As
fontes de mergulho têm origem muito antiga, provavelmente ainda no tempo dos Romanos,
e depois dos Árabes. A sua construção e utilização foi retomada mais
recentemente, nos últimos duzentos ou trezentos anos, e foram a principal fonte
de abastecimento de água às populações urbanas e rurais.
São
constituídas por um tanque de tamanho variável, coberto por uma cúpula. Eram construídas
abaixo do nível do chão, e para retirar a água tinha que se mergulhar o cântaro
dentro do tanque, por isso lhes davam aquele nome. A sua arquitetura variava de
acordo com as posses de quem as mandava construir, e os materiais utilizados eram
os que abundavam na região – o xisto ou o granito; algumas vezes uma mistura
dos dois. Para além da estrutura da fonte, existia um poial para se pousarem os
cântaros e, quase sempre, um banco em pedra para as pessoas poderem descansar
enquanto esperavam a vez.
Por
se considerar que eram uma ameaça para a saúde pública, porque muitas vezes serviam
também de bebedouros dos animais, as fontes de mergulho foram substituídas por
fontes de bica. Finalmente, já na última metade do século XX, quase todas as
habitações foram dotadas de rede de água canalizada e devidamente tratada.
Apesar disso, podem encontrar-se ainda fontes de mergulho um pouco por todo o
pais; algumas muito simples, outras mais elaboradas, revestidas a azulejo ou
com pinturas de frescos no seu interior. Algumas são autênticas obras de arte.
À
semelhança de muitas outras regiões do país, na freguesia de São Vicente da
Beira também podemos encontrar bastantes fontes de mergulho, algumas ainda bem
preservadas, outras nem tanto, o que é pena porque constituem uma parte
importante do nosso património. Embora muitas vezes estejam em propriedades
privadas, eram de acesso público. Talvez por isso, algumas se chamem “Fonte do
Povo”.
Fonte de Santiago (1878?), Partida
Chama-se
assim porque se situa junto de uma vereda, no fundo da encosta que leva à
capela de Santiago, na margem direita da ribeira.
Há
ainda muitas pessoas que se lembram de lá ir todos os dias buscar a água que
precisavam para os gastos de casa. A água era muito boa e fresca, por isso, no
tempo em que não havia ainda frigoríficos, era também usada para manter frescos
alguns alimentos e bebidas: «Quando era
pequeno acarretei de lá muitos cântaros para encher os bidões onde o meu pai
refrescava as cervejas e as gasosas que vendia na taberna. E a minha mãe também
a usava para meter a panela da sopa, para não azedar.»
A
fonte ainda tem alguma água, mesmo no verão, e disseram-me que ainda há quem lá
vá buscá-la para beber. Como curiosidade, por cima da pedra que encima a
abóbada, pode ver-se uma cruz esculpida no granito.
Fonte das Hortas (1886?),
Partida
Esta
fonte situa-se mais perto da zona urbana da Partida, numa zona de hortas.
Talvez por isso, seja este o nome por que é conhecida. Por ficar mais perto da
povoação, foi muito usada noutros tempos, mas atualmente, como diz um vizinho,
«…já está quase seca e a precisar de
limpeza. Não serve senão para regar algum pé de couve.»
Fonte do Rabo de Coelho,
Mourelo
«Não havia outra na terra e era lá que toda a
gente ia buscar a água para beber. É tão boa, aquela água, que ainda hoje lá
vai muita gente buscar garrafões para levar para fora, e quem lá passa não fica
sem ir beber dela; até lá está uma malga de propósito. Por causa disso, ainda é
limpa todos os anos, mas já não é como antigamente, que não se via ali uma
erva.
Chamam-lhe a Fonte do Rabo
de Coelho por causa duma lenda que se conta que diz que um dia, logo ao nascer
do sol, um velhote passou por ali e viu um coelho, de rabo encarnado, a beber
água da fonte. Quando acabou de beber fugiu para o mato e desapareceu. O homem
achou aquilo muito estranho porque nunca por ali se vira um coelho com o rabo
daquela cor. No dia a seguir passou por lá à mesma hora e tornou a ver o coelho
a beber água no mesmo sítio. E o caso repetiu-se por mais alguns dias.
O velhote já andava a
ficar intrigado, mas não contou nada a ninguém, com medo que se rissem dele.
Mas o pessoal da terra começou a desconfiar que alguma coisa se passava, porque
todos os dias o viam passar, de madrugada para os lados da fonte; logo ele que
não tinha horta para ali, e tinha tanta dificuldade em andar ou fazer o que
quer que fosse, todo apanhado pelo reumatismo. Quando lhe perguntavam o que é
que ele ia lá fazer, respondia que ia beber água, mas ninguém acreditava.
Um dia, com medo que
descobrissem o que se passava, resolveu apanhar o coelho com uma armadilha. Foi
lá durante a noite armar o ferro e na manhã seguinte, quando chegou à fonte,
estava o coelho morto, lá dentro. Tirou-o e levou-o para casa, bem escondido.
Depois de o ter esfolado, meteu-o numa panela de ferro, a cozer. Esteve todo o
dia ao lume, mas a carne cada vez estava mais rija. Já farto de esperar, deitou
a carne aos cães, mas nem eles foram capaz de a comer. Alguma coisa de estranho
se passava, e resolveu enterrar tudo. Pegou na pele e, mal lhe tocou, sentiu o
braço e a mão a mexer como se não tivesse nada. Até a perna, que já arrastava
com dificuldade, parecia como nova.
Ficou tão contente, que
não se teve e contou o segredo ao povo inteiro. A partir dali, toda a gente que
tivesse uma dor, passava com o pêlo do coelho por cima do sítio que lhe doía, e
o mal abalava, como que por milagre. Chegou até a vir gente de fora para
experimentar a pele milagrosa, e abalava curada.
A partir daí, aquela fonte
passou a chamar-se Fonte do Rabo de Coelho; até hoje.»
Esta
fonte fica numa zona de hortas, num caminho à direita da estrada que vai para o
Tripeiro, logo à saída do Mourelo. De todas as que encontrei, é a que tem a
água mais fresca e limpa.
Fonte do Cimo do Povo
(1932?), Vale de Figueira
«Chamam-lhe assim porque era lá que, quem
morava deste lado de cima do povo, íamos buscar a água; não havia outro sítio.
Os de lá de baixo tinham uma fonte ao pé da ribeira, mas essa já se não pode lá
ir, que foi comida pelas ervas e pelas silvas. Agora ninguém limpa nada, mas também
já cá há pouco quem o faça.
Antigamente as famílias
tinham muita gente e era preciso ir lá duas e três vezes para dar para as
necessidades da casa: para fazer o comer e lavar a loiça, para a gente se lavar
e para os vivos; só a roupa é que a íamos a lavar lá abaixo, à ribeira.
No inverno, quando nevava
ou geava, era muito perigoso porque a gente escorregava, e era ver os cântaros
a rebolar por essa rua abaixo. Vi muito cântaro em cacos, e eu também ainda
parti alguns.
Agora já está quase seca,
mas ainda a limpam todos os anos e há gente que ainda cá vem buscar água para
beber, quando a há.»
Fonte do Povo (1943?), Violeiro
«Antigamente, quando era nova, não havia
outra fonte onde a gente ir à água, de modo que toda a gente aqui vinha a ela.
Quando vinham aqueles grandes sequeiros, a nascente não dava vazão a encher tanto
cântaro, e às vezes a água acabava-se. Era preciso ficar à espera. Formavam-se aqui
uns carreiros tão grandes de gente, que havia quem de cá saísse já para lá da
meia-noite. Também havia quem tivesse poços, mas a água da fonte era melhor e
toda a gente cá vinha a ela, que mais não fosse para beber. E para o gado,
tiravam-na da fonte com caldeiros e deitavam-na nesta pia que ainda aqui está, quando
não, também a bebiam da fonte e tudo.
Agora a água que vem das
torneiras não é tão boa, mas é outro asseio; e a gente também já está velha para
aqui vir a buscá-la, que também já cá há pouca, calha bem. Mas, mesmo assim,
ainda há quem venha cá buscá-la para beber».
Esta
fonte encontra-se ao fundo da rua da Fonte, que começa perto da capela. É de
granito e xisto e tem uma placa com a data. Está limpa, mas já tem pouca água.
Ainda se pode ver a pia que servia de bebedouro aos animais.
Fonte do Povo, Tripeiro
Esta
fonte situa-se num desvio da estrada que vem do Mourelo, pouco antes de se
chegar ao Tripeiro. Durante muito tempo foi quase a única fonte de
abastecimento de água à população, mas, dizem os mais velhos, há muito tempo
que ficou quase seca, e tiveram que fazer uma mina logo do lado de baixo do
caminho. Vê-se que fizeram obras há pouco tempo, mas parece que não tiveram
muito cuidado em preservar alguma coisa do que ainda existiria da antiga
estrutura. Também não encontrei quem explicasse o facto de estar fechada.
Casal da Fraga
Esta
fonte situa-se no ribeiro que passa pelo Casal Poisão e desagua na Ribeira, por
baixo do “Casalito”. Era lá que muitas pessoas do Casal da Fraga iam buscar a
água para uso de casa. Originalmente estava no local onde, há alguns anos,
fizeram a ponte que vai do Casal para a Devesa. Com as obras, deslocaram-na um
pouco para baixo. Infelizmente foi reconstruída sem grande rigor, não
respeitando o que existia antes. Há pedras de granito, que fariam parte da
fonte original, espalhadas ali por perto. Pode ser que ainda venha a ser
reconstruída com a dignidade que merece, mesmo que fora do local de origem.
Fonte da Portela, São Vicente da Beira
Esta
fonte poderá ser das mais antigas da freguesia. Encontra-se à saída de São
Vicente, num local de passagem de pastores, ganhões, jornaleiros, comerciantes,
etc. que se deslocavam a caminho de Castelo Branco ou outros locais mais a sul.
Para além da fonte, destinada às pessoas, existia um tanque para onde escorriam
as sobras, que servia de bebedouro para os animais. Ainda se pode ver, à
direita. Atualmente, quer a fonte quer o tanque ficam completamente secos
durante o verão.
Senhora da Orada, São
Vicente da Beira
Esta
fonte, reconstruída há pouco tempo, foi feita a partir do que terá sido uma
antiga fonte de mergulho, soterrada há anos, durante as obras de alargamento do
terreiro do Santuário da Senhora da Orada. Ainda há pessoas que se lembram dela
e do efeito milagroso das suas águas. Contam
que muita gente lá curou o “cobrão” e outras doenças de pele, banhando-se nela.
Algumas
das pedras de granito são originais, outras foram postas agora, durante as
obras de restauro. O cano que serve de bica não existia antes, e terá sido
colocado por razões de higiene e para facilitar a tomada da água.
Para
além destas fontes, que são públicas e motivo de orgulho e muitas memórias (por
ali nasceram muitos amores), há outras mais modestas, que são menos visíveis
por se encontrarem em terrenos privados e de difícil acesso. Parece-me que será
o caso destas, na Quinta do Infante, que se avistam do caminho que passa em
frente da antiga casa da quinta, do lado direito da ribeira.
Haverá ainda muitas outras pequenas fontes de mergulho na freguesia. Algumas ainda à vista, outras escondidas por mato e silvas, e de acesso muito difícil (será o caso de uma que me disseram que existe perto da capela de Santiago, na Partida, onde os peregrinos que se dirigiam ao santuário matavam a sede). Algumas terão desaparecido por razões de vária ordem, principalmente pelas alterações que se fizeram nos terrenos onde se encontravam, por terem secado as nascentes ou terem deixado de ser utilizadas após o abastecimento domiciliário de água. Provavelmente já não vamos a tempo de as recuperar.
M.
L. Ferreira