Enxidros era a antiga designação do espaço baldio da encosta da Gardunha acima da vila de São Vicente da Beira. A viver aqui ou lá longe, todos continuamos presos a este chão pelo cordão umbilical. Dos Enxidros é um espaço de divulgação das coisas da nossa freguesia. Visitem-nos e enviem a vossa colaboração para teodoroprata@gmail.com
quarta-feira, 20 de setembro de 2023
Os nossos avós eram cientistas
segunda-feira, 18 de setembro de 2023
Atafona
sábado, 16 de setembro de 2023
Os Sanvincentinos na Grande Guerra
José Nunes
José Nunes nasceu em Ribeiro d´Eiras, no dia quatro de setembro de 1892. Era filho de António Nunes e Maria
Joaquina. Como era habitual naquele tempo, começou a trabalhar muito cedo, na
agricultura e como pastor.
Assentou praça em Castelo Branco,
no dia 9 de julho de 1914, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de
Infantaria 21. Segundo a sua folha de matrícula, era analfabeto e jornaleiro.
Embarcou para França, no dia 18 de
janeiro de 1917, integrando a 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2º Regimento de
Infantaria 21, como soldado com o n.º 723 e a chapa de identidade n.º 9125.
Desembarcou em Brest, no dia 4 de fevereiro.
Do seu boletim individual consta o
seguinte:
a)
Baixa ao Hospital n.º 26, em cinco de fevereiro; alta em 20;
b)
Colocado na 1.ª Companhia com o n.º 723, em 16 de novembro de
1917;
c)
Baixa ao Hospital de Base 1, em 14 de abril de 1918; alta em 20;
d)
Baixa ao Hospital de Base 2, em 30 de maio;
e)
Em sessão de junta médica realizada em 14 de junho, foi-lhe
concedida licença por 60 dias para convalescença; esta licença foi posteriormente
reduzida para 30 dias;
f)
Embarcou para Portugal a bordo do navio Helenus, no dia 17 de março
de 1919, e desembarcou em Lisboa a 20 do mesmo mês.
Passou à reserva territorial em dezembro
de 1935.
Condecorações: Medalha militar de
cobre comemorativa da participação de Portugal na Grande Guerra com a legenda: França-1917-1918.
Família:
José Nunes casou com Ana Maria no
dia 27 de abril de 1920 e ficaram a viver na Partida, de onde era natural a
esposa. Tiveram três filhos:
1.
João Nunes, que casou com Maria do Carmo e tiveram 1 filha;
2.
Maria de Jesus Nunes, que casou com Joaquim Martins e tiveram 4
filhos;
3.
Celestina Nunes, que casou com César Alves e tiveram 2 filhos.
«Quando o meu avô regressou à terra foi recebido como um herói; mas
vinha tão traumatizado que não conseguia falar de outra coisa que não fosse a
guerra. Todas as conversas iam dar ao mesmo: as muitas tropas do seu batalhão;
os muitos homens nas trincheiras; os muitos mortos que uma vez viu espalhados
pelo chão, uns sem pernas, outros sem braços, outros com a cabeça ou a barriga
abertas; os que morreram quando tiveram que atravessar um rio agarrados a umas
cordas, com a roupa atada ao corpo com umas correias e o pouco dinheiro que
tinham, dentro da boca. Referia-se sempre a eles utilizando a expressão «Mais
de mil homens!» um número que ele achava ser o maior para definir todas as
atrocidades que por lá viu e dificuldades por que passou. Por causa disto puseram-lhe
a alcunha de “Mil Homens” e toda a família ficou assim conhecida.
Quando andava na escola também me tratavam por “Mil Homens”. Eu
ficava muito envergonhada, porque não sabia a origem do nome e achava-o muito
feio. Atualmente, depois de conhecer a história que deu origem à alcunha da
família, tenho o maior orgulho nela e no meu avô.
(testemunho da neta Celestina Nunes)
A filha Celestina Nunes também se
lembra de ouvir o pai contar que, quando chegou a Portugal, por trazer uma
caderneta tão limpa, lhe quiseram dar emprego em Lisboa, mas ele não aceitou,
porque o que queria era voltar para perto da família, das suas cabras e das
suas hortas.
Toda a vida trabalhou na
agricultura, quase sempre como jornaleiro numa casa de gente abastada da
Partida. No verão raramente faltava a um quinto e no inverno fazia quase todas
as campanhas da azeitona. Mas do que ele gostava mais era da sua Metanhosa, uma
terra, quase brava, que ele transformou numa propriedade que era o seu orgulho
e onde cultivava de tudo para a casa. Também teve quase sempre um rebanho de
cabras, que era uma grande ajuda para o sustento da família.
José Nunes faleceu no dia 24 de maio de 1962. Tinha 69 anos de idade.
(Pesquisa feita com a colaboração
da filha Celestina Nunes e da neta Celestina Nunes)
Maria Libânia Ferreira
Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra
quinta-feira, 14 de setembro de 2023
Estou de volta
Andei por fora, não demasiado tempo, mas o suficiente para me desligar. Por lá apagou-se-me o telemóvel e não tinha comigo nem me lembrava do código para o voltar a ligar. Uma sorte! Li o Grande Sertão: Veredas, do João Guimarães Rosa, um livro apaixonante mas difícil, pois está escrito na linguagem do sertão brasileiro.
Ainda por cima estou a gozar os primeiros dias da minha reforma e supreendentemente, até para mim, não me apetece fazer rigorosamente nada. Eu que, segundo me dizem, ando sempre a correr.
A exceção é a agricultura, mas tenho de ir com calma, pois fui operado a uma hérnia há meses e tenho uma tendinite de um enorme trambolhão que dei em abril.
Já semeei os nabos nos Cebolais e fui ver como paravam as modas lá pelo Ribeiro Dom Bento. As abelhas estão catitas, mas as figueiras cheias de figos podres nos ramos e no chão. Valeram-me as passas que a São e o Cassiano apanharam antes de começar a chover. A macieira grande do lameiro tinha as maçãs todas no chão, podres, uma pena. Surpreendentemente, colhi boas uvas de mesa, o que não era costume, pois um texugo encarregava-se delas todos os anos. Fiquei triste por, eventualmente, ter perdido esse amigo.
Passei pela Tapada e bebi um copo com o João Candeias, que andava nos preparativos para a vindima. Nem eu nem ele nos lembrávamos de um início de setembro tão chuvoso.
Ando pr'aqui a matutar num projeto que pode vir a ser interessante. Darei notícias dele, em breve.
José Teodoro Prata
quinta-feira, 27 de julho de 2023
Um padre visionário
Estive há dias na apresentação do livro «Estêvão Dias Cabral» de Lídia Barata, jornalista do Reconquista. É um livro pequeno, quase todo de investigação sobre os trabalhos na área da engenharia hidráulica em que Estêvão Dias Cabral participou (ou apenas sonhou...), mas que revela muita pesquisa.
É o caso do “capítulo” A PROJEÇÃO DE UMA FÁBRICA DE PAPEL NA BEIRA BAIXA”, que achei extraordinário, apesar de nunca se ter concretizado:
«Na
Beira Baixa, seu berço, Estêvão Dias Cabral também estudou com detalhe as
potencialidades que a Serra da Gardunha oferecia para a instalação de uma
fábrica de papel, projeto que nunca vingou e nunca saiu do seu pensamento
técnico nem do papel, sendo à época, seguramente, visto como visionário e
arrojado, ou até mesmo megalómano.
Além do
potencial em termos de matéria prima, o seu foco terá incidido na quantidade de
nascentes de água das quais a Gardunha é fiel guardiã, ou não fosse a água um
dos elementos fundamentais no fabrico de papel.
Além de
científico, o seu pensamento também se refletia no campo económico, considerando
que com este projeto havia potencial para Portugal deixar de importar papel e,
além de colmatar as necessidades de consumo interno, poderia até vendê-lo a
outros países.
No seu
manuscrito “Memória sobre o Papel”, Estêvão Dias Cabral realça a importância da
oferta que cada país tem para a criação da sua imagem. “Paciência, se somos
obrigados a comprar em casa alheia o que a nossa terra não dá”, referindo-se a
produções naturais, mas no que toca à manufatura, o que depende da arte e do
engenho do homem, o Jesuíta considera que “ muitas vezes a boa indústria
converte miséria em felicidade e pobreza em riqueza”. Pensamento assente no
facto de, à época, Portugal desembolsar anualmente “duzentos mil cruzados” na
compra de papel, sobretudo a Génova e Holanda. Cabral reitera assim que não
tínhamos necessidade de comprar um produto que podíamos vender. E fundamenta e
explica porquê.
E foi
como “boa indústria” que classificou a fábrica de papel que projetou para a Beira
Baixa. Precisava apenas de garantir que os três pilares fundamentais estavam
cumpridos, nomeadamente trapos de linho (mas também papel usado e de livros
velhos), água e uma máquina para transformar a mistura dos outros dois elementos.
Certo
já de que tudo se aproveita e transforma, considerava que seria fácil, com uma
pequena compensação financeira, convencer as criadas das casas abastadas e os
mais pobres sem ocupação, a recolher todo este tipo de material, fosse na casa
dos patrões, fosse nas ruas. Isto seria, na sua perspetiva, um pequeno
investimento que geraria um grande retorno. Introduzia à época o conceito
daquilo a que hoje chamamos reciclagem.
Quanto à
água, que defendia ter de ser “clara, abundante e com queda tal que possa
voltar rodas e mover máquinas”, achou-a em abundância num passeio no Outono de
1790 pela sua região natal.
Num
local que designou por serra de Alpedrinha, próximo da localidade de Louriçal
do Campo, Torre e Casal da Serra, a água do Ocreza servia perfeitamente o
propósito, tal como a proximidade das aldeias, que poderiam fornecer a mão de
obra necessária. E mais uma vez, olhando à redução dos custos, apontava que os
trabalhos mais leves podiam ser feitos por mulheres, rapazes e raparigas, que
ganhavam menos que os “dois tostões” diários pagos aos homens.
Este
local ficava, como sublinhou, a ”quatro léguas de Castelo Branco e a sete ou
oito de Vila Velha”, Vila Velha de Ródão que, no seu entender, seria o local
ideal para fazer escoar o produto final, já que beneficiava da navegabilidade
do Tejo. Escoamento que também podia ser feito por Abrantes, em alternativa. A
facilidade dos acessos era um fator relevante para o seu estudo. Faltava o
terceiro pilar, uma máquina que poderia ser como as referenciadas na literatura
francesa, onde esta indústria estaria mais avançada, mas também sugeria que se
pudesse visitar uma fábrica que, à data, já laborava na Lousã. Em 1716 a
qualidade do Engenho de Papel do Penedo, valia-lhe o prestígio de fornecer a
tipografia da Companhia de Jesus de Coimbra, vindo depois a juntar à sua lista
de clientes a Tipografia Académica e a Casa da Moeda. De qualquer forma, esta
tipografia da Lousã seria de menor dimensão que a projetada por Cabral para a
Gardunha.
(…)
Na
Gardunha abundava a pedra para facilitar a construção do edificado. Carecia de
madeira, sempre alvo fácil de incêndios, mas poderia ser fornecida pelas matas
de castanho de Alcongosta ou pelo carvalho do Souto da Casa, madeiras nobres
que considerava até poderem ser usadas na construção de navios, pela sua
qualidade.
Estêvão Dias Cabral defendia que, havendo método, o papel poderia dar ao Estado o mesmo lucro que este já retirava dos lanifícios da Covilhã. Uma coisa era certa na sua cabeça, a beira baixa reunia todas as condições para acolher a “melhor fábrica de papel do mundo”.
M. L. Ferreira
NOTA:
Para quem possa não saber, Estêvão Dias Cabral, filho de Theodoro Faustino
Dias, de Tinalhas, e Maria Cabral de Pina, do Violeiro, foi padre jesuíta e engenheiro hidráulico. Nasceu em Tinalhas, a três de fevereiro de 1734, e faleceu em
São Vicente, no dia um de fevereiro de 1811.
segunda-feira, 24 de julho de 2023
Humor popular
A relação do povo simples com os padres sempre foi uma
relação dual, de respeito e escárnio. Respeito/reverência porque eram os
representantes de Deus, escárnio/crítica pois, com muitas exceções, que sempre existiram,
o clero integrava o pequeno grupo (2%) dos privilegiados (clero e nobreza), a elite
que detinha o poder político, económico, social, cultural e, no caso do clero, também
religioso.
Isso está presente na literatura popular como a que
integra a coletânea publicada na Etnografia de S. Vicente da Beira, pela Isabel
Teodoro.
Das recolhas de Leite de Vasconcelos temos os “Dez mandamentos
dos padres”:
1.
Amar a Deus por dinheiro.
2.
Enganar todo o mundo.
3.
Comer boa carne de carneiro.
4.
Jejuar depois de farto.
5.
Beber do branco e do tinto.
6.
Beijar as meninas bonitas todas a eito.
7.
Dar a bula por empréstimo.
8.
…nem da cabeça, nem do rabo.
9.
Dormir quando tem sono.
10.Não
cobiçar as coisas alheias, nem precisar dos outros, depois das barrigas cheias.
Estes 10
mandamentos encerram-se em dois:
Deus dê aos padres, o que deu aos bois.
E que dizer do que o povo imaginava que os padres pensavam
nos funerais?
Se é rico e tem
dinheiro,
Faz-se-lhe o
ofício inteiro;
Se é pobre e não
tem nada,
Faz-se-lhe uma
trapalhada.
Passo lento,
passo lento,
Que este é rico e
paga a tempo.
Enrola, enrola,
Deita o defunto à
cova.
Se é viúva fica
bem,
Não é para mais
ninguém.
Quanto a doações/ofertas/pagamentos...
Se é para obras
de castanho,
Venha a nós o
vosso ganho.
E por alma do
defunto,
Que venha mais um
presunto.
O
meu pai (António Teodoro) era um Teodoro, e isto só por si implica(va) ser uma
pessoa muito religiosa e respeitadora das convenções sociais. Mas também era um
Jerónimo, gente com açougues e comércio de gados, habituada ao contacto com
outras terras e diversas gentes.
Quando
os filhos eram pequenos, a nossa mãe foi operada em Castelo Branco e ele teve
de ser pai e mãe por uns dias e isso implicava preocupar-se em transmitir-nos a
religião. Rezava connosco todos os dias na cama, antes de adormecermos, bastante
mais do que a minha mãe nos impunha! Mas fora desses dias, a religião era
tarefa da minha mãe. Por isso ele, esporadicamente, aventurava-se em brincadeiras
que refletiam o ancestral humor do povo com todas as coisas, mesmo com as de
Deus.
Experimentem
dizer esta lengalenga fazendo o sinal da cruz na testa, na boca, no peito e finalmente
abrangendo todo esse espaço:
Pelo sinal,
Do Ingarnal.
Comi toucinho,
Fez-me mal.
Comi farinheira,
Fez-me caganeira.
Alcatruz,
Ámen Jesus.
Ou
este sermão que deve ser dito imitando o padre Leal das Minas da Panasqueira
que vinha cá pregar na Semana Santa. Não sei como é que a minha irmã o
conseguiu, pois ele raramente o dizia.
Prego o meu
sermão,
Carriça dum cão.
Sr. João Coelho,
Com seu barrete
vermelho,
Sua espada de cana
na mão,
Pra matar a
garrana,
A garrana deu um
berro,
Toda a gente
atormentou,
Só uma velhinha
ficou,
Embrulhada nuns
farrapinhos,
Atolada num
chocalho de merda até ao pescoço.
Meus irmãos,
Cortai os dedos e
olhai prás mãos!
Parafraseando Picasso, ao contemplar as pinturas rupestres da gruta de Lascaux: o Gil Vicente, o Bocage e o Herman José não inventaram nada.
José Teodoro Prata
sábado, 22 de julho de 2023
Lugares onde se para
Quase
no limite entre a Beira Baixa e o Alto Alentejo, a passagem por este lugar é de
paragem obrigatória: pelo rio; pela vegetação, tão característica daquele local,
que trepa pelas margens; pelas muitas espécies animais, principalmente aves,
que frequentemente se avistam; sobretudo pela grandiosidade das Portas do
Ródão, aquele monumento natural a que Hipólito Raposo chamou «As ombreiras
mutiladas de um arco do triunfo que um capricho plutónico quisesse ter deixado
em honra do grande rio nas primeiras auroras do mundo.» (citação que se
encontra num cartaz explicativo do local)
Da
última vez que por lá passei, há uma semana, o motivo da paragem não foi nenhum
dos habituais, mas a cor verde das águas. A má qualidade da fotografia não diz
muito da situação, mas a vista no local deixa-nos apreensivos. Como se não
bastasse já a poluição de Almaraz, as algas estão a alterar o maior rio que
atravessa o país, e a afetar a biodiversidade a toda a roda.
Não sei se foi coincidência, mas nem uma avezinha se avistou no céu; muito menos um peixinho a saltitar na água…
M. L.
Ferreira