quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Pelas brumas da Gardunha

 

O velho petrus


Ternura entre seres imperfeitos


Ave esculpida no granito


Fotos, legendas e título do Francisco Barroso

José Teodoro Prata

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Sobre a importância da Língua Portuguesa

Uma das coisas que me entristece muito é a dificuldade que tenho em manter uma conversa normal com os meus familiares que vivem no estrangeiro, principalmente os meus sobrinhos que já por lá nasceram. Os pais, por razões que percebo, deixaram-se levar pelo receio das mentalidades xenófobas dos países de “acolhimento”, que, por muito que disfarçassem, mais não cuidavam que da força dos braços dos emigrantes, ignorando (ridicularizando até) dimensões importantes da sua cultura. Foi o caso, por exemplo, da Língua Portuguesa, que quase desapareceu dos lares de muitas famílias que vivem lá fora.

Portugal poderia ter criado condições que evitassem esta situação, mas, mesmo sabendo que a Língua Portuguesa é um dos principais elos entre muitos milhões de pessoas, e que havia que cuidá-la, muito ficou por fazer.

Tenho andado a ler o livro de Seixas da Costa «Antes que me Esqueça», em que, para além da insinuação dos muitos almoços e jantares a que o Corpo Diplomático tem de assistir, aborda temas/episódios curiosos sobre as relações entre os diversos países e instituições.

Num dos textos, a que chamou “Demasiada memória” fala da sua missão em Angola na década de 1980: conta alguns problemas que existiam a propósito da liberdade de expressão na imprensa (sempre tão atual!), e termina a falar na importância da nossa Língua, comum a tanta gente. É este trecho que partilho com quem não conhece o livro:

«… À época, os editoriais do Jornal de Angola contra Portugal sucediam-se. A embaixada portuguesa em Luanda optara por não reagir, de modo a que essa catarse mediática não fosse estimulada por um contraditório que se via como de escassa eficácia. Por isso líamos matinalmente essas colunas agressivas e através delas íamos apenas medindo a febre de acrimónia contra Lisboa, esperando que o tempo a atenuasse, como de facto acabou por suceder.

Um dia vi publicado um texto de rara violência, já não sei bem a propósito de quê. Nele se referia que Portugal, como «o miserável país das caravelas decrépitas» era um colonizador frustrado, porque, contrariamente a outros, não deixara em Angola nenhuma herança positiva.

Sem consultar o meu embaixador, tomei a iniciativa de telefonar ao autor do texto. Era um jornalista e escritor de algum mérito, nascido em Portugal (…).

Disse-lhe que tinha lido o seu texto com interesse e queria felicitá-lo pelo mesmo. Do lado de lá da linha a resposta foi a esperada: «Você está a gozar comigo?» Respondi-lhe que não estava e que o artigo, cuja liberdade de apreciação sobre Portugal eu não contestava, comportava, contudo, uma evidente contradição de que ele talvez não se tivesse dado conta, mas que era a única razão do meu telefonema. O meu interlocutor estava cada vez mais perplexo. Até pela deliberada cordialidade que atravessava o meu discurso. Pelo que decidi explicar: «O seu artigo, independentemente do conteúdo agressivo contra o meu país, (…), está extremamente bem escrito e exprime, de forma brilhante, uma leitura crítica do comportamento do meu governo. Embora eu não concorde rigorosamente em nada com aquilo que escreveu, quero dizer-lhe que você está no pleníssimo direito de exprimir aquilo que pensa, embora eu imagino o que “por aí iria”se lá em Lisboa, o Diário de Notícias (…) se abalançasse a escrever uma coisa de natureza similar sobre o governo angolano, Mas não é essa hoje a minha questão. O que eu queria sublinha é que o texto está redigido num português exemplar, numa escrita de grande elegância estilística. Ora, você, diz nesse mesmo texto que nada ficou em Angola de herança lusitana! E essa língua em que você escreve tão bem? É uma herança de quem? Ou será que você é capaz de escrever um editorial em quimbundo, em umbundo ou em chócue, que qualquer angolano que saiba ler possa perceber? E em que língua se publica o Jornal de Angola? Que outra língua une hoje politicamente Angola? Esta é ou não é uma herança do tempo colonial?

(…)»

Claro que este texto pode levantar algumas questões relacionadas com a colonização ou as relações bilaterais, mesmo depois da independência; mas a razão por que o trouxe foi por comungar da ideia que nos dá de que, o maior legado que deixámos pelos lugares onde andámos, foi a Língua Portuguesa.

Quem é que, andando por fora do país, não vira logo a cabeça se ouve alguém a falar a nossa língua? É uma sensação estranha, mas de conforto…

M. L. Ferreira

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 Luís Batista

 

Luís Batista nasceu em São Vicente da Beira, no dia 26 de julho de 1893. Era filho de João Batista, ganhão, e de Maria de São João, moradores na rua da Cruz.

Assentou praça no dia 9 de julho de 1913 e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21, em 13 de janeiro de 1914. Era na altura analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro. Após ter concluído a instrução recruta, foi licenciado e regressou a São Vicente.

Voltou a ser mobilizado em 1916, para fazer parte do CEP, e embarcou para França, no dia 21 de janeiro de 1817, integrando a 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, como soldado com o número 21 e a placa de identidade n.º 9123. No mesmo barco terá seguido também o seu irmão António Batista.

Sobre o tempo em que permaneceu em França, o seu boletim individual de militar do CEP refere o seguinte:

a)   Punido em 11 de outubro de 1917, com dois dias de detenção, por ter             comparecido na formatura com a barba por fazer, apesar das recomendações que lhe tinham sido feitas;

b)   Punido em 14 de outubro, com 10 dias de detenção, porque, fazendo parte da guarda ao Chateau de St. André, manifestou indícios de embriaguez, pelo que foi mandado recolher ao acantonamento;

c)    Punido no dia 6 de dezembro de 1918, com 5 dias de detenção, por ter saído do distrito da guarda ao acantonamento sem autorização;

d)   Recolheu ao Depósito Disciplinar 1, em 23 de janeiro de 1919;

e)   Embarcou para Portugal, no dia 25 de fevereiro de 1919, chegando a Lisboa no dia 28 do mesmo mês.




Família:

Antes de partir para França, Luís Batista já se tinha casado com Joana Ambrósia, na Conservatória do Registo Civil de São Vicente da Beira, a 25 de setembro de 1916. Tiveram 3 filhas, uma das quais faleceu com 4 anos de idade. Criaram:

1.    Maria da Conceição, que casou com João Maria Madeira e tiveram 9 filhos;

2.    Maria Zara, que morreu solteira e sem descendência.


Quando regressou a Portugal, como grande número dos militares que estiveram em França, Luis Batista apresentava algumas sequelas do stress e do efeito dos gases a que esteve sujeito durante a guerra. Não falava muito desses tempos; apenas, de vez em quando, dos amores que lá teve…

Um dos companheiros de guerra contava que uma vez, perto do Natal, saiu do acantonamento e andou por lá algum tempo. Quando regressou trazia alguns ovos e um pouco de farinha. Ficaram todos contentes porque, assim, puderam fazer uma espécie de filhós para lembrar o Natal da terra e matar algumas saudades.

Apesar das dificuldades, teve sempre um trabalho regular que lhe garantiu o sustento da família. Foi ganhão, como o pai, e fez todo o tipo de trabalhos agrícolas, como jornaleiro, durante muito tempo ao serviço da família Remualdo, nas Quintas.

Na terra, todos lhe chamavam Luís Gonzaga e ainda hoje é lembrado por esse nome. Nem a família mais próxima sabe porquê, mas é provável que fosse porque era esse o nome do padrinho de batismo (Luís Gonzaga de Jesus Pereira, que na altura era solteiro e estudante). Pode ser também porque era assim que se chamava o capitão da sua Companhia (Luís de Sousa Gonzaga).

Luís Batista faleceu no dia 20 de Março de 1979; tinha 85 anos.



(Pesquisa feita com a colaboração dos netos António Madeira e Isilda Madeira)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Boletim agrícola

Enxertias

Encontrei este quadro com o calendário das enxertias e acho útil partilhá-lo convosco. Apesar de cada região ter os seus costumes (neste caso, o seu calendário de enxertia – por exemplo nós fazemos pouca enxertia no tempo quente), o quadro sintetiza informação importante. Por mim, apenas divirjo na época da enxertia da videira, que sempre fiz no inverno, antes da rebentação.

José Teodoro Prata

domingo, 7 de janeiro de 2024

De volta ao Pelourinho

Aquele nº 2 do Pelourinho, de que falei há tempos, não trazia grandes notícias sobre o Casal da Fraga. Dizia apenas que estavam por cá os Excelentíssimos Zola Júlio Trindade e Cunha e família (?) e Manuel Nicolau Craveiro e esposa. 

Mas em agosto de 1966, na comemoração do sexto aniversário, trazia esta bela fotografia: 

Possivelmente era esta a equipa dos Novatos que, em setembro de 1960, ganharam aos da Partida pela primeira vez.  Valentes!   

Não os reconheço todos, mas parece-me que a maioria era do Casal.

O Chico da Azenha, não sendo dos mais altos, diz que era um grande guarda-redes. Morreu há dias, em França, onde, provavelmente, ainda terá feito parte de alguma equipa de futebol. 

M.L. Ferreira 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

O nosso falar: pechorro

 Ando a ler o livro Os sertões, do brasileiro Euclides da Cunha (1866-1909), que fez a reportagem jornalística da Guerra dos Canudos (1896-1897) e posteriormente realizou um estudo sobre os sertões do Brasil (este livro), nas vertentes geográfica, humana e político-militar (neste caso, sobre a guerra acima referida).

O arraial dos Canudos situava-se no interior do estado da Baía e aí se concentraram milhares de sertanejos em torno de um louco (António Conselheiro, 1830-1897), a viver à margem da lei e da Administração Central. Esta guerra foi uma catástrofe humana, pois morreram cerca de 20 mil membros daquela comunidade sócio religiosa e 5 mil militares.

Sobre o assunto, foi realizado um filme (A Guerra dos Canudos) e Mário Vargas Llosa escreveu o romance A Guerra do Fim do Mundo.

 

Ora, à página 119, o autor escreveu que as pétalas das flores recém-abertas «…caem, mortas, sobre a terra imóvel sob o espasmo enervante de um bochorno de 35º, à sombra.»

As campainhas tocaram na minha cabeça quando li a palavra bochorno. Lembrei-me da expressão dos meus pais, quando estava um daqueles calores em que até o ar treme: Hoje está um pechorro! Ou seria pochorro ou bochorro? Ou mais certamente p´chorro ou b´chorro? Eu(tu), os meus(vossos) pais e as gerações anteriores fomos alterando oralmente a palavra bochorno, que existe de facto e significa muito quente.

José Teodoro Prata 

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

A derrota do Deus do Ocidente

O General Carlos Matos Gomes escreveu há dias um artigo que vem na linha das minhas reflexões/preocupações atuais. Sem concordar absolutamente com ele em tudo o que escreve, acho importante partilhá-lo convosco. Tenho hesitado em fazê-lo, mas hoje ouvi na comunicação social a referência a um ataque verbal de Donald Trump à Igreja Católica nos EUA e decidi-me. Também na Palestina as igrejas cristãs têm sido alvo de ataques militares de Israel, de que resultaram vários mortos (sem esquecer que existe uma minoria de cristãos na Palestina, que vive, luta e morre lado a lado com os muçulmanos). Numa das suas últimas mensagens, o Papa fez referência  esse facto, embora muito indiretametne.

Segundo muitos especialistas em religião, a piedade foi a maior novidade, a ideia mais revolucionária que Jesus trouxe ao Mundo. Na Palestina e um pouco por todo o Mundio, é sobretudo a piedade que está a ser posta de parte, como um empecilho a remover.

A ação do Estado Judaico na Palestina, o genocídio em Gaza e a destruição da Cisjordânia constitui um ato que os seus autores pretendem que seja o ato final do direito de origem divina de Povo Eleito à Terra Prometida, a provocar um Armagedeão em termos do Antigo Testamento bíblico. Os dirigentes judaicos justificaram e justificam com o Antigo Testamento da Bíblia e com o seu deus Javé a ocupação manu militari de mais este território da Terra Prometida a Abraão há quatro mil anos. Sem a dimensão religiosa não é possível entender a política do Estado de Israel, o discurso e o comportamento dos seus dirigentes e a atitude de arrogância que revelam perante aa comunidade internacional (gentios) e até contra os seus protetores americanos.

No entanto, no Ocidente cristão esta guerra santa, equivalente a uma cruzada ou uma jhiad, está a ser quase exclusivamente analisada sob o ponto de vista técnico, como um historicamente vulgar conflito tendo por base os interesses de grupos políticos, económicos e sociais, interesses estratégicos de poder global envolvendo superpotências e potências regionais. Como mais uma “guerra” das muitas em que o Ocidente se tem envolvido desde que se reconstituiu após a queda do império romano, tendo o cristianismo como base ideológica e civilizacional.

No entanto esta é uma guerra de rutura civilizacional, que coloca em causa as raízes mais profundas da nossa civilização, que promove a substituição dos valores do cristianismo e do Novo Testamento pelo judaísmo e pelo Velho Testamento, o retrocesso de uma civilização de abertura, que o cristianismo foi e daí a sua universalidade, por uma civilização fechada, racista e suprematista como é o judaísmo.

O que nos tem sido apresentado pelos grandes meios de manipulação são episódios da violência inerente a qualquer confronto armado, com a particularidade da utilização de meios desproporcionados, da impiedade e da ausência de limites, ou de misericórdia. Os autores do guião da ação do Estado de Israel em Gaza e na Cisjordânia e os especialistas contratados para a analisar pretendem inculcar a ideia de que a atual ação militar contra as populações palestinianas faz parte do “direito de defesa de Israel”, pelo que o mundo estaria perante um facto recorrente, apenas um pouco mais sangrento, mas sem que nada de essencial tenha sido alterado. O discurso dominante, mesmo quando especializado, encontra-se delimitado pela análise da arte da guerra: aniquilação do inimigo através do genocídio, ou por uma conjugação de massacre e sujeição dos vencidos aos princípios e leis dos vencedores.

Podemos chocar-nos com o genocídio dos palestinianos executado a frio e com justificações de aberrante hipocrisia em nome dos interesses do Ocidente americano, mas do ponto de vista estratégico e operacional, como referem os comentadores militares, a operação está a decorrer muito bem e conforme o planeado. Nada de novo: Delenda Carthago! — Cartago tem de ser destruída! — assim terminava Catão os discursos fosse qual fosse o assunto. O mesmo afirmam Netanyahou e os seus camisas negras em todas as ocasiões: Delenda o Hamas! — Delenda Gaza, a Cisjordânia! Até surge nas notícias o picante de que os alvos são selecionados pela Inteligência Artificial, o que, numa segunda leitura, reduz os pilotos dos aviões, os artilheiros, os manipuladores de drones a imbecis que se limitam a seguir a inteligência das máquinas. Mas como é em nome da promessa da posse da Terra Prometida, tudo se desculpa e nenhum desses seres invocou problemas de consciência.

Há, contudo, uma outra análise que deve (devia) ser feita e que remete para a profundidade das raízes desta ação de Israel — da vingança histórica e milenar que ela materializa contra o Ocidente. O Ocidente está a dar a oportunidade de ouro para a realização do mais extraordinário ato de vingança contra si próprio desde a instauração do cristianismo como religião do império romano decretado no século IV por Constantino, dentro do princípio cujus regio, ejus regio — a religião do príncipe é a religião do país.

Independentemente das convicções religiosas de cada um é inegável a importância das religiões na organização das sociedades e na vida dos seres humanos. Para criar instituições políticas, o primeiro obstáculo é o de superar a desconfiança geral do grupo. Não se pode organizar um sistema político estável se a população, ou pelo menos uma parte dela, não aceita a autoridade de um chefe. A resposta mais eficaz a este desafio foi concentrar a autoridade religiosa e a do chefe político e militar. Estabelecer a religião como fonte da autoridade política. O primeiro registo desta ideia parece ser o do faraó Akenaton (1350 a.C), que se declarou emissário de um único Deus, Aten, a única ponte entre o humano e divino. A associação do poder de base militar e religiosa teve consequências para a religião, que se tornou parte da organização política.

A criação dos deuses e das religiões constituem as mais importantes descobertas do ser humano, mais importantes que a descoberta da roda, do fogo ou da escrita. O ser humano não quer apenas viver, tem necessidade de dar sentido à vida. A religião é um dos espaços para dar sentido à vida e os deuses são criações do homem, têm real existência. Quando um piloto judeu larga uma bomba do seu avião sobre Gaza em nome do seu deus, esse deus existe, mata e venceu o deus que não salvou os seus fiéis palestinianos. O deus dos cruzados europeus que atacaram o Templo de Jerusalém e mataram os que lá se encontravam a ponto de o sangue dar pelos jarretes dos cavalos existia e venceu o deus que lá estava. Os deuses existem, têm criador e, infelizmente, os criadores de deuses são por norma os mais ambiciosos e sem escrúpulos dos homens, que os utilizam para lhes servirem de instrumento de domínio.

A dimensão religiosa desta ação do Estado judaico devia e deve estar no centro das análises, porque é ela que, em última instância, determina o futuro de todos os envolvidos e, desde logo, do Ocidente que fornece as armas e o apoio político e ideológico a quem se bate por um deus que é o seu e que há dois mil anos foi derrotado pelo deus do Ocidente.

O Estado de Israel tem o judaísmo por infraestrutura ideológica. Pelo seu lado, o Ocidente, a partir do édito de Milão e da “conversão” de Constantino, validou o cristianismo como religião oficial, colocando o judaísmo na situação de seita responsável pela morte e sacrifício do novo Deus de Roma. Durante séculos, até ao nazismo, os judeus foram tidos no imaginário ocidental como um povo-vítima, pacífico, perseguido, estigmatizado, que se deixava sacrificar sem luta. O judaísmo era uma religião de mansos que viviam em guetos e aí celebravam os seus rituais. O Ocidente ignorou a violência genética do judaísmo e do seu deus, Javé. Não pareceu surpreendido com o terrorismo que os judeus praticaram logo que tiveram a oportunidade de reunirem uma massa critica adequada primeiro no protetorado britânico da Palestina, que evoluiria para Estado de Israel sob os auspícios das Nações Unidas, atribuindo as práticas dos seus grupos terroristas à necessidade de defesa e ao seu direito de existência. Não era: o judaísmo é geneticamente violento, por ser exclusivista, racista e negacionista do outro, por se assumir como a prova de que é a ideologia de um povo eleito, superior.

O grande sofisma utilizado pela elite judaica no coração do Ocidente para se confundir com ele e o tomar por dentro tem sido o de que o cristianismo é uma “continuação” do judaísmo (uma justificação que também serviria para o islamismo…) e o instrumento culminante dessa manobra de continuidade do cristianismo a partir do judaísmo foi o Estado de Israel, promovido pelo movimento sionista, aproveitando as condições do pós-Segunda Guerra.

Na realidade, o cristianismo é uma nova religião que nasceu e se desenvolveu em confronto direto e irredimível com o judaísmo. Durante dois mil anos o convívio entre as duas religiões teve episódios de grande conflitualidade — a Inquisição, os pogrom e o nazismo — alternando com outros de coexistência mais ou menos tolerada segundo os interesses do momento, em especial nos momentos de aperto financeiro dos soberanos cristãos.

O facto de duas famílias judaicas dominarem desde o século XVIII o sistema financeiro mundial, o coração do sistema capitalista, as duas praças mundiais, os Rothschild em Londres (e também Frankfurt) e os Rockfeller em Nova Iorque fez com que o judaísmo, enquanto formatador civilizacional, aparelho ideológico e legitimador de comportamentos fosse parasitando e metastesiando o corpo principal da civilização ocidental, tendo o cristianismo como base dos seus princípios.

Segundo o Antigo Testamento da Bíblia, pelo qual se regem os judeus, o pacto entre eles e Javé, o seu deus, teria começado com Abraão, há cerca de 4 mil anos. Este foi chamado por Deus para deixar a cidade de Ur, na Mesopotâmia e ir fundar uma nova nação numa terra desconhecida, a Terra Prometida, que seria chamada de Canaã. O deus que apareceu a Abraão rompia com a tradição politeísta dos gregos, e colocava-se na posição omnipotente de exigir o que quisesse. No caso de Abraão, ordenou-lhe que sacrificasse o seu filho Isaac como prova de fé, isto é, de sujeição.

O Javé do Antigo Testamento (o Pentateuco, para os judeus) não tem semelhanças com o pai protetor que mais tarde o cristianismo iria propagar como sendo o seu Deus. Javé é um deus brutal, parcial e assassino, um deus de guerra, que seria conhecido como Javé Sabaoth, Deus dos Exércitos. Manda pragas aos egípcios, mostra-se até arrependido da sua criação, como quando ordenou a morte por afogamento de toda a humanidade através do dilúvio, do qual só escapou a família de Noé e os animais que colocou na arca.

Javé, o deus dos judeus, está mais preocupado em ameaçar a raça humana para que ela não se desvie das instruções que entregou a Moisés do que em criar condições de paz e de harmonia, de felicidade e de justiça. Javé é passionalmente partidário do seu povo eleito, os judeus, e tem pouca misericórdia pelos não favoritos. É uma divindade tribal.

A narrativa de continuidade entre o judaísmo e o cristianismo foi destruída por Paulo de Tarso, ao estabelecer que o cristão se justificava pela fé e não pela obediência à lei judaica, nem à sua ascendência judaica, que os gentios, os não judeus, se podiam converter, abrindo o cristianismo a novos espaços. Paulo tirou Jesus Cristo da pequena gaiola de um messias para o povo hebreu, ou de mais um profeta, transformando-o num salvador de todos os povos. Javé, esse continuou ligado apenas ao povo hebreu, enquanto Cristo ganhava um caráter universal. Javé continuou a ser o deus carrancudo dos judeus e o cristianismo transmitiu a imagem de um deus bem mais amistoso que Javé.

Na tradição judaica estava muito claro que o homem devia temer a Deus acima de tudo. Com o cristianismo, a mensagem passa a ser amar a Deus acima de tudo. A diferença entre o judaísmo e o cristianismo é a mesma entre temer e amar. É esta escolha que está em causa com a ação de Israel na Palestina e em que os dirigentes ocidentais estão a tomar o partido do Deus do medo, defensor de um pequeno povo de eleitos contra a humanidade. O “direito de Israel a defender-se” tem o sentido de direito divino a destruir ou subjugar todos os que não são os eleitos, incluindo nós, os que lhe fornecemos as armas e a complacência.

O que o Estado de Israel está a realizar perante o mundo e em nome do Ocidente é a morte do Deus dos cristãos, do Deus que, apesar das violências cometidas em seu nome, permitiu que surgisse um humanismo cristão, que produziu um Santo Agostinho, um São Francisco, que permitiu a recuperação do conceito de um deus moral, em oposição ao deus brutal.

A vitória nas guerras foi sempre a vitória dos deuses dos vencedores. A vitória de Israel na Palestina é a vitória do deus dos judeus sobre o deus dos muçulmanos, mas também sobre o deus dos cristãos. O deus moral representado por Cristo podia oferecer uma via para que as sociedades cooperassem, evitando ofender um poder superior atento ao seu comportamento em relação aos demais. Javé, o deus dos judeus exclui o compromisso. E essa exclusão é evidente no discurso dos dirigentes judaicos.

Mesmo para quem, como eu, entende a religião apenas como uma dimensão simbólica do comportamento humano e a religiosidade como um sistema produtor de normas e culturas inerentes a qualquer sociedade, quer a religião, quer a religiosidade são fatores constitutivos e estruturantes da vida humana. Não me é, pois, indiferente, muito pelo contrário, ser regido pelas normas de Javé ou de Cristo, de ser regido pelo Velho Testamento, pelo Alcorão ou pelo Novo Testamento. Não é a mesma coisa ser não crente numa divindade numa civilização que tenha por deus Javé ou Alá, entre judeus e muçulmanos, ou sê-lo numa civilização que tenha Cristo por referência.

Impressiona-me a ausência de pensamento no interior do cristianismo sobre o conflito judaico-cristão, que coloca em causa a nossa civilização. Preocupa-me que estejamos a ir atrás do canto das sereias do conflito com os muçulmanos, encadeados que estamos pelo domínio dos poços de petróleo do Médio Oriente e dos eixos de ataque à Rússia, a primeira barreira a ser ultrapassada para os Estados Unidos enfrentarem a China. Entendo ser uma cegueira perigosa e criminosa o Ocidente abdicar do seu Deus e dos seus valores, trocando-o por Javé, o velho carrancudo, vingador e sem piedade.

Além dos palestinianos, é também o cristianismo que está debaixo de fogo neste Natal na Palestina. Quem invoca um deus para justificar o genocídio na Palestina não me merece respeito. Repugna-me a corrupção dos que traficam o seu deus com eles. Dos católicos, dos anglicanos, dos luteranos, das igrejas evangélicas, dos cardeais de Roma, dos televangelistas americanos, dos vendedores de dízimo brasileiros nem uma palavra!

Para ser claro: à vingança dos judeus por dois mil anos de humilhação pela derrota de Javé, os cristãos respondem agora com a traição ao seu Deus. Falta-nos um Shakespeare!

(Carlos Matos Gomes, in Medium.com, 23/12/2023)

José Teodoro Prata