quinta-feira, 4 de julho de 2024

A revolta das lavadeiras

Terão muito de fantasia as memórias dos dias felizes da infância, quando acompanhava a minha mãe à Ribeira para a lavagem da roupa da semana (na verdade, não seriam dias fáceis, principalmente se era inverno).

Chegávamos cedo, pela fresca, para apanhar a água mais funda e a pedra maior, mas, às vezes, os melhores lugares já tinham em cima alguma peça de roupa deixada de véspera ou de madrugada, sinal de que o lugar estava guardado. Normalmente esse sinal era respeitado, se não, podia ser pretexto para grandes discussões e zangas entre as mulheres.

E não tardava que as margens, ao longo da Ribeira, se enchessem de lavadeiras, de pés enfiados na água ou ajoelhadas em pedras que cobriam com alguma peça de roupa grossa para tornar menos penosas as horas passadas naquela posição, a ensaboar, esfregar, passar por água, ensaboar de novo… até que a relva, à roda, se enchia de roupa a corar. Enquanto esperavam, as conversas fluíam sobre as coisas da vida, algumas vezes da vida alheia, que as delas pouco tinham para contar…

Nós, as crianças, divertíamo-nos a chapinhar nos açudes, a fingir os primeiros gestos de nadar ou a perseguir libelinhas e alfaiates, que quase sempre corriam mais que nós; os rapazes pescavam, um anzol improvisado na ponta de uma linha presa a uma cana. Naqueles dias, de combinação arregaçada e água pouco acima dos tornozelos, via-me na praia da Nazaré ou da Figueira da Foz, coisa de ricos, de que mal tinha ouvido falar, mas imaginava tal e qual a nossa Ribeira.

Passaram alguns anos, até que em 1966 começaram as obras para a construção da barragem do Pisco, no leito da Ribeira. Foi um acontecimento importante para a nossa terra. Nunca tínhamos visto tantas máquinas e tanta gente junta a trabalhar. A Vila ficou diferente, cheia de pessoas vindas de fora, principalmente do Alentejo. No início todos olhávamos esses estranhos com desconfiança, principalmente porque não iam à missa aos domingos e até nos diziam que era perigoso falar com eles porque eram comunistas; mas a pouco e pouco fomos começando a apreciar outros aspetos da sua maneira de ser, sobretudo a simpatia e facilidade em relacionar-se connosco, que também lhes éramos estranhos. O contacto com pessoas diferentes foi importante para alguma abertura nas mentalidades, ainda muito fechadas, que tínhamos na altura.

Três anos depois de terem começado as obras, em março de 1969, a Barragem foi oficialmente inaugurada pelo Governador Civil de Castelo Branco, mas, para nós, o dia mais importante foi só em setembro, quando cá veio o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano. Nesse dia fomos todos, para lá da Fábrica, receber o Senhor Presidente, e era um mar de gente por aquela estrada fora. Já o conhecíamos do retrato na parede da escola ou das Conversas em Família, mas vê-lo em carne e osso, fora da televisão, era outra coisa e fazia da nossa terra o centro do mundo.

Quando a festa acabou e Castelo Branco e outras povoações aqui à roda começaram a beber a água da Barragem, saiu uma lei que proibia toda a gente de lavar roupa na Ribeira. Sem alternativa, tanto as mulheres da Vila como as do Casal da Fraga não tiveram outro remédio que desafiar a lei e as ordens do guarda-rios, que aparecia quando menos se esperava, fardado a rigor, a impor autoridade. Ao princípio só assentava o nome das mulheres num papel, mas avisava: «Para a outra vez, se a apanho, passo-lhe a multa. Olhe que são oitenta mil e quinhentos!». «Ó senhê Manel, onde é que uma pobre como eu, que nem água tem em casa, vai lavar a roupa de tanto filho?», era a questão de muitas. E o senhor Manuel, o guarda-rios, ia fazendo “vista grossa”.

Mas quando a Maria da Silva e a Celeste Pique foram multadas e levadas a tribunal, enfrentaram o juiz com a coragem de quem tem a razão do seu lado. A Mena, filha da Maria da Silva, diz que ainda se lembra de ver mãe, sentada no tribunal a reclamar: «Se queriam beber a nossa água, tivessem feito a barragem lá mais para cima. A Ribeira é nossa e é lá que havemos de continuar a lavar, que não temos outro sítio!»

Revoltadas com tanta injustiça, as mulheres resolveram ir a Castelo Branco protestar. A Luz “da Esperança” ainda se lembra: «Juntámo-nos todas e alugámos um autocarro, tudo pago à nossa conta, e fomos protestar em frente do Governo Civil e da Câmara. Quem organizou a manifestação e foi falar com o presidente foi o Zé Eletricista, que sabia falar melhor.» O que ele terá dito já ninguém sabe dizer, mas a verdade é que as multas foram retiradas e o processo não seguiu para a frente.

Entretanto a Junta de Freguesia mandou fazer um lavadouro comunitário no Quintalinho, mas deixou as mulheres do Casal sem alternativa à Ribeira. Na Vila, a solução também não foi bem aceite por ninguém. Habituadas a lavar na água a correr, as mulheres não gostaram daquela modernice: a roupa não ficava tão bem lavada nem o cheiro era o mesmo como quando a lavavam na água limpinha e fresca que corria da Senhora da Orada. Segundo se dizia, havia até quem tivesse visto piolhos por cima da água.

E durante anos, continuaram a ver-se mulheres, de bacia à cabeça, a subir e a descer os caminhos dos dois lados da Ribeira. A pouco e pouco, com os tanques de cimento e depois as máquinas de lavar roupa em cada casa, essa visão foi desaparecendo completamente. Hoje é tudo mais cómodo, mas ainda há quem diga que não é a mesma coisa…

Maria Libânia Ferreira