Naquele
tempo a vida diária na vila era muito vagarosa, medieval. As três classes da
sociedade medieva ainda imperavam. O clero estava acima na pirâmide social, o
senhor vigário era uma pessoa respeitada ou temida, à hora da catequese mesmo
os mais arredios tinham que deixar as brincadeiras, as rotinas diárias e entrar
na igreja para aprender a doutrina.
As
catequistas pacientemente ensinavam o pai-nosso, acto de contrição, confissão,
credo, salve-rainha… Senhoras Matilde, Resgate, irmãs passaraças, Estela e
Maria, menina Maria de Jesus; as irmãs professoras,
Susana e Teresinha… Mestras do catecismo
boas e pacientes. Se por ventura algum catraio não entrasse na igreja à hora
marcada, o padre Tomaz ralhava, ameaçava que diria ao pai.
Naquela
época ainda se viam homens, mulheres, crianças descalças; as mulheres do Casal
da Serra trocavam o calçado atrás da capela de São Sebastião. As que viviam na
charneca trocavam as chinelas debaixo da sobreira que ainda hoje existe no
Casal, à entrada da quelha que dá acesso à ribeira; quando regressavam às suas
casas, os sapatinhos eram guardados e voltavam a calçar umas alpergatas ou
faziam o percurso descalças.
Os
senhores eram os donos de quase tudo, as melhores terras pertenciam-lhes, as
melhores casas eram deles e situavam-se nos locais mais nobres da vila. A praça
atesta aquilo que estou explanando: o clero com duas igrejas, a nobreza com
seus solares e o mais nobre de todos, ao menos isso, a domus municipalis,
símbolo do povo.
Para
os senhores trabalhava o povo de sol a sol, a troco de uma escudela… No tempo
da azeitona, aos colhedores por cada oito ou nove litros de azeite cabia-lhes
um; os rendeiros, para além de pagarem uma determinada quantia em dinheiro,
tinham que levar ao senhor uma cesta com os melhores frutos; as uvas, a
azeitona eram para os senhores, o desgraçado estrumava, cavava e só arrecadava
o que a terra produzia com muito trabalho e suor:- batatas, cebolas, couves, figos,
maçãs…
Se
isto não eram tempos medievos!
Aos
“nobres” não lhes interessava nada que alguém quisesse progredir, um exemplo
flagrante foi a construção da serração, a fábrica, que empregava no primeiro quartel
do século umas duas dezenas de pessoas. Quanto tempo durou?
Há
um dito que diz: "Os espanhóis foram conquistando… quando encontraram
pedras deixaram aos portugueses." Quem passar por Salamanca, Ciudad
Rodrigo e por aí fora, em redor da estrada a paisagem, apesar de seca, não é
pedregosa. Assim que entramos em Vilar Formoso, começam as serranias
graníticas, pedregosas, giestais, matorrais…
Na
vila acontecia a mesma coisa: Casa Conde, Casa Cunha, Casa Visconde de Tinalhas
e por aí fora. O pobre tinha as serras, courelas pobres difíceis de arrotear,
caminhos mal andamosos, estreitos e tortuosos, onde só passava o homem e o
burro.
As
coisas só começaram a mudar com a partida dos homens para as Franças… as
guerras de África, as saídas para Lisboa… Todos tinham um objectivo comum, a
melhoria das condições de vida, melhores ordenados, menos horas de labor
diário. Os que ficavam, os senhores não tinham outro remédio senão acompanhar a
evolução dos tempos.
A
prosa já vai longa e ainda não escrevi nada sobre a ideia que me fez
escrevinhar todas estas palavras.
Naquela
época, estávamos ainda nos anos cinquenta do passado século, de vez em quando
os tambores rufavam pelas ruas basálticas da vila, comediantes anunciavam a sua
chegada. Na praça montavam o trapézio, à noite comediavam e o povo encantava-se
com as momices que se iam desenrolando.
Os
porcos eram criados paredes meias com as pessoas, as furdas situavam-se nas
lojas rés-do- chão das habitações. Não eram só os porcos que lá viviam; burros,
galinhas, vacas… As ruas eram “enfeitadas” com bostas, galinhas esgravatavam à
procura do milho rei. Os ganhões transportavam nos seus carros toda a espécie
de géneros, os rodados iam desgastando os granitos que se encontravam nos
caminhos, deixando sulcos por onde escorriam as águas na estação invernal. A
miséria campeava, era rainha em muitos lares, de vez em quando apareciam
pessoas que andavam de porta em porta a pedir, eram os pedintes.
Um
deles era o Mudo da Torre, pessoa simples, andrajosamente vestido, bonacheirão,
risonho, não fazia mal a uma mosca. Quando o víamos, não o largávamos e
clamávamos: "Mudo da Torre… Mudo da Torre." Voltava-se para nós com
um brilhozinho nos olhos e um sorriso nos lábios, tirava a gorra levantava-a no
ar e dizia "É! É! É! É…" e nós voltávamos ao princípio "Mudo da
Torre…"
Havia
um que era o oposto do Mudo da Torre, chamava-se Diamantino. Timantino um homem
alto, bem-posto, fato coçado, andar meio torcido, na cabeça usava uma boina.
Parece que era natural da Lardosa. Até certa altura tinha tido uma vida
estável, uma desavença e foi parar à cadeia onde passou alguns anos. Quando
saiu, transtornado com a vida, passou-se. Andava de terra em terra a pedir, Mudo
da Torre aceitava tudo que lhe davam, Timantino só pedia nas casas ricas. Nós, os
catraios, um pouco afastados, atanazavamo-lo gritando: "Ó Timantino… Ó Timantino,
Tino, Tino…". Com cara de mau, corria atrás de nós com uma faca na mão…
Havia
um pedinte discreto, natural de Niza. Uma vez por ano visitava a casa do senhor
José Lourenço que lhe dava uma esmola. José Lourenço era o senhor todo-poderoso da
Casa Conde, punha e dispunha, ia às feiras ver os gados, comprava, vendia… Este
pedinte, quando saía, dizia-lhe: "Senhor José, se algum dia passar por
Nisa, terei muito gosto em o receber na minha casa."
O
feitor sorria amareladamente. Certo dia, resolveu ir a Nisa a uma feira e
lembrou-se de o procurar. Dirigindo-se a um transeunte, perguntou onde morava o
tal pedinte, este só faltou pôr-se em sentido. "Vá por esta rua abaixo, a sua
casa fica ao fundo da rua."
Seguiu
as instruções do transeunte e quando chegou ao local indicado disse para o
criado que tinha ido com ele: "Não pode ser esta a casa, isto é um palácio."~
Em
todo o caso, bateu à porta e imediatamente aparece um criado. "Diga ao seu
patrão que está aqui o José Lourenço de São Vicente da Beira…" Subiu as
escadas do casarão e aparece à sua frente o pedinte. O pobre era mais rico que
ele. "Olhe senhor José, foi a pedir que consegui o que tenho."
A
partir dessa altura nunca mais voltou à vila.
Naquela
época ainda havia usos, costumes e preconceitos muito arreigados entre as
populações, as sociedades viviam em espaços rurais muito fechados, o espírito
comunitário imperava, assim como a miséria grassava e campeava. Havia uma coisa
nos nossos dias cada vez mais rara: alegria. As pessoas mesmo com a barriga
vazia mourejando de sol a sol, cantavam, ajudavam-se e à noite, ao toque das
ave-marias, viam-se ranchos que regressavam às suas casas rezando ou galhofando.
Hoje
não falta nada, mas falta o principal que se chama alegria e amor solidário.
Fiquem-se
com mais esta: A ambição cerra o coração;
mas o amigo conhece-se na adversidade; em contrapartida, o amigo fingido
conhece-se no arruído.
J.M.S