terça-feira, 2 de outubro de 2018

Premonições


Madre Teodósia da Paixão meditava nos claustros inferiores do seu convento; no topo norte existia um pequeno altar com a imagem do crucificado e um genuflexório.
Quando passava em frente do Crucificado, fletia ligeiramente a cabeça, fazia uma genuflexão e seguia.
No centro dos claustros, uma nogueira carregada de nozes era o orgulho das irmãs; empoleirada numa pequena escada, irmã Maria do Espírito Santo colhia…
Os claustros superiores estavam curiosos, a madre não parava.
Uma das colunas quadrangulares perguntou ao claustro inferior qual a razão de tanto mistério; este respondeu. A madre adivinhava o futuro e andava muito preocupada com o destino que iria ter o seu mosteiro
- Virá um dia em que não ficará pedra sobre pedra, os homens na sua ganância desmedida em vez de o conservarem, restaurarem, venderão os madeiramentos, toda a cantaria, a igreja será derrubada, o altar-mor desmontado e recolocado na capela da Senhora da Orada assim como os altares laterais. As imagens serão distribuídas pelos templos da vila.
- Não pode ser, um edifício tão bonito…
- Até o meu sepulcro que ficará na capela-mor desaparecerá. Todas as sepulturas das irmãs que se encontram num lugar próprio da cerca terão o mesmo destino. A terra será removida, cavada e semeada, no sítio onde se encontra a igreja os homens construirão um curral para as vacas e no andar superior guardarão os fenos onde instalarão também um pombal.
-Credo, cruzes canhoto; a nossa igreja um dia ficar reduzida a nada e no seu lugar surgir um curral!
- É o que ela vaticina.
A Madre, ao voltar a passar junto ao crucificado, ajoelhou e pediu perdão a Cristo.
Da cozinha saía um cheiro agradável, algumas irmãs estavam confeccionando esquecidos, cavacas, bolos de leite… a especialidade do convento era o pão-de-ló; uma maravilha.
A capela de São Domingos, que se situava um pouco mais acima, sentia-se envelhecer, de vez em quando soltava-se uma pedra, nada preocupante. A imagem do santo que se encontrava no altar do pequeno templo assustou-se quando caiu uma maior.
- Mau sinal; hoje caiu mais uma pedra, amanhã outra, os responsáveis não as recolocam, as paredes não aguentam e um dia a minha pequena casita desaparecerá. Se eu pudesse; não passo de uma estátua sem vida, sem alma. Quando já não houver capela, alguns devotos, ainda implantarão uma cruz de madeira neste local, as inclemências do tempo… desaparecerá também. Os homens continuarão a lembrar-se de mim, o lugar continuará a chamar-se São Domingos.
Santo André, apesar de viver junto à ribeira, teve uma visão idêntica, mas não deu grande importância.
Alguns dias passados, estavam na praça em amena cavaqueira, o sino da Misericórdia toca para a missa da tarde, passa a madre Teodósia acompanhada de uma noviça.
- Madre, onde vai com essa pressa toda, atalhou André, o apóstolo.
- Vou chamar o senhor vigário para ir administrar a extrema-unção a uma irmã, a idade não perdoa.
- Diga-nos uma coisa madre; acredita em profecias!
- A que propósito vem essa pergunta?
- O Domingos acabou de nos revelar um segredo que me deixou com a pulga atrás da orelha: disse-nos que a sua capela um dia desaparecerá. Eu também tive uma premonição idêntica, uma aparição me disse precisamente o mesmo. A minha capela também cairá.
- Não pode estar a acontecer; um destes dias andava meditando nos claustros inferiores do convento e também tive uma visão parecida.
- São catástrofes a mais, respondeu Vicente.
- Onde há fumo… atalhou Domingos
Entretanto, vinda do campo Valouro, surge a cavalo num burrinho Bárbara; desmonta, ata a corda a uma argola que se encontra à porta da Igreja e aproxima-se do grupo.
- Santas e boas tardes a todos, que o Senhor esteja connosco.
- Amem.
- Então tu por aqui?
-Venho falar com o senhor vigário, aproxima-se a minha festa e queria ver se este ano não havia pancadaria entre os meus devotos, amo-os a todos por igual. O povo do Sobral afirma a pés juntos que a minha capela lhes pertence, as gentes da vila, que não, a capela pertence a São Vicente. Na verdade, a minha casa está na fronteira das duas paróquias, mas não há dúvida nenhuma que se encontra em terras vicentinas. Desde que me cultuam por estas paragens sempre ouvi contar ao povo que a vila nunca necessitou de muralhas porque estava bem guardada. No campo estou eu, no cimo da vila, estás tu, ó Domingos.
- No fundo da vila, moro eu; respondeu André.
- E na serra, num local lindíssimo está a nossa Mãe Orada, atalha Vicente.
Se necessário for, as autoridades enviarão sentinelas para o Velho Castelo, ao mais pequeno sinal…
- Vê lá tu, Bárbara, que os nossos amigos e a madre afirmam a pés juntos que um dia as suas casas virão abaixo não ficando pedra sobre pedra
Bárbara corou, quase ia desmaiando quando escutou tal….
- Que tens tu? Ripostou Vicente
- Não é que eu tive a mesma visão? Como os povos da vila e do Sobral não se entendem quanto ao senhorio da capela, vão deixar de me cultuar como têm feito até aqui e um dia pela calada da noite, a mando do senhor vigário, virá um ganhão com o carro cheio de palha abre a porta, tira-me do altar, esconde-me no meio da palha e traz-me para a vila.
Como deixo de morar na capela, esta vai caindo até ficarem somente vestígios; mas o povo continuará a chamar ao local a minha graça.
- São coincidências a mais, atalhou Vicente; não pode ser; desaparecer o convento e as vossas capelas, naa… As autoridades locais e o povo devoto nunca consentirão.
- Não queria contar, diz Vicente, para não vos alarmar, mas também tive uma visão algo estranha. No dia da minha festa, enquanto os padres distribuíam o pão ao povo crente, eu do meu andor vi uma luz resplandecente ao fundo da igreja que mostrava o seguinte:
·        A vila irá ficar sem o concelho;
·        A vila irá ficar sem o hospital;
·        A vila irá ficar sem a C.G.D; não sei o que significam estas letras;
·        Solares, casas, serão derrubadas;
·        Muitas pessoas sairão à procura de melhores venturas;
·        A que outrora foi uma das principais vilas entre os rios Zêzere e o Tejo, passará a ser uma simples e modesta vila, com muitas casas e pouca gente.
- Credo! responderam todos ao mesmo tempo.
O sino da igreja conventual tocava a dobrar, pouco depois todos os sinos dos templos da vila; uma freira tinha acabado de entregar a alma ao Criador.
Na rua da Igreja ouvia-se nitidamente as ferraduras de um cavalo galopando.
- Olha quem chegou; Ó Tiago, para onde vais com tanta pressa?
-  Vim de propósito para vos dizer que a minha festa continuará a realizar-se, o meu largo um dia será revestido com um produto preto que impermeabiliza o meu terreiro ficando mais lindo, os bombos da Partida, Mourelo, Violeiro e de outras aldeias continuarão a tocar nos dias das minhas festas, dando as habituais voltas à capela.
-Já agora, atalhou Bárbara, também vos quero comunicar, os moradores que vivem no bairro do Casal da Fraga construirão uma capelinha em minha honra e eu continuarei a ser cultuada na vila.
Pedro também queria intervir, impossível, pesado como é, não foi capaz de se levantar da sua cadeira.
- Eu sou o patrono dos sacerdotes da região, apesar de continuar exposto no meu altar, à medida que os padres vão morrendo o meu culto vai desaparecendo
- Nem tudo é mau, atalhou Vicente; um dia construirão uma linda escola, uma bela piscina, um confortável lar de idosos, uma fábrica de engarrafamento de águas puríssimas que nascem nas entranhas da Guardunha. a Orada transformar-se-á num lugar aprazível… Quem sabe a vila não volte a ter a importância de outrora.
Oxalá!

J.M.S

5 comentários:

José Barroso disse...

A vida é feita de desilusões, mas também de sonhos e projetos realizados. As capelas situadas nas entradas da vila: S. Sebastião, São Domingos, Santo André, S. Francisco (ou Santo António), umas escaparam, outras não! As oradas do campo, Santa Bárbara e Senhora da Orada ainda lá estão. O Convento Franciscano foi arrasado (quando se faz lá uma intervenção arqueológica?)... Afinal, é assim no mundo dos santos... como no dos homens!
Quanto às outras obras, empreendimentos ou empresas (piscinas, escolas, CGD, fábrica de águas, etc), nunca houve na vila tanta coisa e tanta casa (como diz o texto)... Foi a fugacidade da democracia. Pois, muitas coisas se estão a ir de novo. Por uma razão diferente: cada vez as pessoas são menos.
Sem investimento nas riquezas locais existentes (águas, madeiras, azeite) ou outras que venham (turismo) ou regressem (cortiça, castanha, gado, fruta, vinho) ou se adaptem (pistáchio)... nada feito. É claro que com os terrenos em pequenas parcelas era necessário haver muito diálogo (para organização em cooperativas). Pois o minifúndio leva a uma economia familiar muito individualizada, o que, até certo ponto, é bom, mas prejudica imenso quando se quer alargar a produção. Quem, modernamente, podia produzir, aqui, em grande escala, era quem tinha (tem) grandes terrenos para fazer projetos com apoios da UE. Mas esses limitaram-se a ser absentistas, como sempre, porque não queriam (nem nunca quiseram) saber de S. Vicente da Beira para nada! Condes e viscondes e essa treta dessa gente!
Deixámos ir os alfaiates (em Alcains, quatro alfaiates criaram a Dielmar que é uma das maiores empresas de confeção do país!). Deixámos ir os sapateiros (na passagem da manufatura para a maquinofatuta).
E este é o nosso problema. Porque, se os serviços trazem gente, é ainda mais verdade que a gente é que traz os serviços. É isto que a democracia infelizmente ainda não nos deu...
Abraços.
JB

M. L. Ferreira disse...

Oxalá outras premonições se concretizem! De contrário, não tardam muitos anos, e a EN 325 e outras estradas nacionais irão atravessar aldeias bonitas, mas paradas e vazias de gente; como se fossem museus. Haverá ao menos cães e gatos para comerem os ratos que ocuparão as casas?

José Teodoro Prata disse...

O que muda ou acaba é o que está fora do seu tempo, já não se coaduna ao tempo presente e contra isso nada feito.
O que se pode é tentar fortalecer o presente e tentar projetar o futuro, adaptando, atempadamente o presente às novas realidades. Mas é sempre difícil, até doloroso, e gerador de conflitos geracionais.

Anônimo disse...

Uma maneira muito criativa e lúdica de falar da história da Vila...18 valores(como diria o Marcelo nos seus tempos de comentador).
A velhice não perdoa é a única explicação para tanto saudosismo dos meus queridos amigos.
Mas o ZT sabe a verdade: "o que muda ou acaba é o que está fora do seu tempo, já não se coaduna ao tempo presente e contra isso nada feito". Precisam-se novos projetos em ideias e pessoal para os implementar e isso é que é difícil de aparecer.
Isto hoje parece o muro das lamentações...
FB

José Barroso disse...

Como se costuma dizer, há aí um ponto em que concordo convosco, mas pouco... As coisas fora do seu tempo, acabam. É verdade em tese geral. Mas não é assim em cocncreto. Há muitos fatores em discussão. As pessoas podem mudar muita coisa. Costumo dar o exemplo de Alcains. Não foi apenas pela localização geográfica que evoluiu. Aliás, esqueçamos que também está localizada no Interior! E naquela zona há outras aldeias
que pouco mudaram (por exem., a Lardosa, o Louriçal a Soalheira). As pessoas é que podem fazer a diferença. A Dielmar emprega dezenas de pessoas (ou centenas (?) se contarmos as lojas que tem pelo país fora); não interessa o número. O que se sabe é que para isso, bastou a vontade de 4 pessoas (os tais 4 alfaiates). É apenas um exemplo. Outro, é a fábrica da farinha "Branca de Neve". As matérias primas (fazendas, tecidos, cereais) tanto existem lá como em S. Vicente da Beira! Isto é, são importadas! Resumindo: o que é certo é que Alcains era um lugarejo e hoje tem 4 mil eleitores na freguesia! Praticamente, arrebatou-nos a escola e os bancos. E, se fosse noutra zona geográfica, por exem. na Grande Lisboa, já estaria a reivindicar um concelho ao qual nós iríamos bater com os costados! Portanto, numa visão geral, não posso deixar de concordar convosco, porque toda a gente sabe no que se está a tornar todo o Interior. Mas também é no deserto que desponto os oásis: Castelo Branco, Idanha-a-aNova, Alcains... Outro exemplo: alguns os autarcas também mudam muita coisa e outros, não: é uma evidência que Santarém, hoje, está muitíssimo pior que Castelo Branco... A discutir... porue tenho que ficar por aqui.
Anraços.
JB