sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Chalim

Nunca soube o nome dele, mas chamavam-lhe Chalim. Às vezes avistava-o na Praça, sempre a babar-se e a dar com os braços e a cabeça.
Depois, na Tapada, quando eu, as minhas irmãs e os meus primos ficávamos sozinhos, se as nossas mães iam às compras ou à Igreja, imaginávamos o Chalim a dobrar a curva da quelha, a abanar-se todo.
Fugíamos para casa e fechávamos a porta por dentro. Sabe-se lá o mal que um homem assim nos podia fazer.
Um dia, ia com o meu pai para casa do meu avô Prata, na Oriana. Ao chegar à Dona Zara, na Rua de São Sebastião, vi um homem que vinha em direcção a nós. Era ele.
Cheguei-me mais ao meu pai, peguei na mão dele e apertei-lha com força. Cruzámo-nos e o meu pai cumprimentou-o. Ficaram a conversar e eu, espantado, porque o Chalim falava como os outros homens e era amigo do meu pai.
A certa altura, desceu a mão direita, lentamente, a abanar muito. E eu, outra vez receoso, a segui-la com os olhos. Tentou metê-la no bolso exterior do casaco, mas custava a acertar com o buraco, com tanta tremideira. Finalmente conseguiu e o gesto revolto, fechado no bolso, fazia abanar toda a aba do casaco.
A pouco e pouco, a mão começou a sair do bolso e a subir. Trazia uma bola cor de laranja, uma tânjara. Aproximou as duas mãos e mudou-a de mão. Depois voltou a descer, o mesmo calvário e mais uma tânjara.
A da mão esquerda voltou à direita e, a custo, estendeu a mão trémula e cheia na minha direcção.
“Toma menino.” - ofereceu-me, já com a baba a aflorar nos cantos da boca.
Eu fiquei parado, sem tempo para perceber tanta coisa.
“Aceita.” - disse o meu pai.
Peguei nelas, sem mais reacção.
“O que se diz?” – insistiu comigo o meu pai.
“Bem haja!”
Eles continuaram a conversa e eu descasquei uma das tânjaras e comia-a, sôfrego, dois e três gomos de cada vez. Era só mel. Depois a outra, doce como o açúcar!
Eu era ainda muito pequeno e não tenho mais lembranças do Chalim. Mas, muitas vezes, ao longo da minha vida, me interroguei se tenho sido merecedor de toda a doçura daquele gesto.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

SOS Porco

Vou publicar, nas próximas semanas, dois trabalhos sobre a matação do porco.
Preciso de fotografias. Há por aí alguém que tencione tirar o chiadouro a um porco, nos próximos dias, ou que possa ir fotografar as fases da matação do porco a casa de um familiar ou vizinho?
Informem-me e depois enviem-me as fotos, pois esta tradição não durará muito mais tempo e os que estão longe gostam de matar saudades.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

A Orada no ciclo Pascal


Imagem da Senhora da Graça, em pedra ançã, do século XIV ou XV. Possível oferta de Nuno Álvares Pereira. Pertence à ermida de Nossa Senhora da Orada. Foto do Tó Sabino.

Fui ao espectáculo de apresentação do CD NINHO e valeu a pena. Música regional de qualidade! O Miguel Carvalhinho está de parabéns.
Quanto à nossa Senhora da Orada, nada, preferiu a sua Senhora da Serra. Deixou-se levar pelo coração, por ter passado três anos da meninice, em Castelo Novo! Não o podemos levar a mal.
Mas a sua entrevista ao Jornal do Fundão tem um aspecto que para nós é importante.
Ele afirma que a música da Senhora da Orada pertence ao ciclo pascal da Aleluia. Ora, este facto é mais um elemento, a juntar a outros, que confirma ter sido a festa a Nossa Senhora da Orada parte integrante da festa da Páscoa.
Síntese dos elementos já conhecidos:

Fontes escritas:
1.Em 1592, o Cónego Manuel Dias visitou a Igreja de S. Vicente da Beira, em representação do Bispo da Guarda. Uma das ordens que deixou foi: «Encomendo muito aos curas e mais padres desta vila que guardem os costumes antigos não fazendo procissões das ladainhas e a acompanhar o povo nas romarias que fazem na Nossa Senhora da Orada nos dias acostumados…».
2.Em 1758, nas Memórias Paroquiais, o vigário de S. Vicente da Beira informou: «…concorre de romagem muita gente à Senhora, principalmente no Verão de várias partes, e nos sábados da Quaresma a maior parte desta vila.» A Senhora era a da Orada. Pelos vistos, o povo fez ouvidos de mercador às recomendações de 1592.
3.Um opúsculo do final do século XIX, entregue ao GEGA, por descendentes da família Robles, afirma que «Uma romaria anual no domingo de paschoela chama ao local centenas de devotos…». O local é a ermida da Senhora da Orada e o domingo de Pascoela é o 1.º domingo após a Páscoa.
4.Dois ofícios da Administração do Concelho de S. Vicente da Beira para o Governo Civil, de 16 e 23 de Abril de 1895, informam que a festa a Nossa Senhora da Orada foi nesse ano, a 21 de Abril. Estes documentos confirmam a realização da festa na data indicada pelo opúsculo do século XIX.

Outras fontes:
a)Até à extinção das Boas Festas Pascais, nos inícios dos anos 70, elas eram, no Casal da Fraga, no segundo domingo depois da Páscoa, dia da festa de Santa Bárbara. A festa já se realizava nesse dia, quando a capela estava no Valouro, limite de S. Vicente com o Sobral.
b)Nas Quintas, as Boas Festas eram no dia da romaria da Senhora da Orada, 4.º domingo de Maio. A alteração da data da romaria terá arrastado consigo as Boas Festas, para este fim de Maio.
c)Ainda hoje, algumas pessoas fazem novenas à Senhora da Orada, no início da Primavera. Parece que a tradição secular se incorporou nos genes dos vicentinos.
d)É também no segundo domingo depois da Páscoa que se realizam as festas da Senhora da Encarnação (Póvoa de Rio de Moinhos), Senhora de Mércoles (Castelo Branco), Senhora do Almortão (Idanha-a-Nova). Em S. Vicente da Beira, é a festa de Santa Bárbara.
e)Vem agora Miguel Carvalhinho, no seu estudo, concluir que «…músicas que tenham a ver com a Nossa Senhora da Serra ou das Necessidades ou da Orada, têm muito a ver com um cântico que se canta em todo o lado que é o Cântico da Aleluia, no sábado que antecede o domingo de Páscoa.»

Conclusão:
Há uma relação directa entre estas festas de Nossa Senhora e a festa da Páscoa. Em S. Vicente da Beira, essa ligação era ainda mais forte, pois começava logo na Quaresma, com as novenas populares à ermida da serra.

Retábulo de alabastro, possivelmente do século XIV. Apresenta a degolação de S. João Baptista e a flagelação de Cristo. Pertence à ermida de Nossa Senhora da Orada. Foto do Tó Sabino.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Projecto NINHO



É um projecto de Miguel Carvalhinho, um músico desta nossa Beira, a residir no Ninho do Açor.
O CD já está à venda e o espectáculo é amanhã, 23 de Janeiro, às 21.30h, no Cine-Teatro Avenida, em Castelo Branco.
Os músicos que produziram o CD e vão estar em palco são da Escola Superior de Artes de Castelo Branco.

O Jornal do Fundão (07/01/2010) entrevistou Miguel Carvalhinho:

«Como a nossa linha de investigação prevê a comparação e a interacção entre os povos, perceber o que se passou em termos de música ao longo dos tempos, decidimos trabalhar em oito povoações da Gardunha, para tentar saber até que ponto existem músicas comuns ou não. Trabalhei assim em Alpedrinha, Soalheira, Castelo Novo, Casal da Serra, Louriçal do Campo, São Vicente da Beira, Souto da Casa e Alcongosta.»
E continua:
«Sabe-se que existiam músicas para determinados tipos de funções… cantava-se até para matar a fome. Por exemplo, músicas que tenham a ver com a Nossa Senhora da Serra ou das Necessidades ou da Orada, têm muito a ver com um cântico que se canta em todo o lado que é o Cântico da Aleluia, no sábado que antecede o domingo de Páscoa. Tinha acabado a penitência e o jejum.»

Os interessados em adquirir o CD (10 euros) devem fazê-lo através do endereço de correio electrónico: migcarva@gmail.com.

Ouçam o 1.º tema ("Viradinho ao Norte"), no Reconquista de hoje (22/01/2010) ou em www.myspace.com/ninhomusica

Ainda não conheço a versão da Senhora da Orada, das Necessidades ou da Serra que vem no CD, mas tem razão Miguel Carvalhinho.
Tentem cantar o poema que se segue, com a música de José Afonso, Oh! Que calma vai caindo, recolhida em Malpica do Tejo e publicada no album Contos Velhos, Rumos Novos, de 1969.
É a mesma música, cantada em duas povoações que distam entre si cerca de 60 quilómetros, com letras diferentes:

Ó que calma vai caindo
Ai, para quem anda no campo
Meu amor que por lá andas
Ai, enconsta-te o lírio branco

Abaixa-te ó serra alta
Ai, que eu quero ver a Lardosa
Quero ver o meu amor
Ai, que anda na folha da rosa

Abaixa-te o serra alta
Ai, que eu quero ver o Fundão
Quero ver o meu amor
Ai, que anda na ceifa do pão

ó Idanha, ó Idanha
Ó Idanha roubadora
Se tu nunca fosses Idanha
Ai, nunca o meu amor lá fora


Era um canto de trabalho, das mulheres que andavam na sacha do milho ou na ceifa do pão. Ainda se cantava nos campos da nossa terra, nos anos 70.
Recolha de Maria Isabel dos Santos Teodoro, trabalho manuscrito, Escola Secundária de Alcains, 1985

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Tertúlia SVD

O próximo encontro dos ex-alunos dos seminários do Verbo Divino será em Oleiros, organizado pelo grupo de Lisboa.
É já no próximo dia 30 de Janeiro, sábado, no restaurante "Maria Pinha".
A ementa é de se lhe tirar o chapéu:

Entradas:
Pão (broa e trigo)
•Queijo regional (fresco e curado)
•Presunto
•Enchidos regionais

Pratos:
Maranho ou Bucho Recheado
•Cabrito estonado "à moda de Oleiros", acompanhado por batata assada no forno, migas e arroz de miúdos

Sobremesa:
Tigelada, Arroz doce, Papas de carolo, Leite creme ou Fruta
Café
Bebidas:
Vinho tinto e branco (Herdade de Pias ou Esteva), Águas e Refrigerantes, Licor e Aguardente de Medronho

Valor por pessoa: € 22,00.


Eu, o Chico Barroso e o P.e Jerónimo já nos inscrevemos e vamos apreciar os petiscos e a boa companhia.

Porquê esta publicação?
Porque vos quero fazer água na boca!

Aos muitos ex-alunos vicentinos, para lhes dar conhecimento e também se inscreverem.
A todos, para vermos como a culinária regional é um excelente cartaz turístico.

Inscrições: http://sabordabeira.blogspot.com/

domingo, 17 de janeiro de 2010

Centenário da Banda


"A Pátria Nova", jornal republicano, publicado semanalmente em Castelo Branco, nos anos a seguir à implantação da República, trazia a seguinte notícia, referente a São Vicente da Beira:

Secção: «Câmara Municipal de Castelo Branco. Sessão de 13 de Fevereiro de 1912. Deliberações»

«Ceder as salas dos antigos Paços do Concelho de São Vicente da Beira para instalação do centro republicano e philarmonica d´aquela freguesia, sem prejuizo de qualquer outro destino que de futuro se lhes queira dar.»

Do centro republicano nada sabemos, mas a Filarmónica lá continua.
Ao longo de um século, várias vezes teve de sair e retornou.
Agora ambiciona um novo espaço, definitivo e mais ajustado às actividades que desenvolve.



Fotos do Dário Inês

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O grande nevão

Aos que estão longe, para matar saudades.
É o maior nevão de que as pessoas têm memória.
Foi no dia 10 e madrugada de 11 de Janeiro de 2010.
As fotos são do Dário Inês, em reportagem especial para o Enxidros.


(Clicar nas imagens, para ver os pormenores. A primeira foi tirada do alto do Casal da Fraga e ao fundo avista-se S. Vicente. Na segunda, até dá para identificar os artistas.)