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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Vicentinos ilustres

José Pires Lourenço

VIDA E OBRA

- Nasceu na Póvoa da Atalaia, em 1891.

- Era filho de António Lourenço e Maria Vitória, naturais e residentes na Póvoa da Atalaia.

- Entre 1905 e 1909, trabalhou como ajudante de feitor agrícola, nas Zebras, em casa de Albano Caldeira.

- Aos 14 anos, a antologia «Poesias Selectas» revelou-lhe a paixão da sua vida: a poesia.

- Em 1920, casou com Palmira Ribeiro de Azevedo, natural de S. Vicente da Beira.

- De 1909 a 1926, viveu na Borralha, na casa mãe dos condes da Borralha.

- No ano de 1926, fixou-se em S. Vicente da Beira, como feitor da Casa Conde.

- Viveu na rua do Convento, em solar de 1888, construído no local do antigo convento das Religiosas Franciscanas.

- Foi poeta durante toda a vida, mesmo depois de cegar, em 1957. Ditava os versos ao filho António Lourenço Azevedo ou a quem lhos pedia. Reuniu a sua poesia em dois volumes que nunca publicou.

- Colaborou nos jornais «Voz do Santuário», «Beira Baixa» e «Pelourinho».

- Faleceu em S. Vicente da Beira, no ano de 1970. Lá por eu em S. Vicente / Não ser nado nem criado, / Espero sinceramente / De ser aqui sepultado.



 

Ao meu livro

(petição)

 

Ó livro dos meus amores,

Ó meu leal companheiro,

Alívio p´ras minhas dores,

Meu amigo verdadeiro.

 

Encontro em ti as doçuras

Que não tem qualquer amigo,

Quantos dias de amarguras

Eu só distraio contigo.

 

Tu és o meu confidente

Só em ti encontro calma,

Tens, em teus versos, pendente

Aos pedaços a minha alma.

 

Quantas vezes refletindo

Em tristes horas desertas

Me vai o pranto caindo

Nas tuas folhas abertas!

 

No teu conteúdo se encerra,

N´uma grande saudade,

Os sonhos de alta quimera

Que sonhei na mocidade

 

Toda a tua cantilena

Foi feita por minha mão,

Tendo, no bico da pena,

O meu próprio coração.

 

Como amigo que sou teu

Pedir-te um favor queria,

Se eu fosse livro e tu eu,

Eu também te atenderia.

 

Peço me não desampares

(Somos amigos diletos)

Se eu morrer e tu ficares

Diz cá meu nome aos meus netos.

 

Fazes-me isso, ora diz?

Prometes de assim fazer?

O nome deste infeliz

Só tu lho podes dizer.

 

E p´ra estares mais lembrado

Dou-t´o nome por extenso

Do teu muito afeiçoado

Amigo José Lourenço.

 

José Teodoro Prata

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Pedintes

Naquele tempo a vida diária na vila era muito vagarosa, medieval. As três classes da sociedade medieva ainda imperavam. O clero estava acima na pirâmide social, o senhor vigário era uma pessoa respeitada ou temida, à hora da catequese mesmo os mais arredios tinham que deixar as brincadeiras, as rotinas diárias e entrar na igreja para aprender a doutrina.
As catequistas pacientemente ensinavam o pai-nosso, acto de contrição, confissão, credo, salve-rainha… Senhoras Matilde, Resgate, irmãs passaraças, Estela e Maria, menina Maria de Jesus;  as irmãs professoras, Susana e Teresinha…  Mestras do catecismo boas e pacientes. Se por ventura algum catraio não entrasse na igreja à hora marcada, o padre Tomaz ralhava, ameaçava que diria ao pai.
Naquela época ainda se viam homens, mulheres, crianças descalças; as mulheres do Casal da Serra trocavam o calçado atrás da capela de São Sebastião. As que viviam na charneca trocavam as chinelas debaixo da sobreira que ainda hoje existe no Casal, à entrada da quelha que dá acesso à ribeira; quando regressavam às suas casas, os sapatinhos eram guardados e voltavam a calçar umas alpergatas ou faziam o percurso descalças.
Os senhores eram os donos de quase tudo, as melhores terras pertenciam-lhes, as melhores casas eram deles e situavam-se nos locais mais nobres da vila. A praça atesta aquilo que estou explanando: o clero com duas igrejas, a nobreza com seus solares e o mais nobre de todos, ao menos isso, a domus municipalis, símbolo do povo.
Para os senhores trabalhava o povo de sol a sol, a troco de uma escudela… No tempo da azeitona, aos colhedores por cada oito ou nove litros de azeite cabia-lhes um; os rendeiros, para além de pagarem uma determinada quantia em dinheiro, tinham que levar ao senhor uma cesta com os melhores frutos; as uvas, a azeitona eram para os senhores, o desgraçado estrumava, cavava e só arrecadava o que a terra produzia com muito trabalho e suor:- batatas, cebolas, couves, figos, maçãs…
Se isto não eram tempos medievos!
Aos “nobres” não lhes interessava nada que alguém quisesse progredir, um exemplo flagrante foi a construção da serração, a fábrica, que empregava no primeiro quartel do século umas duas dezenas de pessoas. Quanto tempo durou?
Há um dito que diz: "Os espanhóis foram conquistando… quando encontraram pedras deixaram aos portugueses." Quem passar por Salamanca, Ciudad Rodrigo e por aí fora, em redor da estrada a paisagem, apesar de seca, não é pedregosa. Assim que entramos em Vilar Formoso, começam as serranias graníticas, pedregosas, giestais, matorrais…
Na vila acontecia a mesma coisa: Casa Conde, Casa Cunha, Casa Visconde de Tinalhas e por aí fora. O pobre tinha as serras, courelas pobres difíceis de arrotear, caminhos mal andamosos, estreitos e tortuosos, onde só passava o homem e o burro.
Parece que tudo isto se passou há uma porradoria de lustros, mas não.
As coisas só começaram a mudar com a partida dos homens para as Franças… as guerras de África, as saídas para Lisboa… Todos tinham um objectivo comum, a melhoria das condições de vida, melhores ordenados, menos horas de labor diário. Os que ficavam, os senhores não tinham outro remédio senão acompanhar a evolução dos tempos.
A prosa já vai longa e ainda não escrevi nada sobre a ideia que me fez escrevinhar todas estas palavras.
           
Naquela época, estávamos ainda nos anos cinquenta do passado século, de vez em quando os tambores rufavam pelas ruas basálticas da vila, comediantes anunciavam a sua chegada. Na praça montavam o trapézio, à noite comediavam e o povo encantava-se com as momices que se iam desenrolando.
Os porcos eram criados paredes meias com as pessoas, as furdas situavam-se nas lojas rés-do- chão das habitações. Não eram só os porcos que lá viviam; burros, galinhas, vacas… As ruas eram “enfeitadas” com bostas, galinhas esgravatavam à procura do milho rei. Os ganhões transportavam nos seus carros toda a espécie de géneros, os rodados iam desgastando os granitos que se encontravam nos caminhos, deixando sulcos por onde escorriam as águas na estação invernal. A miséria campeava, era rainha em muitos lares, de vez em quando apareciam pessoas que andavam de porta em porta a pedir, eram os pedintes.
Um deles era o Mudo da Torre, pessoa simples, andrajosamente vestido, bonacheirão, risonho, não fazia mal a uma mosca. Quando o víamos, não o largávamos e clamávamos: "Mudo da Torre… Mudo da Torre." Voltava-se para nós com um brilhozinho nos olhos e um sorriso nos lábios, tirava a gorra levantava-a no ar e dizia "É! É! É! É…" e nós voltávamos ao princípio "Mudo da Torre…"
Havia um que era o oposto do Mudo da Torre, chamava-se Diamantino. Timantino um homem alto, bem-posto, fato coçado, andar meio torcido, na cabeça usava uma boina. Parece que era natural da Lardosa. Até certa altura tinha tido uma vida estável, uma desavença e foi parar à cadeia onde passou alguns anos. Quando saiu, transtornado com a vida, passou-se. Andava de terra em terra a pedir, Mudo da Torre aceitava tudo que lhe davam, Timantino só pedia nas casas ricas. Nós, os catraios, um pouco afastados, atanazavamo-lo gritando: "Ó Timantino… Ó Timantino, Tino, Tino…". Com cara de mau, corria atrás de nós com uma faca na mão…
Havia um pedinte discreto, natural de Niza. Uma vez por ano visitava a casa do senhor José Lourenço que lhe dava uma esmola.  José Lourenço era o senhor todo-poderoso da Casa Conde, punha e dispunha, ia às feiras ver os gados, comprava, vendia… Este pedinte, quando saía, dizia-lhe: "Senhor José, se algum dia passar por Nisa, terei muito gosto em o receber na minha casa."
O feitor sorria amareladamente. Certo dia, resolveu ir a Nisa a uma feira e lembrou-se de o procurar. Dirigindo-se a um transeunte, perguntou onde morava o tal pedinte, este só faltou pôr-se em sentido. "Vá por esta rua abaixo, a sua casa fica ao fundo da rua."
Seguiu as instruções do transeunte e quando chegou ao local indicado disse para o criado que tinha ido com ele: "Não pode ser esta a casa, isto é um palácio."~
Em todo o caso, bateu à porta e imediatamente aparece um criado. "Diga ao seu patrão que está aqui o José Lourenço de São Vicente da Beira…" Subiu as escadas do casarão e aparece à sua frente o pedinte. O pobre era mais rico que ele. "Olhe senhor José, foi a pedir que consegui o que tenho."
A partir dessa altura nunca mais voltou à vila.
Naquela época ainda havia usos, costumes e preconceitos muito arreigados entre as populações, as sociedades viviam em espaços rurais muito fechados, o espírito comunitário imperava, assim como a miséria grassava e campeava. Havia uma coisa nos nossos dias cada vez mais rara: alegria. As pessoas mesmo com a barriga vazia mourejando de sol a sol, cantavam, ajudavam-se e à noite, ao toque das ave-marias, viam-se ranchos que regressavam às suas casas rezando ou galhofando.
Hoje não falta nada, mas falta o principal que se chama alegria e amor solidário.
Fiquem-se com mais esta: A ambição cerra o coração; mas o amigo conhece-se na adversidade; em contrapartida, o amigo fingido conhece-se no arruído.


J.M.S

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Quadros da nossa história

Era uma vez…
Todas as histórias começam assim.
Há muitos, muitos séculos; clima ameno, água pura que brotava das encostas verdejantes; a serra começou a servir de refúgio a muita gente que fugia dos invasores…
Tendo em conta a necessidade de se defenderem constroem num local inexpugnável da serra um castelo.
Durante muitas gerações viveram no alto da montanha apascentando seus rebanhos, vivendo da caça e da pastorícia.
Os vales já não ofereciam perigo, depois de duras guerras entre cristãos e sarracenos; no sítio da Oles travou-se uma grande batalha entre cristãos e mouros; diz a lenda.
Ei-los descendo as encostas serranas e agrestes caminhando para os vales e planícies mais férteis e amenas. Pouco a pouco abandonam o castro “Castelo Velho” A fronteira cristã já se encontrava mais ao sul.
Do velho castelo nada resta; amontoados de pedras, as populações que habitavam aquelas paragens partiram:-uns para o lado nascente, outros para o poente.
Os primeiros certamente por estarem mais expostos a invasões construíram um castelo novo. Os que partiram para a encosta poente nunca construíram outro, ficariam conhecidos por Trans Serre (Trás da Serra).
Uns e outros fazem suas vidas, acessos difíceis, os contactos foram rareando, cresceram duas novas comunidades.
Os moradores de Trás da Serra ao fixarem-se no campo construíram suas cabanas nas vinhas. Naquele lugar encontram-se numerosos vestígios da ocupação humana” pedaços de telhas, talhas, mós…
Talvez não fosse o melhor sítio para se viver “escassez de água, muitas formigas, ou outro motivo”!, abandonaram-no, resolvem habitar um pouco mais acima nas faldas da serra Guardiã onde fundam um novo povoado, muita água, nateiros que bordejam a ribeira.
Foi crescendo o povoado.
A independência nacional estava consolidada, certo dia o povo reuniu no largo principal, depois de muito conversarem decidiram que alguns tinham que ir à capital do reino oferecer a terra ao rei. Ouçamos:

Primeiro homem bom: Vizinhos e familiares, estamos reunidos para debatermos um assunto muito importante para o nosso povo, a independência do reino foi alcançada, alguns de nós têm que ir a Lisboa oferecer a nossa terra a el-rei nosso senhor
Segundo homem bom: Devemos entregar a nossa terra à protecção do nosso rei e senhor D. Afonso Henriques.
Terceiro homem bom: Estou convosco, mas não contem comigo para ir a Lisboa.
Primeiro homem bom: Porque?
Segundo homem bom: Tenho a vinha para colher e as terras para lavrar.
Primeiro homem bom: Alguns terão que ir
Terceiro homem bom: A minha égua anda manca, não me vou meter ao caminho com ela assim.
Primeiro homem bom: Alguém tem que ir.
Todos em uníssono: Podes ir tu, tu, tu…
Primeiro homem bom: Assim aos berros ninguém se entende, vamos às sortes. Eu não me importo de ir, haja quem me acompanhe.
Quarto homem bom: Podes contar comigo, responde o quarto homem bom.
Segundo homem bom: Eu vou.
Primeiro homem bom: Vamos os quatro, de hoje a oito dias, abalamos de madrugada.
Quarto homem bom: Povo de Trás da Serra, no dia quinze de Setembro nós os quatro vamos a Lisboa oferecer a nossa terra a el-rei nosso senhor D. Afonso Henriques.

Narrador: Os dias foram passando, iguais como todos os dias, tirar as cabras do bardo, as ovelhas do redil. Finalmente o grande dia chegou.
Mulher do primeiro homem bom: Meu querido homem, que a jornada te corra bem, que Deus Nosso Senhor te acompanhe, agasalha-te bem à noite, tem cuidado com os salteadores, com os lobos e não te percas. Voltai depressa!
Mulher de outro homem bom: Adeus meu rico homem, faz boa viagem, que Nosso Senhor te cubra com sua sombra.
Um filho: Pai, sua bênção.
Primeiro homem bom: Adeus amigos, adeus a todos…já lá vem a aurora; vamos.

Narrador: Pernoitando aqui, descansando ali, a jornada correu sem grandes sobressaltos, chegaram a Lisboa no dia vinte e cinco de Setembro do ano da graça de 1173. Muita gente a sair de uma igreja, duas alas se vão formando.

Primeiro homem bom: O que é isto que nossos olhos estão vendo, nunca vimos tanta gente.
Terceiro homem bom: Perguntemos àquele ancião. Olhe lá, vossemecê diga-nos o que vem a ser isto.
Ancião: Vossemecês não são de cá, pois não?
Os quatro homens bons: Não senhor.
Ancião: São os restos mortais do mártir São Vicente que estão a ser levados da igreja de Santa Justa para a Sé.
Primeiro homem bom: Quem foi esse santo?
Ancião (pacientemente): Foi um diácono hispânico, natural da cidade de Valência, que os romanos mataram por não ter querido renegar a fé de Cristo Nosso Senhor. É um grande santo, seu corpo foi levado secretamente para o nosso Algarve onde o sepultaram. Por ordem de el-rei D. Afonso Henriques os restos mortais vieram para Lisboa num barco, desde o promontório de Sagres até Lisboa dois corvos acompanharam as santas relíquias, olhem; vinha um à proa e outro à popa.
Segundo homem bom: Muito bem! E quem é aquele?
Ancião: É o nosso rei e senhor D. Afonso Henriques que se dignou acompanhar as venerandas relíquias.
 Primeiro homem bom: Bem haja bom homem. Não podemos perder o rei de vista

Narrador: Findas as cerimónias, os moradores de Trás da Serra dirigem-se ao rei.
Primeiro homem bom: Alteza real, vimos da Beira Serra onde fundámos um povoado, Trás da Serra é o seu nome, vimos oferecer a nossa terra e todos os nossos pertences ao nosso rei e senhor.
Afonso Henriques: Estou grato, aceito a vossa terra, como prova do meu agradecimento e alegria vou-vos oferecer um tesouro, tendes que o guardar para todo o sempre. Acompanhai-me.
Quarto homem bom: Onde nos leva o rei! Vamos entrar na Sé.
Afonso Henriques: Tomai este osso do queixo do mártir São Vicente, guardai-o religiosamente, a partir deste momento a vossa terra deixará de se chamar Trás da Serra e passa a chamar-se São Vicente.
Os quatro homens bons: El-rei nosso senhor, bem- haja
Primeiro homem bom: Majestade, aceitai estes humildes presentes, fruto do nosso trabalho. Isto é um pote de mel, aquele é um odre de azeite, uma canada de vinho, neste alforge estão enchidos das nossas salgadeiras; presuntos, chouriços…
Afonso Henriques: Bem-haja, que Santa Maria Nossa Mãe vos acompanhe de regresso à vossa terra, ao nosso São Vicente

Narrador: Contentes e felizes regressam; o povo recebe-os festivamente no largo principal.
Primeiro homem bom: Trazemos duas grandes notícias de Lisboa. El-rei D. Afonso Henriques com quem tivemos o privilégio de falar ofereceu-nos esta relíquia de um mártir que morreu pela nossa santa fé de nome Vicente, disse-nos para a guardarmos religiosamente na nossa terra. Só nós e Lisboa possuímos relíquias deste santo, aceitou a nossa terra e a partir de agora por vontade sua passa a chamar-se São Vicente. Viva o nosso rei
Todos: Viva… Deus o proteja.

Narrador: A comunidade Vicentina crescia, os dias e as noites sempre iguais; alguns anos mais tarde..
Arauto: Avisam-se todos os vizinhos desta nossa terra de São Vicente que faleceu no passado dia 6 de Dezembro deste ano da graça de 1185 nosso rei e senhor D. Afonso Henriques; sucede-lhe seu filho D. Sancho I. VIVA O REI!

Narrador: D. Afonso Henriques foi o “pai” de São Vicente, D. Sancho seu filho, concedeu-lhe a carta de alforria. Todo o povo reunido no largo escuta atentamente.
Primeiro homem bom: Perante todos vós, quero transmitir-vos o seguinte:-D. Sancho I concede-nos um foral que nos faz a partir deste momento cabeça de um grande território. Começa assim:
Em nome da Santa e Individua Trindade, Padre, Filho e Espirito Santo amem. Eu, rei Afonso filho do rei Sancho juntamente com minha mãe rainha Dulce e ao mesmo tempo com Gonçalo Martins prior de São Jorge e todo o seu convento e com frei João de Albergaria de Poiares queremos restaurar e povoar o lugar de São Vicente
Damos e concedemos o foro e costumes da cidade de Évora a todos, tanto presentes como futuros que lá quiserem habitar…
(Seguem-se todas a regalias e obrigações que cada morador tem)
A terminar, o documento menciona os limites de São Vicente que vão pela ribeira de Almacaneda e segue a corrente até ao fundo do vale do Peral, ao fundo entram em Almacaneda e entra em Rio de Moinhos no Ocresa, depois pela água de Ocaia! Vai até à Portela de São Vicente.
Eu rei Afonso, juntamente com minha mãe rainha dona Dulce, autorizamos e confirmamos esta carta com nossas próprias mãos.
Todo o que quiser rasgar este facto nosso, seja amaldiçoado de Deus. Concedemos a todo o cristão embora servo que habitar durante um ano em São Vicente seja livre e ingénuo.
João Venegas; presbítero, notou.
Eu, rei Sancho de Portugal confirmo. Eu, infante Fernando filho do rei Sancho confirmo. Eu, infanta dona Teresa, confirmo. Eu, Gonçalo Martins, prior de São Jorge e todo o seu convento confirmamos.
Frei João de Albergaria, confirmo
Os moradores de São Vicente não têm poder de vender, nem dar suas herdades enquanto não as sirvam por um ano, depois; vendam ou deam a quem quiserem
João Fernandes, testamenteiro; Mendo Pelágio, testamenteiro; Martinho Fernandes, testamenteiro; D. Julião, testamenteiro; Gonçalo Martins, testamenteiro; Didaco Cavaco, testamenteiro; Pelaio Rutura, testamenteiro; e Fernando Soares, testamenteiro
Feito no dia 22 de Março do ano da graça de 1195
Quem quiser saber tudo mais pormenorizado venha à minha humilde casa que leio e explico.
Todos: Viva São Vicente, viva a nossa vila, viva o nosso rei e senhor D. Sancho!

Narrador: Passavam os séculos, a vila sempre a crescer, tornou-se uma das terras mais importantes das Beiras.
Vigário: Fidalgo, estou velho, os anos passam, quero deixar os meus bens à Albergaria, é uma instituição que cuida dos pobres, dos doentes, dos que nada têm.
Fidalgo: Vossa reverência padre Estevão Anes é quem sabe.
Vigário: Deixarei os meus bens à Albergaria do Santo Espírito. Amanhã, dia 22 de Abril do ano da graça de 1363 chamarei o escrivão à minha casa. Conto com a vossa ajuda.

Narrador: Esta instituição antecede as misericórdias. A primeira vez que a palavra misericórdia é relatada, “até prova em contrário”, menciona que uma senhora casada com um senhor de nome Crespo, faleceu no dia 15 de Dezembro do ano 1572, foi sepultada na igreja da misericórdia. Em 1363 já existia na vila uma  albergaria assistencial.
As misericórdias foram fundadas pela rainha dona Leonor, a primeira a ser criada foi a de Lisboa, no dia 15 de Agosto do ano 1498.

Narrador: Continua o progresso e o engrandecimento da vila. Em Coimbra, no dia 20 de Agosto do ano 1469, D. João, ainda regente, confirma o foral; seu pai D. Afonso V ainda era vivo. Quarenta e três anos depois, D. Manuel l reforma-o em Lisboa, no dia 22 de Novembro do ano 1512

Narrador: Dona Teodósia da Paixão, à saída da missa.
Teodósia da Paixão: Senhor vigário, é meu desejo fundar um convento na nossa terra.
Vigário: Vou enviar uma carta ao senhor bispo a informá-lo.
Dona Teodósia: Dê-me novas o mais rápido que possa.
Um popular: A Dona Teodósia vai fundar um convento na nossa terra.
Outro popular: É uma santa, tem sempre qualquer coisa para dar aos pobres.
Vigário: Senhora, chegaram novas do senhor bispo, ele concede esse privilégio à nossa terra.
Dona Teodósia: Deus ouviu minhas preces. Obrigado, meu Deus!
Narrador: Dona Teodósia da Paixão foi a fundadora e a primeira abadessa do convento de monjas clarissas de São Vicente da Beira. Do velho mosteiro nada resta; desculpem: escapou um pórtico à voragem dos homens.

Narrador: Os tempos passam, a certa altura em São Vicente surge mais um momento histórico
Anónimo popular: Senhor D. António, para onde vai com tanta pressa!
D. António: Quarenta bravos e valentes conjurados colocaram novamente rei português no trono de Portugal, mataram o traidor Miguel de Vasconcelos e obrigaram a duquesa de Mântua a deixar Portugal.
Anónimo popular: Vou tocar os sinos, senhor D. António de Azevedo.
D. António: Vai, toca-os com todas as tuas forças, este dia é de festa, de alegria e de esperança no futuro.
Populares: Que se passa! Os sinos não param de tocar, vamos à praça.
D. António: Vicentinos, vizinhos, amigos; o poder dos Filipes terminou, sessenta longos anos de obscurantismo acabaram, temos novamente rei português. Viva nosso rei e senhor D. João IV. Uma conspiração havida em Lisboa no dia 1 de Dezembro deste ano da graça de 1640, quarenta patriotas derrubaram o rei estrangeiro. Viva Portugal, viva o rei. Deixem-me partir, vou à vila de Castelo Branco aclamar o nosso rei.
Anónimo popular: Este senhor D. António de Azevedo Pimentel é um grande vicentino.

Narrador: Foi o primeiro a levantar voz a favor do rei português nas vilas de Castelo Branco e São Vicente. O tempo sempre velho e sempre novo passava, a pacatez da vila foi mais uma vez alterada.
Criado: Senhor comendador, uma carta de el-rei.
D. João: Deixa-me ver, era o que eu esperava, nosso rei D. Afonso VI concede-me o título de conde de São Vicente. Eu, João Nunes da Cunha, a partir desta data 2 de Abril do ano da graça 1666 sou o primeiro conde de São Vicente.
Narrador: Algum tempo depois recebe outra mensagem.
Isabel de Borbon: Senhor, que diz essa carta?
D. João: Sua alteza real quer que vá para a Índia ocupar o lugar de vice-rei.
Narrador: Nesse mesmo ano embarcou para a Índia, foi o trigésimo vice-rei. Faleceu na Índia no mês de Outubro do ano 1668. Dona Maria Caetana Vilhena e Cunha, sua filha, foi a segunda condessa, casou com o senhor D. Miguel Carlos de Távora que, pelo casamento, passou a ser o segundo conde de São Vicente.

Primeiro popular: Os sinos estão a dobrar, vou à praça ver o que se passa, se calhar morreu o senhor padre José, tem estado muito mal.
Segundo popular: Oh Maria, os sinos estão a dobrar há tanto tempo, o que é que se passa?
Maria: Vossemecê não sabe! Foi o senhor padre José Estevão Cabral que morreu.
Narrador: Foi um sábio, nasceu em Tinalhas no dia 22 de Fevereiro do ano da graça de 1734, aos catorze anos partiu para Coimbra para estudar no colégio dos jesuítas. O marquês de Pombal extinguiu a ordem em Portugal. Seu pai, abastado lavrador, foi a Coimbra convencê-lo a vir para Tinalhas, mas ele não aceitou e partiu para Roma.
O papa Clemente IV nomeou-o mestre do colégio romano. Trinta anos depois regressa a Lisboa. Grande conhecedor da hidráulica, a rainha Dona Maria I encarrega-o de estudar os rios Tejo e Mondego. Publicou vários livros sobre essa matéria. Hoje, dia 1 de Fevereiro de 1811, expirou um homem notável do nosso concelho.
Viveu os últimos anos da sua vida em São Vicente da Beira
Terceiro popular: Além vai o cortejo fúnebre a caminho da sua terra natal, que Deus o tenha em bom lugar.
Tanta gente a acompanhá-lo!

Padre Simão: Afilhado, estou velho e alquebrado, tenho pensado seriamente naquilo que hei de fazer à fortuna que possuo. Gostaria de fazer alguma coisa pela nossa terra, que achas? Uma obra social?
Padre José: Padrinho, a sua ideia é boa, mas o Sobral é uma terra tão pequena, porque não construir em São Vicente? Tem um passado histórico riquíssimo, é sede do concelho, localiza-se num lugar central, ao passo que o Sobral está numa ponta…
Padre Simão: Tens razão, afilhado; São Vicente está bem localizado, a nossa terra fica perto, vou pensar na tua ideia.
Narrador: O padre José Davide dos Reis foi um grande professor e um grande amigo de São Vicente. Provedor da Santa Casa, foi ele o mentor e o principal responsável para que o padre Simão Duarte do Rosário deixasse a sua fortuna à Santa Casa. Com a sua fortuna, construiu-se o grande hospital que ficaria a servir todas as freguesias vizinhas, vontade sua.
Padre Simão: Afilhado, tens razão, será na vila que irei construir o hospital. Fique desde já assente, servirá a vila, o Sobral, Louriçal, Ninho do Açor, Tinalhas, Almaceda…
Padre José: A sua vontade será feita.
Narrador: Em 1894, nascia um grande edifício, o hospital da misericórdia de São Vicente da Beira. Possuía bastantes bens, com o advento da república a maior parte do seu património foi confiscado. Tinha propriedades no Ninho do Açor, Lardosa, São Vicente… Começou a sobreviver de donativos, cortejos de oferendas.
Outro grande benemérito, foi o doutor Silva Lemos, natural da cidade do Porto, deixou todo o seu património ao hospital. Com o seu dinheiro construíram-se as casas do bairro.
Em 1952 realizou-se um grande cortejo de oferendas. Nessa altura o poeta popular senhor José Lourenço editou um pequeno livro de versos onde narra toda a história do cortejo.
(…)
Deram os comerciantes
-Que em seus carros bem se via-
Muita coisa proveitosa
Roupas e mercearia!

Lá vinham os nossos ranchos
Todos tão bem ensaiados
Que nos deixaram absortos
-Completamente encantados

Lá vinha o Mestre Ventura
Na bigorna a martelar
Co`seu porta voz fingido
E o seu fole a trabalhar

Chegaram os lavradores
Com tantos produtos seus
-Tão úteis e variados
Que eram um louvar a Deus!

O do Ninho do Açor
Foi o que primeiramente
Deu entrada no cortejo
Co`seu carro de semente

Vinham os carros das Quintas
Todos bem apetrechados
-Neles as donas de casa
Bem mostraram seus cuidados

Viu-se o carro dos Pereiros
A correr por ali fora
Ia ficando p `ra traz
Por vir à última hora!
(…)

A Santa Casa chegou a ter 75 propriedades.

Com a queda dos morgadios, o apoio a D. Miguel na guerra entre absolutistas e liberais, começou a decadência da vila.
Era composto este antigo concelho pelas freguesias de Sobral do Campo, Louriçal do Campo, Ninho do Açor, Freixial do Campo, Tinalhas, Povoa Rio de Moinhos ”justiça”. Com a queda do concelho de Sarzedas, Almaceda passou para o concelho de São Vicente
A partir do terceiro quartel do século dezanove, o concelho começou a esboroar-se até à queda final que aconteceu em 1895.
Atualmente, todas a freguesias deste antigo concelho pertencem ao grande concelho de Castelo Branco.
E depois! Morreram as vacas, ficaram os bois


J.M.S