem algumas dívidas que os filhos também conhecem e que, por terem sido feitas pelo casal, pede que sejam pagas com o dinheiro da herança.
Por este exemplo, que é relativamente simples comparado com outros que podemos encontrar nos Registos Paroquiais, conseguimos, entre outras coisas, perceber a importância dos testamentos para a compreensão das mentalidades e da vida social e económica de determinada época. Dão-nos também conta da demografia, das relações familiares próximas e de parentesco mais alargado ou de vizinhança. Dão ainda informação sobre as instituições religiosas existentes em cada localidade e do poder que exerciam sobre as pessoas, mesmo as mais ricas e informadas.
M. L. Ferreira
2 comentários:
Apenas duas ou três coisas, porque o assunto é muito longo! Na nossa cultura acredita-se que o domínio ou posse exclusiva sobre a 'res' (coisa) (embora parte dessa coisa sempre fosse pública), é a melhor forma de a rentabilizar. A esse domínio absoluto sobre a coisa se chama 'direito de propriedade'. A questão da passagem dos bens do falecido para os seus herdeiros ou legatários, por lei ou por testamento, acaba por ser uma extensão daquele direito.
Para esclarecer outro ponto: a referência feita a 'herdeiros forçados' é absolutamente atual. Hoje chamam-se 'herdeiros legitimários' Isto é, são aqueles herdeiros (mas só cônjuge e filhos, legítimos ou não; aliás, não há filhos ilegítimos), que o testador não pode deserdar por testamento, no que toca ao valor da legítima; que é um valor mínimo que lhes está reservado. Para negar herança a estes herdeiros é preciso correr um processo judicial com provas de ofensas feitas ao testador, etc...
Outro ponto aqui levantado é a questão de saber se devem ser protegidas pessoas com quem o testador teve uma relação extraconjugal e filhos daí nascidos. Os filhos têm os mesmos direitos dos nascidos na constância do casamento, como vimos. A mulher com quem teve essa relação pode ser protegida mesmo contra a vontade dos herdeiros (recorrendo à justiça), caso tenha vivido com o 'de cujos' (falecido), durante um certo tempo, em condições análogas às dos cônjuges. Mas hoje, muitas vezes, são os próprios herdeiros (habitualmente, mais os filhos que o cônjuge mulher, caso seja viva, já se vê!).
Relativamente às dívidas da herança, a vontade do testador deixou de ser relevante; ou seja, modernamente, enquanto há dívidas não há herança! Mas se os herdeiros renunciarem à herança não são obrigados a pagar as dívidas dos autores da herança (falecido).
É sempre curiosa a comparação do Direito, nomeadamente, o das Sucessões, em épocas diferentes.
Quanto à questão das disposições de carácter espiritual, acho que hoje se veem pouco; mas há 30 anos ainda se viam em testamentos de pessoas antigas, como, por exemplo, o da Barqueira (Isabel Barreiros). E isso diz muito sobre a diferente forma de ver as coisas. Não quer dizer que tenham menos fé; apenas, a concepção da vida e da morte é que é diferente!
Abraço, hã!
JB
Uns dias após a publicação deste artigo o José Miguel Teodoro enviou-me algumas achegas importantes para melhor compreensão não só deste deste testamento, em particular, mas de outros que encontramos nos registos paroquiais (quem sabe, sabe...). Podia tê-lo incorporado no texto inicial, mas isso implicava mais trabalho para o José Teodoro:
Libânia,
Li o teu artigo sobre o testamento daquela nossa conterrânea, que achei interessante.
Dou duas ou três achegas, que podes incorporar, querendo.
1. o São Vicente indicado como destinatário de algumas missas - São Vicente Ferreyra - creio que não será o "nosso", mas o São Vicente Ferrer;
2. ofício de nove lições - é um tipo de ofício religioso - no caso, rezado e eventualmente cantado, de manhã (ou madrugada, no dia do enterramento), constando de 9 leituras;
3. herdeiros forçados - não há que interrogar; sim, são assim designados por serem herdeiros por força da lei.
4. as "casas dos tios Simões" - é uma designação apenas - as ditas casas já são dela, por isso dispõe sobre esse bem;
5. é uma senhora rica, pelo que se lê: senhora de casas, terrenos, etc., era também senhora de um "ofício de prioste" (constando da cobrança de certas rendas eclesiásticas), que ela já escriturou ao filho mais velho, Vicente, que aqui declara, para excluir esse bem da herança;
6. interessante a existência de uma "terça" ou "tercinha" que ela testa à filha, constituindo assim uma espécie de dote.
7. sobre a Manoela Maria, para mim sem dúvida filha do marido, tu explicas; i interessante o que a senhora manda aos herdeiros, como alternativa (ver f. 3) à entrega do valor monetário indicado.
Cumprimentos.
JMT
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