Depois da água, o vinho será a
bebida mais antiga da história da humanidade, tendo adquirido, ao longo dos
tempos, uma enorme importância sociocultural e económica que atravessou as
civilizações mais remotas e chegou aos nossos dias.
A sua origem é difícil de
identificar, acreditando alguns que terá sido Noé quem plantou a primeira
vinha, considerando outros que a bebida é uma dádiva dos deuses, supondo-se
mais recentemente que o vinho apareceu por acaso, pela fermentação acidental de
algumas uvas esquecidas dentro de um pote.
Também não é possível conhecer
exatamente o período em que terá sido plantada a primeira vinha, mas existem
vestígios da sua existência desde há alguns milénios antes de Cristo, quando os
povos se tornaram sedentários. Os Gregos terão sido os responsáveis pela sua
expansão pelos territórios à volta do Mediterrâneo, mas seriam os Romanos a
trazê-la e a impô-la nas terras que conquistavam, como marca da sua civilização
e símbolo do seu poder. Foi o que aconteceu também na região que é hoje o
território nacional. A vinha das Vinhas do Poço, nos arredores de São Vicente,
remontará a esse tempo, mas existiram outras da mesma dimensão e importância
onde se produzia vinho de boa qualidade (já lá vão uns anos largos, mas há quem
se lembre ainda do da Dona Ludovina, feito pelo Ti António Russo, que pelos
vistos era dos melhores de São Vicente).
Para além dos grandes produtores,
era comum que quem tivesse um bocado de terra, própria ou arrendada, plantasse
alguma vinha para fazer vinho para gastos da casa. Eram normalmente plantadas
em terrenos mais pobres, onde não se podia cultivar milho ou batata, e era
também frequente plantá-las nos quintais, dentro das povoações, a formar
latadas. Não há muito tempo, por esta altura, era grande a azáfama em quase
todas as famílias de São Vicente que se juntavam para a vindima. Depois de
colhidas, as uvas eram acarretadas em dornas ou cestos por carros de bois, por
burros, ou às costas e à cabeça de homens e mulheres. A seguir eram esmagadas
no cerindão ou pisadas dentro dum tanque de cantaria onde ficavam a ferver
durante alguns dias. O cheiro a mosto inundava as casas e as ruas, até à altura
em que era transferido para os pipos. Depois era esperar até ao São Martinho,
com alguma ansiedade, porque o prestígio dos homens também dependia da
qualidade do vinho que fazia. Se era bom, convidavam-se então os parentes e
amigos para o provarem, muitas vezes acompanhado por pão com azeitonas, queijo
ou uma talhada de chouriça esquecida no fundo da talha.
«O Ti Antonho este ano é que lá tem uma pinga boa!» ouvi algumas vezes
ao meu pai.
O vinho teve um papel importante
na prevenção e tratamento de várias doenças, sendo usado, desde os tempos mais
antigos, como calmante, anticético, anti-inflamatório e analgésico. Não serão
ainda de desprezar as alusões às suas propriedades energéticas e afrodisíacas.
Devia ser por elas que me lembro de ver o meu avô a lamber-se todo com uma
gemada feita com ovo, açúcar e vinho que a minha avó lhe dava todas as manhãs.
Na altura pensava que era apenas por ser homem que ele tinha direito àqueles
mimos; reconheço agora que bem precisava deles para criar o rebanho de filhos
que Deus lhe deu e aguentar tanto trabalho em dias que começavam ainda o sol
vinha longe e se estendiam para lá do anoitecer.
Para além das propriedades
medicinais, o vinho adquiriu também grande importância simbólica em várias
religiões (os faraós ofereciam vinho aos deuses e os sacerdotes usavam-no em
rituais religiosos). Na igreja católica a simbologia do vinho também está
presente em vários momentos (o milagre das bodas de Caná, durante as quais
Jesus transformou a água em vinho, e a utilização do vinho que se transforma no
Sangue da Cristo durante a Consagração, são dois dos exemplos mais conhecidos).
Tem tido também, ao longo dos tempos, um papel importante nas mais diversas
manifestações da cultura popular, principalmente em momentos de festa e
confraternização, como, por exemplo, os rituais de namoro e casamento.
Entre nós, e noutras localidades
da Beira Baixa, foi uso, até há relativamente pouco tempo, “pagar o vinho”:
quando um rapaz de fora queria namorar uma rapariga da terra tinha que oferecer
vinho em abundância a todos os rapazes para poder ser aceite como membro da
comunidade. A exigência do “pagamento” acontecia normalmente a partir do dia em
que o rapaz entrava dentro de casa dos pais da rapariga, o que significava que
o namoro já era “sério”. Se o rapaz era pobre, as exigências não eram tão
grandes, mas se era pessoa de posses, oferecia também pão com queijo e chouriço
e contratava um tocador para se armar um bailarico.
Entre nós ficaram famosos os
versos atribuídos ao senhor José Lourenço para os rapazes da Vila quando
quiseram ir pedir o vinho ao namorado de uma das filhas do senhor Manuel da
Silva (há outras publicações no blogue sobre este acontecimento):
Meu
capitão, dai-nos licença,
para que
a rapaziada exponha
em carta,
por ter vergonha,
de vir à
sua presença?
São
costumes pertinazes,
quando um
estranho aqui vem
a pedir a
filha à mãe,
ter de
dar vinho aos rapazes.
Por isso,
meu capitão,
vede lá
como há de ser.
se esse
uso tem de morrer,
que não
seja em vossas mãos!
E os versos continuavam…
Em Penha Garcia era hábito os
noivos oferecerem tremoços às raparigas e vinho aos rapazes nos proclames do
meio (os proclames repetiam-se na missa por três domingos consecutivos). Na
véspera do dia do casamento ofereciam doces e vinho a todas as pessoas que
fossem dar-lhes os parabéns na casa que iam habitar.
No Ladoeiro era costume, na noite
de núpcias, os rapazes amigos do noivo irem para a porta do novo casal dar-lhes
os parabéns com quadras alusivas ao momento:
Como
deves ser feliz
Neste
momento, meu amiguinho,
Vem
também animar-nos
Com um
copo de vinho.
Um
copo de vinho
A
ninguém, pois, se nega,
Que nos
sirva de proveito
E também
p’ra sossega.
E a cantiga continuava com outras
quadras até o noivo se levantar e vir à porta oferecer vinho e aguardente a
todos. Esta tradição de saudar os noivos com cantigas na noite de núpcias era
comum a muitas aldeias da Beira Baixa. Acontecia também em Monte Fidalgo,
Perais, onde um amigo ou familiar do noivo ficava à porta do casal com um
cântaro de vinho para dar de beber a toda a gente que por lá passava.
Na Partida, depois do jantar da
boda no qual participavam todos os convidados do almoço, o baile continuava,
mas os noivos saíam discretamente para casa. Passado algum tempo, os rapazes
iam bater-lhes à porta e obrigavam o noivo a levantar-se e a dar-lhes de beber.
Como já se sabia que isto ia acontecer, o vinho e alguns doces já estavam
preparados de forma a despachar os intrusos o mais depressa possível.
Na festa do São João, no
Rosmaninhal, o vinho e os tremoços, oferecidos pelo alferes (mordomo) eram
distribuídos em abundância a todos os participantes, da terra ou de fora, ao
longo dos dias que a festa durava. Um dos mais curiosos acontecia durante as
cavalhadas (cortejo de cavaleiros que percorria as ruas principais): durante o
percurso distribuíam-se tremoços, broas de mel e vinho que era transportado
numa grande caldeira onde se mergulhava um copo com asa, e por onde bebia toda
a gente.
A maior parte destas tradições, e tantas outras que
ao longo do tempo animaram a cultura popular, têm vindo a perder-se com os
anos. Felizmente que tem havido quem se dê ao trabalho de recolher e registar
algumas dessas práticas para que não se percam também da memória. Foi o caso de
Jaime Lopes Dias com o livro Tradições e
Costumes da Beira Baixa, e também Luís Leitão com a monografia Partida onde fui buscar alguma da
informação que aqui deixei.
Sobre o vinho resta-nos a consolação de, graças à
introdução de novas castas, melhores processos de cultivo e produção e ao
trabalho dos enólogos termos disponíveis uma variedade grande de vinhos, e cada
vez de maior qualidade. Assim haja oportunidades de irmos confraternizando!
Maria Libânia Ferreira