terça-feira, 18 de outubro de 2022

Biblioteca Dr. Hipólito Raposo

 Abertura ao público

Embora a Biblioteca ainda não esteja organizada de acordo com as regras devidas (é um trabalho que leva muito tempo), pensamos que já tem condições que permitem a sua reabertura e utilização por todos os que gostem de livros ou que começam agora a descobri-los.

Esperamos que sejam muitos! 

De acordo com as necessidades, esta informação (horário de funcionamento) pode ser reajustada. 


 
M. L. Ferreira

Fotografias da Conceição Luzio

domingo, 16 de outubro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

     José da Cruz

José da Cruz nasceu no Casal da Serra, a 14 de outubro de 1892. Era filho de Bernardo Cruz, cultivador, e Maria Joaquina.

Assentou praça no dia 12 de julho de 1912, como recrutado, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21, em Castelo Branco, no dia 15 de maio de 1913. Na altura era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro. Foi vacinado.

Ficou pronto da instrução da recruta em 28 de agosto e foi licenciado, regressando ao Casal da Serra. Apresentou-se novamente em 5 de maio de 1916 e foi mobilizado para fazer parte do CEP. Embarcou para França no dia 18 de janeiro de 1917, integrado na 6ª Companhia do 2º Batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, com o posto de soldado com o número 132 e a placa de identidade n.º 9157.


Do seu boletim individual consta apenas o seguinte:

a)   Baixa ao hospital, em 17 de setembro de 1917; evacuado para o Hospital de Sangue n.º 1, em 19, e alta a 28 do mesmo mês;

b)   Baixa ao Hospital de Sangue n.º 1, em 28 de fevereiro (1918?), e evacuado para o Hospital Canadiano, em 3 de março; alta para o Depósito Misto, a 6 do mesmo mês;

c)    Regressou a Portugal, em 28 de fevereiro de 1919.

Após o regresso a Portugal, continuou a residir no Casal da Serra.

Passou ao Regimento de Infantaria de Reserva 21, em 31 de dezembro de 1922, à reserva ativa, em abril de 1928, e à reserva territorial, em 31 de dezembro de 1933.

Família:

José da Cruz casou com Rosária da Conceição, no dia 26 de novembro de 1919, e tiveram 5 filhos:

1.    Maria do Rosário, que casou com Filipe Lourenço e tiveram 2 filhos;

2.    Lourenço, que morreu com dois anos;

3.    Lourenço Bernardo, que casou com Rosalina Bernardo e tiveram 3 filhos;

4.    Rosalina da Conceição, que casou com António Agostinho Simões e tiveram 4 filhos;

5.    Maria de Jesus Bernardo, que casou com Manuel Basílio e tiveram 6 filhos.      

«O meu pai falava pouco do tempo em que andou na Guerra; era a minha mãe que às vezes nos falava das coisas que ele lhe contou durante o namoro. Dizia que tinha passado por lá muita fome; que muitos dias a única coisa que tinha para comer era uma fatia de pão que metia no bolso de manhã e tinha que durar para o dia todo; às vezes ia à procura das migalhinhas que ficavam no fundo e só de lá tirava piolhos.

Diz que às vezes, durante a noite ou nos dias em que não havia combates, iam pelos campos à procura de alguma coisa com que pudessem matar a fome. Por causa disso, ele e mais uns poucos ainda estiveram para ser castigados porque foram para longe à procura de comida e foi um francês que os avisou que o batalhão já estava em retirada; se não tivessem ido depressa, ainda tinham sido presos.

Também falava do medo que tinha de morrer e da tristeza que sentia quando, no fim dos combates, tinham que abrir as valas para enterrar os que tinham morrido. Diz que havia alguns companheiros que ainda tinham coragem de tirar os relógios ou alguma coisa de valor aos que morriam, antes de os meterem nas valas. Ele nunca foi capaz de tirar nada, até porque nunca acreditou que conseguisse sair daquela guerra com vida, por isso não ia precisar daquilo para nada. Quando voltou, só trazia com ele uma talega e um cantil. Diz que, num dia em que houve lá um grande bombardeamento, foi aquela talega cheia de terra que aparou as balas que vinham na direção da cabeça dele e o salvou. Guardou-a durante o resto da vida. O cantil usava-o muitas vezes para beber água e era por ele que eu também gostava de beber.

Graças a Deus voltou à terra são e salvo e sem grandes problemas de cabeça, mas trazia um mal nos olhos que fazia com que visse mal e andasse sempre a chorar. Diz que foi por causa dos gases que os alemães por lá deitavam.

Trabalhou sempre no campo, à jorna e a tratar da parte das terras que lhe couberam por morte do pai. Teve uma vida cheia de trabalho. Não havia os mimos nem dinheiro como há hoje, mas não nos faltava o pão na mesa e, no tempo dela, também não nos faltava a sardinha.

Nunca recebeu nenhuma pensão por ter andado na Guerra, porque nunca teve ninguém que lhe desse a mão, como houve alguns.» (Testemunho da filha Maria do Rosário).        

José da Cruz faleceu no Casal da Serra, a 13 de setembro de 1968. Tinha quase 76 anos.

 

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Maria do Rosário)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Caetano Amoroso

José Caetano Amoroso nasceu no Louriçal do Campo, a 24 de fevereiro de 1892. Era filho de Manuel Caetano, jornaleiro, natural do Casal da Serra e Maria José, natural do Louriçal do Campo (o apelido Amoroso veio-lhe da parte da avó paterna, que se chamava Maria Amorosa).

Como quase toda a gente naquele tempo, começou a trabalhar ainda em criança, primeiro acompanhando o pai nos trabalhos agrícolas e a guardar cabras e depois como criado, no Colégio de São Fiel, onde se ocupava dos animais e da horta.

Assentou praça em Castelo Branco, como recrutado e, após ter concluído a instrução da recruta, foi licenciado e regressou ao Casal da Serra. Voltou a ser mobilizado em 1916, para fazer parte do CEP, e, de acordo com o seu boletim individual e folha de matrícula, embarcou para França, no dia 20 de Janeiro de 1917. Tinha o posto de soldado n.º 209 e placa de identificação n.º 6709. Integrava a formação da Ambulância n.º 1. Terá depois seguido para a formação da Ambulância n.º 2 e posteriormente colocado no depósito de roupa.

Em dezembro de 1917, foi-lhe concedida uma licença de 30 dias para gozar em Portugal. Após o gozo dessa licença, já não terá regressado a França. Foi abatido ao efectivo da Ambulância n.º 2, em 29 de Julho de 1918.

Família:

Após ter regressado de França, José Caetano voltou ao Casal da Serra, onde residia a esposa, Maria Rita de Jesus, com quem tinha casado, no dia 27 de Novembro de 1915, ainda antes de ter sido mobilizado para a guerra. Foi aí que lhes nasceram e criaram os filhos que tiveram:

1.    Manuel Amoroso, que casou com Maria da Anunciação e tiveram 1 filha;

2.    Maria de Lurdes, que casou com Simão Jacinto e tiveram 5 filhos;

3.    Leonor Amoroso, que casou com António Soares e tiveram 2 filhos;

4.    Maria da Anunciação, que morreu solteira e sem descendência;

5.    António Amoroso que casou com Isaura Patrocínio e tiveram 2 filhas;

6.    Joaquim Amoroso, que casou com Fernanda Amoroso e tiveram 1 filho.

José Caetano toda a vida trabalhou na agricultura e na pecuária, ocupando-se das terras que herdou do pai e de outras que foi adquirindo.

Foi sempre um homem bem-disposto, conversador e honesto. Por isso era muito considerado por todos os conterrâneos. Diz o filho Joaquim que, quando morreu, o padre lhe fez um elogio como poucas vezes se tinha ouvido na terra.

Faleceu em março de 1984. Tinha 92 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração do filho Joaquim Amoroso e da nora Fernanda Amoroso)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

A Menina Zezita

 Marcou a infância de muitos de nós. Na transição entre a casa e a escola, foi quase mãe, quase professora, algumas vezes enfermeira e psicóloga. Para mim, uma amiga até hoje.

Não acontece muitas vezes, que a vida tem as suas voltas, mas quando nos encontramos ficamos que tempos esquecidas numa conversa dobada à volta de tudo, e acaba, quase sempre, a lembrar os anos felizes de antigamente:

«Tive muitos desgostos na vida, mas considero-me uma mulher de sorte pela profissão que tive, que me deu tantas alegrias.

Comecei a trabalhar aos vinte anos, ainda a escola era na Praça, e era só o Professor Couto e a mulher, a Dona Emília. Ele era muito boa pessoa, calmo, respeitador, mas quem o quisesse ver contente era a tocar violino. Nos dias em que resolvia pôr-se a tocar, aquela sala era uma alegria. Até eu ficava a escutar atrás da porta. Os alunos pelavam-se por o ouvir; até os mais desassossegados. O pior é que alguns aprendiam mal as outras coisas e quando iam ao quadro não acertavam nas contas nem nas tabuadas, e os ditados era uma miséria: quase tantos erros como as letras. Mas ele não lhes batia, que não tinha feitio para isso: chamava-me e mandava-me levá-los à sala da mulher. Ela já sabia ao que iam e pegava logo na régua. Não tinha dó nem piedade e até me fazia doer o coração ver aquelas mãos todas encarnadas e, quantas vezes, as lágrimas a escorrer-lhes pela cara abaixo.

Depois veio aquela lei de obrigar os pais a pagar uma multa se não mandassem os filhos para a escola, e tiveram que mandar mais professores (naquele tempo eram quase só mulheres) e abriram-se mais salas. Eram quatro, todas cheias; só da Vila e dos casalitos aqui à volta eram à roda de cem alunos, da primeira à quarta classe.  

Alguns faltavam muito, ou porque não gostavam da escola e antes queriam ir aos ninhos e a nadar, ou porque os pais precisavam deles (as raparigas era quase sempre para tomarem conta dos irmãos mais novos e os rapazes para ajudarem nos trabalhos do campo). Ás vezes também era por desleixo, mas quando faltavam dois ou três dias seguidos as professoras mandavam-me logo ir a ver deles. Subi muitas vezes as ruas do Cimo de Vila e cheguei a ir ao Casal da Fraga a buscar alguns. Esses, assim que me viam, nem era preciso dizer nada: pegavam na bolsa e punham-se à carreira à minha frente, muitas vezes descalços. Só me lembro de um que uma vez estava com uma perrice tão grande que me deitou as mãos à bata e deixou-ma sem um botão. Às vezes eram as próprias mães que me iam chamar, porque os filhos não queriam sair da cama para ir para a escola. Era quase sempre porque não tinham feito os deveres e estavam com medo da professora. Naquele tempo as condições não eram como agora; muitas crianças não tinham ninguém que puxasse por elas nem luz para estudar. Algumas, nem roupa lavada para vestir…

Nos intervalos deixava o café ou o chazinho já feito para as professoras e ia para o recreio a guardá-los. Às vezes deixava-me ficar só no balcão, a olhar, e deixava-os brincar à vontade. Elas faziam rodas, saltavam à corda, jogavam ao lenço e à linda falua; dava gosto ver. Os rapazes era mais jogar à bola ou ao berlinde, ao botão e ao pião. Corria quase sempre tudo bem, mas se algum fazia batota ou tinha mau perder, zangavam-se e armavam cada bulha que era o fim do mundo. Quando o recreio acabava, se as professoras perguntassem alguma coisa, Deus me livrasse de fazer queixa fosse de quem fosse; só se não pudesse esconder. Elas bem sabiam que eu às vezes não contava a verdade toda, mas tinham confiança em mim.

Durante os primeiros anos de trabalho ainda era solteira, e mesmo depois de casada estive mais de dez anos sem ter filhos; quando veio o meu Fernando já nem esperava. Se calhar por isso considerava aquelas crianças da escola quase como se fossem também meus filhos e gostava de as ver bem tratadas. Também não tenho nada a dizer de nenhum deles, e de algum mais maroto, quando nos encontramos, ainda hoje nos rimos das malandrices que faziam. Deve ser por isso que muitos me convidavam para madrinha quando faziam o Crisma; alguns que até já nem andavam na escola. O ordenado era pequeno, e às vezes mal chegava para comprar uma lembrança a cada um, mas eu gostava de lhes oferecer sempre uma prendinha, normalmente uma blusa às raparigas e uma camisa aos rapazes.

Naqueles anos todos que trabalhei na escola passaram por lá centenas e centenas de alunos. Alguns ficaram por cá, mas muitos foram viver para longe, em Lisboa ou no estrangeiro, e vejo-os pouco. Às vezes já nem os conheço, mas eles lembram-se bem de mim, e quando me veem falam-me sempre. Se calha a irem com alguém, algum filho, neto ou até já bisnetos, voltam-se para eles e dizem logo: “Esta é a Menina Zezita da minha escola!” É a melhor paga que podia ter...»

M. L. Ferreira

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Gente nossa

 O Coluna e o seu filho Pedro

Na sexta-feira saí da escola acompanhado pelo meu novo colega de Geografia. Desejei-lhe bom fim de semana e perguntei-lhe se o passava em Castelo Branco. Respondeu-me que vivia agora em Castelo Branco, mas que era do Sobral do Campo e vivera toda a vida na Margem Sul. Eu disse-lhe que era de São Vicente e ele contou-me que o seu pai também era de lá.

Chama-se Pedro, é neto de um João Matias que vivia junto ao posto da GNR e o seu pai era o Coluna. Casou no Sobral e faleceu novo, com 46 anos. Eles reconstruíram a casa do Sobral, para onde ele ia logo que acabasse de almoçar.

Tenho algumas imagens do Coluna, que via no grupo dos rapazes mais velhos, mas não tenho memórias para escrever mais sobre ele. Peço a um dos seus amigos, o Zé Barroso, que complete este texto.

José Teodoro Prata


O José Joaquim Roque Henriques era filho do tio João Matias Henriques (?), conhecido por João Matrino, a quem acho que também chamavam "Chamiço". Não me recordo, de momento, do nome da mulher deste, mas com certeza que era Maria!  

 Não faço a mais pequena ideia de onde vem o epíteto "Matrino"! Como já em tempos aqui escevi, São Vicente da Beira tinha uma alta imaginação de apor alcunhas não só a todo o nativo, mas também a todo o estranho que com a comunidade entrasse em conctacto. Sem dúvida, uma forma eficaz de individualizar pessoas e identificá-las facilmente, assim contrariando o velho ditado "Há muitas Marias na terra". E muitos Manéis também.

Uma imaginação tanto maior quanto, grande parte das vezes, a alcunha requeria uma certa abstração como esta de "Matrino". Noutros casos, ficava-se por um nome muito mais concreto, como, justamente, no caso do "Coluna". Era exatamente por esta que o José Joaquim era conhecido.

Esta alcunha ficou a dever-se ao facto de o rapaz jogar muito bem futebol. Tão bem que o compararam ao Mário Coluna, um atleta, sobejamente conhecido, que militou no Sport Lisboa e Benfica por muitos anos.

Não se ficam por aqui as singularidades desta família. Tanto no que respeita à comparação com jogadores de futebol famosos como no que toca aos nomes dos seus membros.

Quanto à primeira, o José Joaquim tinha um irmão, de sua graça Alexandrino que, pela razão já acima explicitada, foi alcunhado de "Travassos", um outro futebolista, desta vez do Sporting Clube de Portugal, que foi, como é sabido, um dos grandes craques deste clube nas década de 50 e 60 do século passado.    

Relativamente à segunda curiosidade, não deixa de ser um tanto desconcertante que o tio João Matias e a mulher tenham posto o nome de José a dois dos seus filhos. O José Joaquim Roque Henriques, o nosso Coluna, quando nasceu, em 1953 (ele era o filho mais novo), já tinha quatro irmãos, o mais velho dos quais com o mesmo nome próprio de José e de seu nome completo (creio), José Matias Henriques.

Ora, o facto de o tio João Matias e a tia Maria terem posto, não se sabe se imprevidentemente, o mesmo nome próprio a dois filhos, deve ter criado dificuldades lá em casa quando fosse necessário chamá-los! A solução foi tratarem o mais velho por José (ou Zé), como já vinham fazendo; o mais novo nunca, que eu saiba, trataram pelo segundo nome, Joaquim, mas, sempre e, simplesmente, pelo diminutivo Quim. Todavia, os problemas não acabavam aqui porque eles tinham uma filha chamada Joaquina a quem chamavam "Jaquina"! Com tanto nome disponível para pôr aos filhos, parece que a confusão seria escusada, mas foi assim!

Sei de tudo isto porque eles foram meus vizinhos no Cimo de Vila antes de irem morar para lá do antigo Posto da GNR, à saída da Vila para o Casal da Fraga. Desenrascados eram eles porque, tendo, aparentemente, criado um problema com os nomes dos filhos, trataram logo de arranjar uma solução! Pelo menos para o caso dos dois "Josés"!

Aparte as curiosidades concretas desta família, como concretas e curiosas eram muitas coisas, não narradas, das famílias da Vila, o Coluna foi um rapaz do meu tempo. Se fosse vivo andaria pelos 69 anos. Muitas vezes convivi com ele em tertúlias de malta nas ruas, na Praça, na Fonte Velha e, sobretudo, nos cafés de S. Vicente da Beira, quando ainda a povoação fervilhava de gente e não estava generalizada a televisão nas casas particulares. Por isso, iam todos para o café e ninguém ficava em casa! Era assim, sobretudo nos domingos e em todos os dias em que havia festas!

Quando éramos crianças ou muito jovens, eu e o Coluna fomos, muitas vezes, juntamente com outros (vizinhos ou vizinhas), com uma cesta, às soagens, uma erva brava dita boraginácea, espontânea, que os porcos comiam muito bem! Ou aos míscaros, no tempo deles, ou à lenha, ou apanhar a azeitona que caía nos caminhos públicos para meter em água e juntar à nossa, para o azeite grosso! Algumas vezes, jogámos futebol no Sport Clube de S. Vicente da Beira. Mas, já adultos, também trabalhámos juntos, integrados em camaradas, na colheita da azeitona, durante algumas safras, enquanto não encarreirámos melhor a vida. Fui ao casamento dele ao Sobral do Campo. A vida de cada um mudou entretanto, mas nunca deixámos de confraternizar quando nos encontrávamos na Vila.

O casal João Matias e mulher tiveram cinco filhos: o José, o António, o Alexandrino, a Joaquina e o José Joaquim. São ainda vivos o Alexandrino e a Joaquina.

O Coluna era um indivíduo de estatura quase normal, um português mediano; e também moreno e rijo como o granito, como diria o poeta. Inteligente, cheio de humor e presença de espírito! Atesto-o, não por conveniência de uma qualquer homenagem póstuma, mas porque é absolutamente verdade! Dominava muito bem a lexicologia local e regional, um certo falar e dizer, que lhe permitia proferir frases, por vezes quase só entendidas pelos membros da tertúlia, com as quais desbloqueava as conversas, pondo toda a gente bem disposta! Contava partes que conhecia, que se tinham passado com o tio Zé Nicho, com o tio Aires da Tonha e outros, às quais imprimia o seu cunho humorístico próprio!     

Creio que era esta sua faceta de jogar com as palavras que o levava, muitas vezes, a tratar-me por "Jostéfano", uma combinação entre "José" e "Di Stefano", um famoso jogador do Real Madrid. Não que eu alguma tivesse jogado futebol para ser comprado com esse jogador! Era apenas uma brincadeira! Mas bastava isso para a conversa ser logo mais bem disposta.

Um dia, quando me casei, fui dar uma volta pela Grande Lisboa, Azeitão, Setúbal, onde tinha (e tenho) família. Decidi então ir, com a minha mulher da altura, pela Moita do Ribatejo, visitá-lo, porque sabia que ele prestava serviço no Posto da GNR local.

Quem diria que o Coluna tinha ido para a GNR! Nós, ele incluído, de um certo ponto de vista, sempre detestámos a GNR de S. Vicente da Beira. Eram os guardas que constituíam o maior obstáculo à natural irreverência da nossa juventude: tentavam impedir o jogo da bola na Praça; ralhavam-nos quando fazíamos barulho a altas horas da noite na via pública; proibiam o roubo da fruta (a marouva), à noite, nas hortas da vizinhança; não admitiam o lançamento das bombas dos foguetes nas ruas, Praça e Fonte Velha... A juventude na Vila não conhecia regras, dentro, claro está, da sua própria inocência e simplicidade! Por isso, nunca imaginei que ele pudesse ir para a GNR e que viesse a encarnar a mesma autoridade que tinha imposto as regras à nossa juventude! Para mim, cometeu uma espécie de "traição"! De certo modo isso desiludiu-me, embora a GNR, com o "25 de abril de '74", tenha assumido uma postura muito diferente da anterior à revolução. Ele trabalhou sempre no duro e, como qualquer outro, também quis melhorar a vida! A GNR foi uma oportunidade que aproveitou para fugir ao campo e à fábrica da Argibloco! Mas ainda hoje penso que o fez por uma compreensível conveniência!

No Posto da GNR da Moita do Ribatejo, apareceu-me como nunca o imaginara, todo formal, metido numa farda! Apesar de saber que, muito provavelmente, o iria encontrar vestido dessa forma, mesmo assim, estranhei! Nunca tínhamos sido de formalidades em todo o nosso passado anterior, nem podíamos sê-lo, numa pequena vila do interior, como S. Vicente da Beira! Aquela não era, seguramente, a nossa praia! Por isso, fomos a casa dele, deixámos a etiqueta e, enquanto as mulheres tinham uma pequena conversa, nós fomos molhando o bico com um bom uísque, enquanto discorríamos vivamente sobre a vida e as voltas que ela dá!

Convivemos por muitos anos, é verdade. Mas, ainda assim, não tantos como pretenderíamos e a vida, afinal, nos podia ter proporcionado! Morrer aos 46 anos é muito cedo! Mas o destino assim o estipulou!

Amigo Coluna: um dia a gente vê-se por aí, em qualquer lugar!

José Barroso     

domingo, 25 de setembro de 2022

Santa Pulquéria

 “Olha lá cachopos, se vandes pra Lisboa e virendes por lá a minha ‘sabel, dai-lhe recomendações nossas!”

“Nossas” era como quem diz, da tia Pulquéria e do irmão da Isabel, ambos moradores numa casa que já foi abaixo, pedra em cima de pedra, com um balcão que dava para a estrada, no que eu sempre acreditei ser o lugar mais soalheiro do nosso Casal da Fraga.

Já grandes e com a arrogância que o cosmopolitismo aparentemente confere, sorríamos e acenávamos que sim, incapazes de compreender tanta simplicidade – é mesmo desarmante, a simplicidade, não é?

A mesma inocência com que, depois das pregações da Semana Santa, quando, regressados da igreja, descíamos a barreira de São Francisco, a tia Pulquéria repetia partes inteiras do sermão, exaltando a beleza de um gesto bíblico ou o sentido de uma parábola, que ela retivera e a nós, adolescentes de fresco, soava a prosa infantil. “Não é tão lindo, cachopos?”, ouvíamos ela dizer. Nesses dias, por causa das exéquias, ela calçava uma espécie de sapatos de pano – pretos, com uma presilha que abotoava de lado.

Nunca, que eu saiba, houve pessoa mais pura neste mundo.

Incapazes de perceber, pequenos e grandes, à uma, fazíamos pouco dela: do porco foçador, já com oito ou nove anos, que por vontade da dona nunca iria à faca; ou da pressa com que se mexia – ela não andava, corria, porquê? se não se lhe conhecia sombra de compromissos ou obrigações; ou do xaile ou pano preto com que sempre se cobria, já em muito mau estado; ou da horta e da criação que não tinha. E do afilhado, já homem e de bom físico, que a madrinha não deixava trabalhar, ao dia, porque se cansava, ou da limpeza por fazer, tanto da casa, como do corpo de passarinho; ou, ainda, de ela ter uma interpretação literal das parábolas da Bíblia ouvidas na igreja, e de, na sua ideia, Lisboa ser apenas um pouco maior do que São Vicente.  Sem semear, nem colher, interrogava-se o senso comum, que éramos nós todos, de que é que viviam aqueles dois pobres de Cristo – por que milagre, sem um vintém a entrar-lhes em casa?

Pobre de espírito ouvi chamar mais de uma vez à tia Pulquéria, uma senhora que, nós já adultos, ainda nos chamava “meninos”, para quem a pobreza era como se não fosse – antes, uma condição natural vivida com amorosa ingenuidade.

Em boa verdade, tal transcendência, para mim, foi durante muito tempo um caso de santidade. Hoje, mais incomodado com o conforto das certezas do que com o desconforto da dúvida, não vou tanto por aí. Ainda assim, guardo dela uma memória feliz, e isso para mim é mais importante que as questões da santidade.

Sebastião Baldaque

SET. 2022

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Caetano

José Caetano nasceu no dia 29 de janeiro de 1894. Era filho de Joaquim Caetano e Maria Joana, carvoeiros. De acordo com o registo de batismo, os pais viveriam na Paradanta na altura do seu nascimento, mas, a ser assim, terá sido durante pouco tempo, porque eram naturais do Casal da Serra e foi lá que José Caetano se criou.

Assentou praça em Castelo Branco, no dia 9 de junho de 1914, e foi incorporado no Regimento de Artilharia de Montanha, como Atirador de 3.ª Classe. Na altura era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro. Terminou a recruta em 24 de maio de 1915 e passou ao quadro permanente, em virtude de sorteio.

Foi destacado para Moçambique, integrando a 2.ª Expedição enviada para aquela província ultramarina. Embarcou no dia 7 de outubro de 1915 a bordo do paquete Moçambique, um dos maiores navios portugueses da altura. Durante o período em que esteve em Moçambique, registaram-se muitas baixas, sobretudo por efeito das doenças que atingiram os militares portugueses, mas às quais José Caetano conseguiu sobreviver. Regressou à Metrópole, em 28 de setembro de 1916, após cerca de um ano em África. Desembarcou em Lisboa no dia 5 de novembro.

Passou ao 2.º escalão do Exército e ao 7.º Grupo de Baterias de Reserva, em dezembro de 1924, e ao depósito de Licenciados do Regimento de Artilharia de Montanha, em Outubro de 1926. Em 31 de dezembro de 1935, passou à reserva territorial, por ter atingido o limite de idade.

Condecorações:

  • Medalha comemorativa das operações militares na Província de Moçambique;
  • Medalha da Vitória.

Família:

José Caetano casou com Maria do Nascimento, no Posto do Registo Civil de São Vicente da Beira, a 30 de novembro de 1921. Tiveram 5 filhos, um dos quais faleceu com dois anos de idade. Criaram:

1.    Manuel Caetano que casou com Maria Rosa Barroca;

2.    Maria da Purificação Batista que faleceu ainda jovem;

3.    João Batista da Ressurreição que casou com Ana da Conceição Candeias;

4.    António Batista que casou com Maria do Nascimento Candeias.

José Caetano viveu sempre no Casal da Serra e trabalhou a vida inteira na agricultura, nas terras que herdou e foi comprando. Sobre esse tempo, lembra o filho João Batista:

«Tivemos sempre uma vida boa e uma casa farta, mas de muito trabalho, tanto para o meu pai e para a minha mãe, como para filhos. Trabalhávamos todos para o mesmo e criávamos de tudo para casa e até para vender. Uma vez ainda me desafiaram para ir trabalhar para as minas, que era onde trabalhavam muitos rapazes da minha idade, mas o meu pai disse logo que não me deixava abalar, que depois tinha que andar a pagar ordenados aos estranhos, e mais valia pagar-me a mim. Ele era assim, muito boa pessoa, mas quando dizia uma coisa tinha que se fazer. Acabei por não ir e, se calhar, hoje até lhe dou razão.

Também tivemos sempre uma boa cabrada, com um ou dois pastores, e a minha mãe fazia todos os dias uns poucos de queijos, para casa e para vender. Eram tão afamados que até vinha gente de fora à procura deles, principalmente o pessoal que, naquele tempo, andava por cá a trabalhar nas águas.»

José Caetano enviuvou em março de 1970, após quase 50 anos de casamento. Faleceu pouco tempo depois, em 18 de agosto de 1971. Tinha 77 anos de idade.

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra