Nasci
em 1937 e tenho muita coisa que contar, que a minha vida já foi muito grande.
Éramos
nove irmãos, mas morreu um, ainda em pequeno, e ficámos só oito. Criámo-nos
todos aqui nesta casinha. Agora já está muito aumentada, mas naquele tempo era
só uma sala tão pequena que mal lá cabia uma mesa e umas poucas de cadeiras,
para quando vinha alguém de fora; a cozinha, também um cochicho, e os quartos
eram só dois; mas cabíamos cá todos. Os meus pais dormiam num dos quartos, três
das cachopas dormiam no outro, as outras duas dormíamos numa enxerga, no forro,
e os três rapazes dormiam todos juntos, no palheiro ou ali por debaixo das
escadas que vão para a loja. Mas vivíamos todos muito felizes. Sem mimos que,
com tanto filho para criar, não havia tempo para essas coisas; mas nunca nos
faltou a educação nem que comer, graças a Deus.
O
meu pai era muito bom homem e o melhor pai do mundo. Nunca nos tocou, mas o que
ele dizia era uma escritura. E era muito trabalhador, mas tinha que andar quase
sempre por fora, que aqui ninguém se governava. Até ainda chegou a ir para a Espanha
e lá para cima, para o norte. Andou nas minas da Panasqueira uns poucos de anos
e também foi serrador. E quando não tinha noutro lado ia ao quinto e à azeitona.
Alguns anos até era ele o manageiro.
A
minha mãe também era muito boa, mas como era ela que tinha que nos aturar, às
vezes perdia a paciência e chegava-nos a roupa ao pêlo. Era fiadeira e
tecedeira, que naquele tempo pelas nossas terras toda a gente cultivava linho, fiava
e tecia. Só na nossa casa havia três teares, e foi com ela que eu e as minhas
irmãs aprendemos tudo o que sabemos. Ela fazia primeiro e depois nós fazíamos
como ela.
Eu
andei na escola e ainda fiz até à 3ª. classe. Entrei com 7 anos e aos dez
estava pronta; nunca fiquei mal. Naquele tempo era uma sala cheia de cachopos e
cachopas, todos juntos. Tínhamos cá uma professora muito boa e que ensinava
muito bem. Era de Castelo Branco e ficou cá pra cima de 30 anos; ninguém teve
nunca nada a apontar-lhe. Batia pouco, que nós também lhe tínhamos muito
respeito, mas havia alguns que eram turrões e aí ela às vezes tinha que lhes
dar umas reguadas valentes. Eu não era mais que os outros, mas era humilde e
aprendia muito bem. Do que mais gostava era dos problemas, chamávamos-lhe nós
exercícios, e ainda hoje os faço como ela os ensinava, de cabeça.
E
também brincávamos e cantávamos muito. Na quaresma não, que não se podia
cantar, nem dançar, nem fazer rodas; mas jogávamos ao paspelho e fazíamos bolas
com retalhos de pano e jogávamos à parede. Os rapazes jogavam ao pião, à
bilharda, ou faziam alcatruzes com paus de salgueiro para ver quem acertava
mais longe. Divertia-se a gente como podia.
Quando
acabei a escola tive um grande desgosto porque o que eu queria era começar logo
como tecedeira. Mas éramos seis raparigas lá em casa, e como era às mais velhas
que pertencia estarem nos teares, e eu era das mais novas, tive que ir para
lavadeira e para o campo. Mas sempre que podia punha-me a olhar como é que elas
faziam e fui aprendendo só de ver.
Depois,
quando chegou o tempo da azeitona, fui logo para uma campanha do Vaz Preto. Era
uma casa muito grande, das maiores aqui à roda, sempre com muitos trabalhadores
todo o ano. Era tão rico e deu tudo em nada. Nesse tempo ganhava-se a sete e
quinhentos por dia, mas depois passaram a pagar ao quilo. Quanto mais se colhia
mais se ganhava. Ainda lá fiz 25 fragatas.
Quando
se acabava a azeitona íamos logo para os terços e para os quintos, ali para a
Idanha, e trabalhávamos tanto como um homem. Éramos umas quarenta, entre
raparigas novas e mulheres feitas. Era muito difícil porque de inverno era
muito frio e às vezes a chuva era tanta que não trazíamos um fio enxuto em cima
do corpo; e no verão era tanto o calor que até atabafávamos. Mas também nos
divertíamos muito e andávamos sempre a cantar, que até parece que o cantar
ajudava a gente. Já o meu avô dizia que «gente que canta não está com a preguiça
e seu mal espanta…»
E
era lá que a gente aprendia muitas das coisas da vida que as nossas mães não
nos ensinavam em casa. As mais novas aprendíamos com as mais velhas porque
dormíamos todas juntas e, quando era à noite, fazíamos de conta que estávamos a
dormir, e elas punham-se a falar dos namoros e doutras coisa, e nós a ouvir
tudo sem elas darem por isso.
Algumas
arranjavam por lá namoros, mas o mais das vezes não iam avante. Até cantávamos
assim:
Os amores da azeitona
São como os da
cotovia,
Acabada a azeitona,
Fica-te com Deus,
Maria.
Também
sucedeu algumas virem de lá de barriga; depois tinham que casar à pressa ou
eram apontadas por todos. É assim; o mundo sempre foi igual e há de continuar a
ser. As pessoas é que se esquecem…
Quando
era pelo Santiago era uma alegria, e mesmo quem andava por lá nunca faltava.
Era uma festa muito linda. Cada terra trazia o seu ranchinho com um homem a
tocar concertina, e as mulheres atrás, a cantar. Ia tudo a pé por esse caminho afora.
Quando lá chegávamos dávamos a volta à capela, sempre a cantar, a ver quem
ganhava. Os do Vale da Figueira ganhavam quase sempre porque vinham os do Açor,
que éramos quase todos de família, e ajudavam-nos no rancho. Depois da missa
vínhamos para casa e comia-se a carne e os doces que já tinham sido preparados
de véspera ou de manhã cedo; as famílias todas juntas. Era muito lindo!
O
pior era quando se lá armavam aquelas grandes bulhas, que era quase todos os
anos, e alguns vinham de lá com as cabeças partidas, todos a escorrer sangue.
Não é que os rapazes daquele tempo fossem piores que os de agora, mas dantes
parece que juntavam as teimas que havia pelo ano adiante e eram todas
distinguidas à pancada pelo Santiago. Rapaziada nova, com o sangue a ferver na
guelra…
Quando
as minhas irmãs mais velhas se casaram e abalaram para as casas delas, já eu
pude ter um tear só para mim. Tecia tudo: linho, algodão, orelos, e a bordar e
fiar, não havia quem me ganhasse. Trabalhávamos para as terras todas aqui à
roda. Às vezes íamos entregar o trabalho ao Casal da Serra ou ao Louriçal com
algumas vinte mantas à cabeça. Por isso é que eu tenho tanto mal nas minhas
costas. Outras vezes íamos de burro, com uma carga tão grande que mal se lhe
viam as patas. Ganhava-se bem, mas também nos saía do corpo. Havia alturas em
que o trabalho era tanto que estava todo o dia ao tear, e à noite enchia
canelas, sentada ao lume, para não perder tempo ao outro dia.
Era
muito trabalhoso, mas as horas mais felizes que eu tinha era quando me punha ao
tear. Nunca fui grande cantadeira, mas ao tear ninguém me calava. Até parecia
que as próprias cantigas me avultavam o trabalho.
Tecedeira briosa
Está no tear e não
tece,
Ou ela anda de amores
Ou o tear lhe
aborrece.
Namorei uma tecedeira
Pelo buraco do pano,
Ela, trac, trac,
trac,
Não me dava o
desengano.
Se o meu amor hoje
morresse
Que penas eram as
minhas,
Deitava-me a afogar
Para o caco das
galinhas.
Meninas da nossa
terra
São muitas, parecem
poucas,
São como as folhas da
rosa,
Encobrem-se umas às
outras.
Nunca
me casei. Não porque não tivesse tido quem me quisesse, mas não calhou. Às
vezes diziam-me que uma mulher sozinha não era ninguém, e que um homem sempre
era um amparo, mas nunca tive inclinação pr’aí. Também nunca me arrependi, que
os meus irmãos e os meus sobrinhos foram sempre meus amigos e estimaram-me
sempre muito. E eu também os ajudo, quando posso. Já se sabe, uma mão lava a
outra…
Tive
uma vida grande. Com muito trabalho, mas a fazer aquilo de que mais gostava. E
a minha maior pena, agora que já não posso, é a mocidade já não querer saber
destas coisa antigas para nada.
Nota:
A indústria da fiação e tecelagem foram, durante muito tempo, uma das mais
importantes desta região. De acordo com a pesquisa do José Teodoro, apresentada
no livro «O Concelho de S. Vicente da Beira nos finais do Antigo Regime», em
1790 havia 177 cardadores e fiadeiras em S. Vicente, só por conta das fábricas
da Covilhã. Haveria muitas mais a trabalharem por conta própria, para consumo
familiar.
Numa
consulta aos Registos Paroquiais do início do século XX, verifiquei que a maior
parte das mães e madrinhas das crianças batizadas tinham a profissão de
fiadeira/tecedeira. Não eram referidas as profissões das avós, pelo que não
estaremos muito enganados se dissermos que não haveria muitas casas em que não
existisse pelo menos uma roca e um tear.
Outros
tempos e outras vidas, que nos ajudam a compreender o valor das coisas, e a
perceber porque é que se deixava em testamento uma camisa ou um lençol, às
vezes já usados.
M. L. Ferreira