quarta-feira, 21 de julho de 2021

Vamos discutindo o preço insuportável dos combustíveis enquanto podemos

Esta coisa das alterações climáticas tem muito que se lhe diga. Deixo-vos com este artigo, tirado do blog Estátua de Sal, que mostra a complexidade desta problemática.

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 19/07/2021)

O debate estrutural não é como manter preços dos combustíveis baixos. Não acontecerá. As pessoas têm de ser capazes de pagar as suas deslocações, mas as soluções de longo prazo terão de vir de transportes públicos gratuitos e de qualidade; políticas públicas de habitação agressivas; um investimento sem precedentes na ferrovia; e uma revolução económica inevitável que distribua riqueza em vez de a concentrar. Se estes debates forem perdidos, os negacionistas das alterações climáticas terão outros para oferecer.


Um estudo da “Nature” da semana passada concluiu que a região sudeste da Amazónia está, pela primeira vez, a emitir mais dióxido de carbono do que aquele que é capaz de absorver. Esta alteração dramática para o planeta deve-se a uma maior variabilidade do clima e à morte precoce árvores. A deflorestação só abreviou o processo. Entrámos naquela fase em que as alterações climáticas aceleram os próprios fatores de alterações climáticas, numa espiral infernal que rapidamente se tornará imparável.

Já não é preciso fazer um esboço dos efeitos desta espiral. Podemos vê-las na televisão, com temperaturas recorde nos EUA e no Canadá ou enchentes assustadoras na Alemanha. Podemos senti-las nas nossas vidas, ano após ano, cada vez mais assustadoras. A catástrofe climática anunciada já é de tal forma evidente nas nossas vidas que muitos deveriam ir apagar muitas piadinhas que escreveram sempre que fazia mais frio.

Também na semana passada, Bruxelas aprovou a meta de reduzir em 55% as emissões de CO2 até 2030. A meta, que parece quase impossível de atingir, está longe de ser ambiciosa. As associações ambientalistas afirmam que esta meta é ineficaz e não se baseia na ciência. Que seria necessária uma redução de pelo menos 65%. Seja como for, a Comissão também propõe banir a construção de novos carros a gasolina e gasóleo até 2035. Dito assim, muitos acreditarão que basta trocar de carro e tudo pode seguir como antes. Não pode, como percebemos sempre que discutimos as alternativas energéticas para mantermos a vida que temos. Descobrimos sempre que é insustentável se não mudarmos algumas coisas essenciais no nosso modo de vida. E tratam-se de escolhas coletivas e não, como gostam os que preferem abandonar a política para falar de ambiente, opções privadas com efeitos quase irrelevantes e acessíveis a muito poucos.

Enquanto estes debates se fazem, há dia a dia das pessoas. Os preços dos combustíveis atingem níveis insuportáveis. Não apenas em Portugal, mas em Portugal tem outro impacto nas despesas dos cidadãos. É absurdo dar lições ambientalistas a quem não sabe como pagar as suas deslocações diárias. Mas, mesmo que o cartel dos retalhistas seja vencido e que se baixem os impostos sobre os combustíveis, não é provável, com o caminho que o mundo leva, que os preços venham a baixar nos próximos anos. Nem podem. O debate politicamente sério não é esse. Nem seguramente como reduzir as ciclovias para não atrapalhar o trânsito. Dizer isto não é dizer que nos estamos nas tintas para os problemas quotidianos das pessoas. É que as soluções a longo prazo para esse quotidiano terão de vir de outro lado e não podem ser exclusivamente fiscais.

Os ecoliberais, grupo ideológico que crescerá à medida que a catástrofe se torne mais óbvia e o mercado se tenha de adaptar a ela, virão defender a seleção natural nesta nova era. Como em tudo, o mercado resolverá e as vítimas do costume serão danos colaterais. Os que “não se sabem adaptar”. Este discurso apenas levará o povo para as fileiras dos que lhe ofereçam a resposta fácil: não é preciso fazer nada porque o problema não existe. E é por isso que o debate ambiental, que tem sido enganadoramente técnico e por isso enganadoramente consensual, terá de ser apropriado pela política. Terá, horror dos horrores, de se ideologizar. As alterações climáticas não são ideológicas. Reagir a elas é apenas uma questão de sobrevivência. Mas a forma como isso será feito, quem fica pelo caminho e em que sociedade viremos é política.

O debate estrutural não é como manter preços de combustíveis baixos. Não acontecerá. É como ter transportes públicos urbanos e suburbanos gratuitos e de qualidade. Tão essencial para cada um e para todos, se queremos tirar quase todos os carros da rua, como a saúde e a educação. É como ter políticas públicas de habitação agressivas – também viradas para a classe média, mesmo que isso leve a ondas virais populistas de indignação dos que acham que o Estado Social deve ser voltar a ser um Estado assistencialista – que travem o êxodo para as periferias. É sobre um investimento sem precedentes na ferrovia e na alta velocidade, de que estamos deligados e por isso dependentes do avião. É, por fim, como conseguir que a revolução económica que inevitavelmente acontecerá crie mais emprego do que aqueles que destruirá e distribua riqueza em vez de a concentrar.

Se todos estes debates forem perdidos, os negacionistas – os teóricos, que recusam a realidade, e os práticos, que a aceitam, mas comportam-se como se ela não existisse – terão outro discurso para oferecer. Serão eles que levarão a melhor. Os nossos netos, os seus filhos e os netos deles não deixarão de nos tratar como a mais criminosa de todas as gerações. Com toda a razão.

José Teodoro Prata

3 comentários:

Anônimo disse...

Há grandes probalidades de o planeta vir a sofrer alterações inimagináveis. Seguramente, iremos sofrer horrores. Os nossos comportamentos, têm seguramente um forte impacto no clima, mas pode não ser só isso. O sistema é dinâmico, logo em alteração permanente: os movimentos de convecção do próprio magma, os vulcões, o aumento dos desertos, a agricultura intensiva, a imensa desflorestação de há 200 anos a esta parte, o degelo acelerado dos polos e da tundra, a diminuição assustadora de água potável, a acidificação dos oceanos...e depois os milhares de milhões de humanos iguais a nós que passarão a ter cada vez menos acesso a bens essenciais...
Para quem ontem andou às pinhas para acender o lume, bebia leite acabado de ordenhar, água em qualquer mina ou ribeiro, apanhava a fruta das árvores, limpava à camisa (os figos nem isso) e comia e o ar era leve e perfumado de pinho bravo e outros matos, não deixa de ser assustador.
FB

M. L. Ferreira disse...

A parte do artigo salientada no início, resume bem o problema e as medidas urgentes que é necessário tomar, mas que não dependem de nós, individualmente.
É claro que também podemos ajudar, mas não é apenas com a separação do lixo doméstico (sabemos lá se e como é que o vão reciclar nas estações de tratamento…) ou reduzir o consumo de alimentos processados e outros que fazem viagens que nós nunca faremos (são apenas dois exemplos do que podemos fazer). Mas o papel principal compete aos governos de cada país, individualmente ou no seu conjunto, com a produção e monitorização de leis sérias e de fácil cumprimento, o que nem sempre acontece.
Há tempos criaram um programa que apoiava alterações nas casas que melhorassem a eficiência energética. O processo é tão complicado (se calhar de propósito), que muitas das pessoas que podiam beneficiar dele desistiram. Deve ser a explicação para o facto de o ministro do Ambiente dizer que ainda havia muitos milhões de euros disponíveis para apoio a este programa.
E a propósito de negacionistas, mas sobre um tema completamente diferente (ou talvez não), a última crónica do Daniel Oliveira na TSF é imperdível.



José Barroso disse...

Para não ficar sem responder ao posto anterior e, porque o assunto é muito vasto, diria apenas que a questão da nossa 'pegada' teria sempre que ser posta! Ou seja, o assunto teria, em qualquer caso, que ser discutido devido ao dano causado ao planeta pela nossa espécie que chegou aos 7,5 mil milhões de indivíduos! E nós temos como boas ideias como competitividade, concorrência e outras, todos os dias apregoadas pelos governos. Felizmente, também se ouvem palavras como sustentabilidade; mas as outras continuam a prevalecer. Portanto, o Homem tem que rever conceitos! Penso que é aí que tudo deve começar. É certo que as medidas que estão a ser tomadas (descarbonização) são boas, mas os conceitos errados continuam e, como se isso não chegasse, ainda temos que levar com os negacionista. Mas, evidentemente, se mudarmos o rumo temos que medir bem as consequências.
A duscutir
Abraços, hã!
JB