1895, setembro; as parreiras deixavam ver entre a
folhagem belos “gachos” de uvas prontos para serem colhidos, “algumas com muita
parra e pouca uva”, as festas de verão estavam à porta; quarta-feira; lavradores
e camponeses, começavam a faina, “embora alguns já andassem vindimando”.
Na Fonte Velha junto ao chafariz dornas, pipos, tonéis
eram tratados com água para as aduelas incharem e o vinho novo não vazar por
alguma frincha.
A praça municipal fervilhava de munícipes que vinham
dos mais recônditos lugares para tratarem de assuntos inerentes às suas vidas,
pagar a décima ou fazer compras no comércio que a circundava.
Ao fundo da praça ouvia-se o barulho cadenciado do
martelo batendo na bigorna, ferrador não tinha mãos a medir ferrando as alimárias.
O céu azul começou a toldar-se de nuvens escuras, grossas pingas começaram a
cair, a poeira da praça num ápice se transformou em lama, a cachopada corria
descalça lapacheirando-se uns aos outros.
Um cidadão com um saco na mão subiu o balcão da cadeia
como habitualmente, entrou na câmara, entregou-o e saiu. Todos os dias fazia o
trajecto S. Vicente, Castelo Novo à tarde; no outro dia de manhã regressava.
Comboio levava e trazia as cartas, encomendas e todo o género de valores.
Uma carta chama a atenção ao presidente da câmara,
“vinha do governo” ao lê-la, seu rosto ficou branco como a cal. Estava sonhando,
só podia; dentro vinha uma cópia do diário do governo que suprimia o concelho,
a chuva continuava a cair, o céu tristonho parecia querer comungar da mesma
desgraça, o martelo continuava a bater na bigorna, as festas estavam à porta, o
povo não queria acreditar, os principais monumentos da vila cobriram-se de
faixas negras. “ o escudo que encima a velha fonte ainda se podem ver os pregos
que serviram para o tapar com um pano preto, em sinal de luto”.
Ganhões atravessavam a praça transportando dornas
cheias de uvas para serem desfeitas nas adegas. Os sinos dobravam, as pessoas
choravam, a autonomia municipal deixou de existir.
A partir daquele momento a vila passou a ser uma
simples freguesia sem qualquer poder administrativo. Depois; bem, depois,
começou a debandada dos funcionários, a partida de muita gente para outras
paragens, a vila a começou a fazer uma longa travessia no deserto. Durante
muitas décadas o marasmo, o esquecimento, a apatia foram os “donos e senhores
do burgo” sessenta e três anos depois a casa da câmara foi restaurada. As
sonaves, os caibros e as telhas viam-se, não havia forro, os pardais e as
andorinhas na primavera esvoaçavam fazendo seus ninhos nos caibros, de vez em
quando uma chinca obrigava os alunos e terem que mudar as carteiras para que a
água não caísse em cima das cabeças, os espaços onde outrora existiram
repartições passou a haver jovens estudantes. Cada sala possuía duas classes; primeira
com a terceira e a segunda com a quarta classe. Para além do quadro negro de ardósia
na minha sala existia junto à janela um ábaco, as andorinhas e os pardais sobrevoavam
o espaço chilreando e nós aprendíamos o bê á bá através de uma grande senhora,
a professora dª Susana. Ao cimo do balcão da cadeia existiam duas portas, uma
dava acesso directo à sala do antigo tribunal.
Com a remodelação do edifício essa porta desapareceu,
a Domus foi restaurada, levou sobrado novo, forro, retretes,” um luxo”,
salamandras que nos aqueciam durante os dias frios e chuvosos invernais.
Por essa altura a vila possuía muitos habitantes, as
crianças de ambos os sexos em idade escolar andariam à volta de 120 alunos. A praça fervilhava de catraios correndo e brincando.
(…) Mais uns anos de pasmaceira, em 1961 rebenta a “bernarda”
em Goa, Damão e Diu. Nehru invade com cerca de cinquenta mil soldados aquelas
parcelas de território “Luso”.
Angola, Moçambique… seguem as pisadas, a partida dos
mancebos para as ex colónias, emigração para os países devastados pela grande
guerra, a sangria humana; a desertificação começa, a vila continua “pasmada”,
nada de novo, até que 70 anos depois novo surto de desenvolvimento. Barragem,
saneamento básico, água ao domicílio, luz eléctrica, “à meia-noite mais ou
menos os candeeiros eram desligados ficando as ruas às escuras” A velhinha
calçado basáltica foi substituída por paralelos graníticos; a estrada que liga
Alcains ao Castelejo aos poucos foi sendo alcatroada 78 anos depois da queda do
concelho, a Pequena Lisboa recebeu uma embaixada da Grande Lisboa, chefiava-a o
presidente da câmara. Um “obelisco” é levantado na Fonte Velha para comemorar
os oitocentos anos da deslocação de alguns homens bons à capital do reino para
oferecerem o povoado ao rei D. Afonso Henriques.
A vila sempre a aumentar; novas artérias, casas,
serviços, indústrias. A baixa densidade humana… a partida dos naturais
procurando novos rumos transformaram-na. Na zona medieval vivem cada vez menos
cidadãos, a maioria idosos, não há sangue novo.
No dia de Corpo de Deus, fizeram a primeira comunhão
quatro crianças.
Com tantos melhoramentos que existem:- ”piscina,
escola, banco, estradas (quase todas asfaltadas) falta a velhinha Cascalheira,
santuário da Senhora da Orada primorosamente alindado, templos recuperados,…
filarmónica, rancho, bombos, bombeiros, escoteiros… há cada vez menos pessoas a
habitar a donairosa vila de São Vicente da Beira
Quo vadis interior!
J.M.S