O General Carlos Matos Gomes escreveu há dias um artigo que vem na linha das minhas reflexões/preocupações atuais. Sem concordar absolutamente com ele em tudo o que escreve, acho importante partilhá-lo convosco. Tenho hesitado em fazê-lo, mas hoje ouvi na comunicação social a referência a um ataque verbal de Donald Trump à Igreja Católica nos EUA e decidi-me. Também na Palestina as igrejas cristãs têm sido alvo de ataques militares de Israel, de que resultaram vários mortos (sem esquecer que existe uma minoria de cristãos na Palestina, que vive, luta e morre lado a lado com os muçulmanos). Numa das suas últimas mensagens, o Papa fez referência esse facto, embora muito indiretametne.
Segundo muitos especialistas em religião, a piedade foi a maior novidade, a ideia mais revolucionária que Jesus trouxe ao Mundo. Na Palestina e um pouco por todo o Mundio, é sobretudo a piedade que está a ser posta de parte, como um empecilho a remover.
A ação do Estado Judaico na Palestina, o
genocídio em Gaza e a destruição da Cisjordânia constitui um ato que os seus
autores pretendem que seja o ato final do direito de origem divina de Povo
Eleito à Terra Prometida, a provocar um Armagedeão em termos do Antigo
Testamento bíblico. Os dirigentes judaicos justificaram e justificam com o
Antigo Testamento da Bíblia e com o seu deus Javé a ocupação manu militari de mais este território da Terra
Prometida a Abraão há quatro mil anos. Sem a dimensão religiosa não é possível
entender a política do Estado de Israel, o discurso e o comportamento dos seus
dirigentes e a atitude de arrogância que revelam perante aa comunidade
internacional (gentios) e até contra os seus protetores americanos.
No entanto, no Ocidente cristão esta guerra
santa, equivalente a uma cruzada ou uma jhiad, está a ser
quase exclusivamente analisada sob o ponto de vista técnico, como um
historicamente vulgar conflito tendo por base os interesses de grupos
políticos, económicos e sociais, interesses estratégicos de poder global
envolvendo superpotências e potências regionais. Como mais uma “guerra” das
muitas em que o Ocidente se tem envolvido desde que se reconstituiu após a
queda do império romano, tendo o cristianismo como base ideológica e
civilizacional.
No entanto esta é uma guerra de rutura civilizacional, que coloca em causa
as raízes mais profundas da nossa civilização, que promove a substituição dos
valores do cristianismo e do Novo Testamento pelo judaísmo e pelo Velho
Testamento, o retrocesso de uma civilização de abertura, que o cristianismo foi
e daí a sua universalidade, por uma civilização fechada, racista e suprematista
como é o judaísmo.
O que nos tem sido apresentado pelos grandes
meios de manipulação são episódios da violência inerente a qualquer confronto
armado, com a particularidade da utilização de meios desproporcionados, da
impiedade e da ausência de limites, ou de misericórdia. Os autores do guião da
ação do Estado de Israel em Gaza e na Cisjordânia e os especialistas
contratados para a analisar pretendem inculcar a ideia de que a atual ação
militar contra as populações palestinianas faz parte do “direito de defesa de
Israel”, pelo que o mundo estaria perante um facto recorrente, apenas um pouco
mais sangrento, mas sem que nada de essencial tenha sido alterado. O discurso
dominante, mesmo quando especializado, encontra-se delimitado pela análise da
arte da guerra: aniquilação do inimigo através do genocídio, ou por uma
conjugação de massacre e sujeição dos vencidos aos princípios e leis dos
vencedores.
Podemos chocar-nos com o genocídio dos
palestinianos executado a frio e com justificações de aberrante hipocrisia em
nome dos interesses do Ocidente americano, mas do ponto de vista estratégico e
operacional, como referem os comentadores militares, a operação está a decorrer
muito bem e conforme o planeado. Nada de novo: Delenda
Carthago! — Cartago tem de ser destruída! — assim terminava
Catão os discursos fosse qual fosse o assunto. O mesmo afirmam Netanyahou e os
seus camisas negras em todas as ocasiões: Delenda o Hamas! — Delenda Gaza, a
Cisjordânia! Até surge nas notícias o picante de que os alvos são selecionados
pela Inteligência Artificial, o que, numa segunda leitura, reduz os pilotos dos
aviões, os artilheiros, os manipuladores de drones a imbecis que se limitam a
seguir a inteligência das máquinas. Mas como é em nome da promessa da posse da
Terra Prometida, tudo se desculpa e nenhum desses seres invocou problemas de
consciência.
Há, contudo, uma outra análise que deve (devia) ser feita e que remete para
a profundidade das raízes desta ação de Israel — da vingança histórica e
milenar que ela materializa contra o Ocidente. O Ocidente está a dar a
oportunidade de ouro para a realização do mais extraordinário ato de vingança
contra si próprio desde a instauração do cristianismo como religião do império
romano decretado no século IV por Constantino, dentro do princípio cujus regio, ejus regio — a religião do príncipe é a
religião do país.
Independentemente das convicções religiosas de
cada um é inegável a importância das religiões na organização das sociedades e
na vida dos seres humanos. Para criar instituições políticas, o primeiro
obstáculo é o de superar a desconfiança geral do grupo. Não se pode organizar
um sistema político estável se a população, ou pelo menos uma parte dela, não
aceita a autoridade de um chefe. A resposta mais eficaz a este desafio foi
concentrar a autoridade religiosa e a do chefe político e militar. Estabelecer
a religião como fonte da autoridade política. O primeiro registo desta ideia
parece ser o do faraó Akenaton (1350 a.C), que se declarou emissário de um
único Deus, Aten, a única ponte entre o humano e divino. A associação do poder
de base militar e religiosa teve consequências para a religião, que se tornou
parte da organização política.
A criação dos deuses e das religiões constituem
as mais importantes descobertas do ser humano, mais importantes que a
descoberta da roda, do fogo ou da escrita. O ser humano não quer apenas viver,
tem necessidade de dar sentido à vida. A religião é um dos espaços para dar
sentido à vida e os deuses são criações do homem, têm real existência. Quando
um piloto judeu larga uma bomba do seu avião sobre Gaza em nome do seu deus,
esse deus existe, mata e venceu o deus que não salvou os seus fiéis
palestinianos. O deus dos cruzados europeus que atacaram o Templo de Jerusalém
e mataram os que lá se encontravam a ponto de o sangue dar pelos jarretes dos
cavalos existia e venceu o deus que lá estava. Os deuses existem, têm criador
e, infelizmente, os criadores de deuses são por norma os mais ambiciosos e sem
escrúpulos dos homens, que os utilizam para lhes servirem de instrumento de
domínio.
A dimensão religiosa desta ação do Estado judaico
devia e deve estar no centro das análises, porque é ela que, em última
instância, determina o futuro de todos os envolvidos e, desde logo, do Ocidente
que fornece as armas e o apoio político e ideológico a quem se bate por um deus
que é o seu e que há dois mil anos foi derrotado pelo deus do Ocidente.
O Estado de Israel tem o judaísmo por
infraestrutura ideológica. Pelo seu lado, o Ocidente, a partir do édito de
Milão e da “conversão” de Constantino, validou o cristianismo como religião
oficial, colocando o judaísmo na situação de seita responsável pela morte e
sacrifício do novo Deus de Roma. Durante séculos, até ao nazismo, os judeus
foram tidos no imaginário ocidental como um povo-vítima, pacífico, perseguido,
estigmatizado, que se deixava sacrificar sem luta. O judaísmo era uma religião
de mansos que viviam em guetos e aí celebravam os seus rituais. O Ocidente
ignorou a violência genética do judaísmo e do seu deus, Javé. Não pareceu
surpreendido com o terrorismo que os judeus praticaram logo que tiveram a
oportunidade de reunirem uma massa critica adequada primeiro no protetorado
britânico da Palestina, que evoluiria para Estado de Israel sob os auspícios
das Nações Unidas, atribuindo as práticas dos seus grupos terroristas à
necessidade de defesa e ao seu direito de existência. Não era: o judaísmo é geneticamente violento, por ser
exclusivista, racista e negacionista do outro, por se assumir como a prova de
que é a ideologia de um povo eleito, superior.
O grande sofisma utilizado pela elite judaica no
coração do Ocidente para se confundir com ele e o tomar por dentro tem sido o
de que o cristianismo é uma “continuação” do judaísmo (uma justificação que
também serviria para o islamismo…) e o instrumento culminante dessa manobra de
continuidade do cristianismo a partir do judaísmo foi o Estado de Israel,
promovido pelo movimento sionista, aproveitando as condições do pós-Segunda
Guerra.
Na realidade, o cristianismo é uma nova religião que nasceu e se
desenvolveu em confronto direto e irredimível com o judaísmo. Durante dois mil
anos o convívio entre as duas religiões teve episódios de grande
conflitualidade — a Inquisição, os pogrom e o nazismo
— alternando com outros de coexistência mais ou menos tolerada segundo os
interesses do momento, em especial nos momentos de aperto financeiro dos
soberanos cristãos.
O facto de duas famílias judaicas dominarem desde
o século XVIII o sistema financeiro mundial, o coração do sistema capitalista,
as duas praças mundiais, os Rothschild em Londres (e também Frankfurt) e os
Rockfeller em Nova Iorque fez com que o judaísmo, enquanto formatador
civilizacional, aparelho ideológico e legitimador de comportamentos fosse
parasitando e metastesiando o corpo principal da civilização ocidental, tendo o
cristianismo como base dos seus princípios.
Segundo o Antigo Testamento da Bíblia, pelo qual
se regem os judeus, o pacto entre eles e Javé, o seu deus, teria começado com
Abraão, há cerca de 4 mil anos. Este foi chamado por Deus para deixar a cidade
de Ur, na Mesopotâmia e ir fundar uma nova nação numa terra desconhecida, a
Terra Prometida, que seria chamada de Canaã. O deus que apareceu a Abraão
rompia com a tradição politeísta dos gregos, e colocava-se na posição
omnipotente de exigir o que quisesse. No caso de Abraão, ordenou-lhe que
sacrificasse o seu filho Isaac como prova de fé, isto é, de sujeição.
O Javé do Antigo Testamento (o Pentateuco, para
os judeus) não tem semelhanças com o pai protetor que mais tarde o cristianismo
iria propagar como sendo o seu Deus. Javé é um deus brutal, parcial e
assassino, um deus de guerra, que seria conhecido como Javé Sabaoth, Deus dos
Exércitos. Manda pragas aos egípcios, mostra-se até arrependido da sua criação,
como quando ordenou a morte por afogamento de toda a humanidade através do
dilúvio, do qual só escapou a família de Noé e os animais que colocou na arca.
Javé, o deus dos judeus, está mais preocupado em ameaçar a raça humana para
que ela não se desvie das instruções que entregou a Moisés do que em criar
condições de paz e de harmonia, de felicidade e de justiça. Javé é
passionalmente partidário do seu povo eleito, os judeus, e tem pouca
misericórdia pelos não favoritos. É uma divindade tribal.
A narrativa de continuidade entre o judaísmo e o
cristianismo foi destruída por Paulo de Tarso, ao estabelecer que o cristão se
justificava pela fé e não pela obediência à lei judaica, nem à sua ascendência
judaica, que os gentios, os não judeus, se podiam converter, abrindo o
cristianismo a novos espaços. Paulo tirou Jesus Cristo da pequena gaiola de um
messias para o povo hebreu, ou de mais um profeta, transformando-o num salvador
de todos os povos. Javé, esse continuou ligado apenas ao povo hebreu, enquanto
Cristo ganhava um caráter universal. Javé continuou a ser o deus carrancudo dos
judeus e o cristianismo transmitiu a imagem de um deus bem mais amistoso que
Javé.
Na tradição judaica estava muito claro que o
homem devia temer a Deus acima de tudo. Com o cristianismo, a mensagem passa a
ser amar a Deus acima de tudo. A diferença entre o judaísmo e o cristianismo é
a mesma entre temer e amar. É esta escolha que está em causa com a ação de
Israel na Palestina e em que os dirigentes ocidentais estão a tomar o partido
do Deus do medo, defensor de um pequeno povo de eleitos contra a humanidade. O
“direito de Israel a defender-se” tem o sentido de direito divino a destruir ou
subjugar todos os que não são os eleitos, incluindo nós, os que lhe fornecemos
as armas e a complacência.
O que o Estado de Israel está a realizar perante o mundo e em nome do
Ocidente é a morte do Deus dos cristãos, do Deus que, apesar das violências
cometidas em seu nome, permitiu que surgisse um humanismo cristão, que produziu
um Santo Agostinho, um São Francisco, que permitiu a recuperação do conceito de
um deus moral, em oposição ao deus brutal.
A vitória nas guerras foi sempre a vitória dos
deuses dos vencedores. A vitória de Israel na Palestina é a vitória do deus dos
judeus sobre o deus dos muçulmanos, mas também sobre o deus dos cristãos. O
deus moral representado por Cristo podia oferecer uma via para que as
sociedades cooperassem, evitando ofender um poder superior atento ao seu
comportamento em relação aos demais. Javé, o deus dos judeus exclui o
compromisso. E essa exclusão é evidente no discurso dos dirigentes judaicos.
Mesmo para quem, como eu, entende a religião
apenas como uma dimensão simbólica do comportamento humano e a religiosidade
como um sistema produtor de normas e culturas inerentes a qualquer sociedade,
quer a religião, quer a religiosidade são fatores constitutivos e estruturantes
da vida humana. Não me é, pois, indiferente, muito pelo contrário, ser regido
pelas normas de Javé ou de Cristo, de ser regido pelo Velho Testamento, pelo
Alcorão ou pelo Novo Testamento. Não é a mesma coisa ser não crente numa divindade
numa civilização que tenha por deus Javé ou Alá, entre judeus e muçulmanos, ou
sê-lo numa civilização que tenha Cristo por referência.
Impressiona-me a ausência de pensamento no
interior do cristianismo sobre o conflito judaico-cristão, que coloca em causa
a nossa civilização. Preocupa-me que estejamos a ir atrás do canto das sereias
do conflito com os muçulmanos, encadeados que estamos pelo domínio dos poços de
petróleo do Médio Oriente e dos eixos de ataque à Rússia, a primeira barreira a
ser ultrapassada para os Estados Unidos enfrentarem a China. Entendo ser uma
cegueira perigosa e criminosa o Ocidente abdicar do seu Deus e dos seus valores,
trocando-o por Javé, o velho carrancudo, vingador e sem piedade.
Além dos palestinianos, é também o cristianismo que está debaixo de fogo
neste Natal na Palestina. Quem invoca um deus para justificar o genocídio na
Palestina não me merece respeito. Repugna-me a corrupção dos que traficam o seu
deus com eles. Dos católicos, dos anglicanos, dos luteranos, das igrejas
evangélicas, dos cardeais de Roma, dos televangelistas americanos, dos
vendedores de dízimo brasileiros nem uma palavra!
Para ser claro: à vingança dos judeus por dois
mil anos de humilhação pela derrota de Javé, os cristãos respondem agora com a
traição ao seu Deus. Falta-nos um Shakespeare!
(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 23/12/2023)
José
Teodoro Prata