domingo, 7 de outubro de 2018

Ontem, hoje e amanhã!


            Olhando as ruas desertas e rememorando outros tempos…

No cimo de vila, o murmúrio do mundo já se fazia sentir. O Joaquim Moleiro tinha vindo cedo da Torre, aldeia ali dos lados do nascente onde, pelo tempo quente, se ouvia cantar o cuco e a poupa.  
Ah! homem excomungado para madrugar! Mas o caminho era longo! Quando chegava, com a burra ajoujada pelo peso, preparava-se para descarregar as taleigas da farinha na loja que o João Macedo trazia arrendada à Celeste Barata. De comum acordo, dispensavam-lhe um canto desse espaço para acomodar a azêmola.
Mandava-a parar à porta:  
— Xóóóó! Aííí!
As moscas e os moscardos começavam, àquela hora, o seu massacre. Era ainda de manhã, mas as ferroadas, essas, eram de meia-noite, na pele e, sobretudo, nas feridas do animal, que, por isso, não parava quieto! O dono bem lhe punha creolina nas chagas, que queimava e fedia como a peste! Mas desinfetava! Procurava, com essa operação, de uma assentada, afastar os insetos e tratar da saúde da jerica!
“O que arde cura.”, diziam os antigos! Mas, enquanto as úlceras não saravam, o bicho sofria a bom sofrer!
Depois de desembaraçada do carrego, só com o cabresto e a rédea, a Boneca — assim se chamava a burra — ia para a manjedoura roer uns caneirões de milho. Enquanto, o dono, tirava do bolso do casaco uma fatia de broa com um bocadinho de queijo que trazia embrulhada num pano e comia-a. Bebia-lhe, por cima, uma garrafinha de tinto!
Tudo, como recompensa da caminhada de cerca de uma légua que, nessa manhã, ambos — homem e jumenta — já acumulavam nas pernas!
Por isso, o Joaquim estava desejoso de lhe aliviar a carga, mas ela, estar queda, é que não havia meio.
— Alto aí, Boneca! Aííí!
Qual Boneca, qual carapuça? Não sossegava!
— Está quieta! Ai a alma do diabo! — berrava-lhe ao ouvido. — Levas com um negalho nos cornos…! Raios parta a burra e mais às moscas…! Vá lá ver!
Os homens tinham saído cedo para o trabalho. Muitas mulheres, àquela hora, estavam em casa a tratar da vida, a cuidar dos filhos pequenos e a ocupar-se dos animais de capoeira. Assomavam com as cabeças às janelas. E a garotada interrompia a brincadeira nas ruas próximas para assistir à cena, que era habitual. Mas que acabava por despertar curiosidade por ser, quase sempre, o primeiro acontecimento estranho à vizinhança que vinha ali quebrar o rebuliço.
À voz do dono, a asna quedava-se por instantes com medo de levar com a verdasca urdida de duas boas vergônteas de trovisco…! Mas logo voltava a abanar as orelhas e a sacudir-se, descoroçoada! Só depois de entrar na loja, livre da carga e da albarda, é que podia enxotar, à vontade, as moscas que vergastava com a cauda comprida.
E, para melhor digerir os caneirões fazia o que via fazer ao dono… mas com água: ia à pia da loja e bebia-lhe em cima uma barrigada! Porque a sede também era de quilómetros…
Pouco depois da descarga… 
— Eh! ti’ Laurentina — gritava o Joaquim Moleiro para a freguesa que morava, logo ali, duas portas acima — trago aqui um alqueire de farinha de milho para si!
— Já não era sem tempo! Há mais de oito dias que levou o grão, ó senhor Joaquim! — protestava a Laurentina.
Tratava-o por “senhor”, apesar de o bom do homem andar por ali a passar à sua porta, havia muitos e muitos anos! Deixá-lo! Entendia que, por cortesia, devia mais respeito aos estranhos. Quanto menos confiança, mais delicadeza. Não fossem lá dizer para as outras terras que a gente da vila era mal educada!
Ele, mal ouvira as queixas da freguesa! Já lá ia desarvorado, pelas ruas fora, equilibrando, em cada ombro, um saco de meio alqueire de farinha e outros dois nos arcos dos braços. Com o fato todo branco, fazia a volta a chamar as clientes, a bater-lhes à porta, para entregar as taleigas! Mas sempre foi retorquindo à reclamante, até dobrar a esquina:
— Pois é, ti’ Laurentina! Mas, com a entrada do bom tempo, chove cada vez menos e a azenha mói cada vez mais … devagar…! Começa a escassear a água no ribeiro da Torre…! — justificava.

Entrementes, por mor dos pregões que se ouviam, percebia-se que vinha a subir a rua da Costa a Palmira Sardinheira com uma caixa de peixe à cabeça. Para além da horta, era este o seu negócio! Arrematava as caixas na praça, junto da camioneta de Riachos, lá dos lados de Torres Novas, que vinha à vila duas ou três vezes por semana a trazer pescado fresco.
A rua da Costa, ao cimo, desembocava no largo da Cruz de Pedra. Local onde existia uma grande cruz de granito encostada à parede do ti’ Francisco Candeias. Em tempos, terá sido partida, mas fizeram outra que ainda hoje lá está! Ali confluíam mais três ruas.
Ora, este largo era onde se encontrava a loja em que estacionava o Joaquim Moleiro que, como já se sabe, andava, numa dobadoira, a entregar as taleigas da farinha. De caminho, recolhia logo o grão para fazer carga para a próxima moedura do seu engenho da Torre.     
Mas se já ali tinha havido vozearia naquele dia, logo de manhã, com a vinda do Moleiro, maior seria a algazarra com a chegada da Palmira que atroava os ares com a sua voz estridente, publicitando o peixe às potenciais interessadas:   
— Fresca e boa! — dizia ela, referindo-se à sardinha, o peixe que habitualmente vendia! É verdade que trazia outros peixes para outros gostos. Só que estes podiam variar, enquanto a sardinha é que não podia faltar! Assim os de Riachos a trouxessem! Por isso, usava sempre o mesmo pregão:
— Fresca e boa! — que repetia, alto e bom som, a espaço e a compasso.
— Ó cachopas vinde ver! Vinde ver! — anunciava em grandes brados para as donas de casa que estavam à escuta, muitas delas à espera do peixe para o jantar! — Mais barato não encontrais! Podeis correr a vila toda, raios! — asseverava, a plenos pulmões!
As mulheres, quando isto ouviam, levantavam as cabeças de esfulinhar ou deixavam de arrumar as casas e vinham às janelas e varandas. Olhos ávidos a cobiçar a frescura da mercadoria que ainda naquela madrugada fora pescada nas costas de Peniche!
Palmira era casada com o Zé Tono. “Tono” era alcunha. Devia haver uma razão. Na vila, arranjava-se sempre um motivo para epitetar um cidadão! Ele tinha a incumbência de fazer o correio, todos os dias, de carroça, entre a vila e o apeadeiro de Castelo Novo. Também era poeta e trazia sempre no bolso uns papéis com versos. Quando os dava a ler a um miúdo da escola, que sempre tinha melhor vista que ele, recebia palmas da roda!
Ela expansiva, ele muito metido no cortiço. Viviam nas últimas habitações, no alto do povoado. De maneira que a Palmira, a vender peixe a estas freguesas do cimo de vila, era como se estivesse em casa! Também podia vender lá para o fundo de vila. Mas, aí, havia outras peixeiras, como a mulher do ti’ Adelino Pinura…
Já o Albertino Maiaca ou o João Matrino, que, por vezes, andavam no negócio e moravam da praça para cima, preferiam ir para a Charneca ou para o Casal da Serra, vender. De modo que, cada peixeiro, tinha o seu mercado natural…     
— Ó Palmira o que é que lá trazes hoje?! — indagavam as mulheres que, entretanto, se foram acercando.
— Sardinha, carapau e uns cachuchos muito lindos!
E murmurava, depois, à boca pequena, para o círculo das que tinham já chegado perto da caixa do peixe, como se não quisesse ser ouvida:
— Às vezes trago pescada. É um peixe muito bom! Até dá para doentes! É aí para certas casas… Sabeis…?! Acham-na sempre cara…!
E a conversa continuava.    

Na vila não havia água canalizada. Muitos iam passando, de caminho para a fonte, pelo largo da Cruz de Pedra, onde o grupo de mulheres estava na conversa. E, já agora, diga-se o que atrás ficou por dizer: também havia neste largo o grande balcão da ti’ Maria Madalena, todo contruído, igualmente, em granito.
Nas escadas desse balcão punha, muitas vezes, o Joaquim Moleiro as taleigas do grão, quando armava a carga da burra e estava prestes a abalar de volta para a Torre. E quem vinha carregado da fonte, também ali pousava os cântaros de água, para aliviar os braços, após a subida da rua da Costa! Entretanto, fizeram-se ali mudanças urbanas e o balcão foi removido, deixando-se em seu lugar um arremedo de obra de arte que em nada dignifica o local. 
Mas alguns dos que passavam acabavam por parar no ajuntamento das vizinhas, a tagarelar um pouco.
— Bons dias nos dê Deus!
— Bom dia, ó ti’ Álvaro. Já vai à fonte? — disse uma das presentes.
O ti’ Álvaro, a ti’ Nazaré, o ti’ Bernardo, o ti’ Augusto, a ti’ Rita, a ti’ Espírito Santo, etc., tudo gente do bom tempo, eram dos mais velhos que ali moravam.
— Se vou à fonte? — redarguiu maquinalmente. — Vou, que a minha mulher já não pode das pernas… E muito menos com cântaros à cabeça.
E olhando para o adjunto feminino:
— Isto está aqui uma bela sociedade… Tantas sois vós, logo de manhã! — disse com alguma brejeirice.
— É para que veja!  
 — Estou a ver… — replicou compassadamente.
Perguntava o preço do peixe:
— A como é hoje a sardinha?
— É a vinte e cinco tostões a dúzia, ti’ Álvaro. — Respondeu a peixeira que era vizinha dele, quase porta com porta.
— Sim senhor… Parece boa…
— Vá à fonte e venha que há de levar, ao menos, uma dúzia, para si e para a ti’ Nazaré!
— Ná…! Hoje… há para lá um bocado de toucinho…
E mais não disse. Rodou à sua vida. Desceu a rua da Costa para a Fonte Velha, onde foi buscar dois grandes cântaros de lata cheios de água. Um em cada mão. Para ele e a mulher se lavarem, beberem e cozinharem. Era assim em todas as casas.

Mas o tempo não deixava parar o relógio. A manhã adiantava-se e estava a fazer-se tarde para as mulheres darem andamento ao jantar. Era preciso acender o lume!
A calcular pelo palavrório, as queridas leitoras e leitores ter-se-ão já apercebido que, naquele tempo, o almoço era de manhã, o jantar tinha lugar ao meio dia e, à noite, a ceia.
De repente, ouviram-se brados na esquina de cima:
— Ó ti’ Carolina … ti’ Carolina…!
As mulheres que se encontravam no largo da Cruz de Pedra, quedaram à escuta.
— O que será aquilo? — perguntaram entre si.
— Alguma aflição?
Não! Não! Era a ti’ Filomena Maiaca, uma vizinha da outra rua, a clamar da janela! Era a sua forma de chamar!
A ti’ Carolina veio acudir, incomodada.
— Credo! O que é, mulher?! Tanta lambança!
A Filomena fez que não ouviu o reparo.
— Tem lá lume?! — perguntou.
— Tenho, tenho!
— Deixe-me ir aí acender uma pinha!
— Então vem cá depressa, que eu já vou com o caldo quase pronto e isto pode apagar-se!
Foi então que as mulheres que se encontravam, um pouco mais abaixo, no largo da Cruz de Pedra, perceberam! E rumorejaram:
— Ai, o raio da ti’ Filomena! Ora com ‘feito! A clamunha que ela faz, a pedir lume só para poupar os fósforos!
Sem se importar com a angústia que provocava nas vizinhas, a Filomena dizia em surdina, consigo própria:
— Nossa Senhora, que se está a chegar o meio dia novo e ainda não meti as couves na panela! Que há de ser de mim! O meu homem mata-me!
Depois, como se estivesse ali uma outra pessoa, desabafou em voz alta:
— Hoje anda para a Oles, a trabalhar! Se não chego lá a tempo, enxovalha-me! Ele, com o copito, até já me tem dito: “Amaldiçoada mulher!”… aquele malandro!
Ora, para ir levar o comer ao marido ela tinha ainda que palmilhar muito terreno a pé. Maldizia a sua vida! Magra, rija, energética, com a chegada do bom tempo, tinha atirado aos infernos as sandálias que só lhe tolhiam os pés! Descia as escadas descalça e passava, a correr, na calçada velha, irregular, onde podia haver toda a sorte de objetos cortantes, como fragmentos de pau, vidro e metal. Acendia a pinha em casa da vizinha e voltava num ápice para atear a sua própria lareira. Escolhia as pedras onde punha os pés. Nada a podia deter!
E lá ia, à vida, lesta, tratar do jantar!

Enquanto isto, nas ruas, a criançada fazia a habitual gritaria das brincadeiras: a saltar à corda, a jogar à ronda, a fazer casinhas com terra amassada, a chapinhar no rego da regadia, na rua de cima, que passava pelo casario de alto abaixo, cuja água ia fertilizar os terrenos das casas ricas do fundo de vila! E dava caça às vespas amarelas, atraídas ao cheiro do peixe e que ziguezagueavam na humidade pouco sadia das ruas! Matavam moscas, espetavam-nas na ponta de carumas e iam atrás das vespas, ao despique:
— Abelhinha, abelhinha, toma lá a tua mosquinha!   
Se as vespas se atiravam ao isco metiam-nas em frascos. O vencedor, com o maior número de insetos a zumbir no recipiente de vidro, corria a exibi-lo aos outros, com grande alvoroço!   
Pelas ruas, ouvia-se o cacarejar ordinário e espantadiço das galinhas; escutava-se o miar furibundo e cavo dos gatos, quando alguém ameaça tirar-lhe a presa; percebia-se o ladrar dos cães, béu, béu; alcançava-se o ronco dos porcos que, por vezes, também vagueavam pela via pública. Nesta babel quase medieval de animais e sons, disputavam os bichos as tripas do peixe e o enxurro dos restos que lhes atiravam!
Porém, fazia-se um esforço para conter alguns destes abusos com penalizações aos donos. Era muito conhecida a multa dos “oitenta mil e quinhentos” (réis)!
Designação que a República haveria, corriqueiramente, de converter em escudos, valendo cada escudo, mil réis! Dizia-se que o Estado fazia uma divisão desse montante. Que consistia em reservar para a multa propriamente dita, oitenta escudos (oitenta mil réis); e meio escudo — cinquenta centavos, cinco tostões (ou quinhentos réis) — para pagar o papel do impresso do auto levantado ao prevaricador! Um procedimento, sem dúvida, de um particularismo verdadeiramente requintado e deliciosamente curioso! Legalidades!
Mas se a vida, ontem, nas ruas da vila, era feita de todo este barulho, espalhafato e alarido e, até, de uma certa desordem e insalubridade, que, à época, urgia melhorar, o certo é que o silêncio de hoje traz à lembrança uma grande agonia. E a morte pode espreitar amanhã!

Nota: neste texto podem ter sido usadas palavras ou expressões locais ou regionais que não constem da ortografia oficial.

José Barroso 

4 comentários:

M. L. Ferreira disse...

Este texto é um enorme contributo para o retrato sociológico da nossa terra (e de quase todo o país rural), merecedor de ser transformado no argumento de um filme. Tem cá quase tudo sobre as nossas gentes e a nossa vida em meados do século passado; ainda por cima, tudo devidamente contextualizado. Será uma pena que se perca.
Já agora, porque será que nós, tendo uma ribeira tão extensa, não tenhamos tido mais que duas ou três azenhas e moinhos, sendo que na Torre, no Louriçal e Póvoa de Rio de Moinhos, por exemplo, houve tantos ao logo do Ocresa? Será porque privilegiámos os lagares de azeite?
E sobre lagares de azeite, já se tem aqui falado no assunto, mas nunca é demais lembrar, que é pena que se tenham deixado espoliar todos e nunca se tenha concretizado um projeto à volta do mundo do azeite. Poderia falar-se também do mundo das tecedeiras e fiadeiras, que houve tantas por cá. Terá isto a ver com a nossa auto-estima, que nos faz dizer mal de nós próprios e não valorizar a nossa cultura e o nosso património?

Anônimo disse...

Nesta narrativa, o tempo voltou atrás e as personagens voltaram a dar vida às ruas da vila, noutros tempos e outra realidade que já não existe. Foi bom de ver. Muito bom mesmo.
Tina Teodoro

José Teodoro Prata disse...

Bonitos quadros da nossa vida coletiva, no passado.
Sente-se o pulsar da Vila naquela pracinha do alto da rua da Costa.
Escrita arejada (sente-se, não se explica) que dá gosto!

Anônimo disse...

Dá mesmo gosto...como se fossem paginas do grande Aquilino.
O ZB fez-me regressar à Rua da Cruz a caçar vespas que aprisionávamos
em buracos tapados com vidros de garrafa e a fazer encanamentos com tonas de cebola que experimentávamos na levada e fez-me ter saudades dos meus tios. Mesmo com as cataratas vi o filme correr na minha cabeça, que é como se vê bem, porque podemos gastar o tempo que precisarmos para ver os pormenores.
O balcão era o poiso do cântaro de quem ia mais para cima e vinha esfalfado da Rua da Costa.
De maneiras que era assim...ontem
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