segunda-feira, 21 de novembro de 2016

D. João de Deus Ramalho


Nasceu em 8-1-1890, em São Vicente da Beira, sendo filho de João José Ramalho e de Antónia do Carmo Ramalho. Ingressou nos jesuítas a 7-9-1906, no Colégio do Barro, Lisboa; em 1910, foi preso em Caxias com outros jesuítas; dali seguiu para Gibraltar e depois para Exaten, no Holanda, e a seguir para a ilha de Jersey, continuando sempre a estudar. No Hospital dos Irmãos Hospitaleiros de São João de Deus de Paris, fez 6 operações quase seguidas devido à intoxificação na masmorra de Caxias; seu irmão Inácio, também jesuíta, fez 14 e morreu.
De Paris passou a Davos, na Suíça, a Bolengo, na Itália e depois a Genebra, onde tirou um curso de enfermagem; depois, a Turim, ao Colégio de Placeres, em Espanha, a La Guardia (1916-1917), a Ernani, perto de San Sebastian e a Oña, onde se ordenou a 30-7-1921. A 14-12-1923, embarcou em Marselha para a China, aportando a Hong Kong, a 17-1-1924, e a Shiu-Hing, a 22 desse mês. Em 1926, foi colocado como missionário no distrito de Shui-Hang, onde trabalhou até à sua elevação ao episcopado. Em Janeiro de 1925, fundou a revista mensal “Ecos da Missão de Shiu-Hing” que durou até Julho de 1946 e onde publicou interessantes trabalhos sobre os antigos jesuítas na China.
A 13-6-1940, foi nomeado superior e Vigário Geral da Missão de Shiu-Hing e, a 26-9-1942, bispo de Macau, sendo sagrado em Shui-Hang, a 6-11-1942, dia em que tomou posse da diocese por procuração. Chegou a Macau, a 23-2-1943.

Obras

Comprou o edifício da Escola Normal do Colégio de S. José. Acolheu em Macau todas as Ordens Religiosas que aqui se vieram refugiar durante e após a guerra civil na China. Os padres de PIME (Missões Estrangeiras de Milão) instalaram-se no Seminário e em São Agostinho, ficando encarregados desta igreja, que serviu de paróquia aos refugiados de Hong Kong; os jesuítas da Província Irlandesa de Hong Kong da Companhia de Jesus instalaram-se na Vila Flor e no Colégio de S. Luís Gonzaga, fundado por eles a 4-1-1943, para a educação dos refugiados; as irmãs de São Paulo de Chartres abriram na Penha, em Janeiro de 1950, um pensionato para as crianças de menos de 4 anos; os Maristas alojaram-se em 1950 com os seus alunos na Casa de Campo do Seminário na Ilha Verde; os Franciscanos, em 1949, na Vila Flora; os Salvatorianos, na Estrada da Vitória; os Carmelitas de Pequim, a 21-11-1948, no Seminário de S. José; os Lazaristas no Orfanato da Imaculada Conceição; os Redentoristas, em S. Agostinho; as Irmãs do Precioso Sangue, no n. º 3 da R. da Praia Grande. D. João Ramalho construiu em 1954 o externato, a sala de estudo e o teatro do Seminário e restaurou a igreja em 1953. Resignou em 1954 e retirou-se para Portugal. Morreu em Vilar do Paraíso a 26-2-1958.



Estátua de Nossa Sra. de Fátima no antigo destacamento militar de Mong Há.
“Desde o dia 13 de Novembro está exposta à adoração dos fiéis, no Aquartelamento de Mong Há, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, que foi confiada pelo Bispo de Leiria ao Destacamento Expedicionário quando da partida da Força Expedicionária para Macau. Cavada na rocha, uma gruta de aspecto propositadamente rude, concebida pelo talento artístico de Osseo Acconci, serve como de engaste para um pequeno retábulo, donde emerge a Imagem na sua esplêndida beleza. Uma pequena grade de bronze, a meia altura, e alguns lavrados junto ao tecto, onde se distingue o emblema da Artilharia, dão com a sua singeleza um timbre branco de boas-vindas a quem se aproxima. Num dístico à porta lê-se: "Portugal, terra de Fé" e, à esquerda, um lampadário sempre acesso que foi oferecido pelo Bispo de Macau, D. João de Deus Ramalho, simboliza a crença viva de quantos militares vivem naquele quartel, onde se encontram quatro unidades expedicionárias de Artilharia e Infantaria. A inauguração da gruta que se deu a 13 de Novembro, teve a assistência de Governo, das restantes autoridades e de todas as pessoas qualificadas da Colónia além de muito povo.
in revista Mosaico em 1950

Em:
Nota: O meu Avô Jaime Craveiro era primo em 4.º grau de Dom João de Deus Ramalho.


Jaime Gama

sábado, 19 de novembro de 2016

A infância

Acorda com a voz da mãe a chamá-la e levanta-se rapidamente. Agora a vida é diferente, tem outras responsabilidades. Lava-se, veste-se e senta-se à mesa grande de madeira, que está encostada à parede de taipa que divide a sala e os quartos da cozinha. Come as migas de pão com leite e café que a mãe lhe preparou numa malga.
Pega na sacola de ganga que a mãe fez para o irmão: tinha uma alça comprida, à rapaz, que a mãe cortou e da qual fez duas pequenas, à menina. Lá dentro, leva uma pedra e um ponteiro. Por agora é suficiente. Lápis e cadernos só mais tarde.
Começa a descer a quelha. A meio, suspende a descida. Avistam-se os telhados das casas da vila e a torre da igreja, onde o sino toca as horas e outros acontecimentos do dia. É para ali que vai, e, sente-se importante com esta nova vida. Chega ao cimo de vila e desce as ruas com chão de terra batida e com as casinhas pequenas de pedra muito escuras. Na praça, as andorinhas voam em todas as  direções e muitas já se vão alinhando nos fios dos telefones.
Continua pelas ruelas até à escola. Como é grande e bonita! Entra por um pequeno portão. O espaço exterior é dividido por um muro de granito que separa as meninas dos meninos, assim como o edifício da escola: do lado direito os meninos e do esquerdo as meninas. A sua sala é no piso de cima e tem que subir uma escadaria larga, com um corrimão. Que sorte! É uma correria escada acima e abaixo, ao toque da campainha.
Adora a hora do recreio: as corridas, as brincadeiras e os jogos com as amiguinhas. Num saltinho, corre à padaria da Senhê Céu. Ela é muito simpática e bonita, e, dá-lhe um papo-seco quentinho, com duas maminhas nas pontas. Que bem que lhe sabe!
Na sala de aula, a professora Nazaré vai escrevendo no quadro preto enorme, que está na parede. Por cima, duas fotos enormes de homens com um rosto sisudo e, ao centro, uma cruz com Jesus Cristo. Os dias vão passando: como é bom aprender! Adora quando é dia de prova escrita pois pode escrever com uma esferográfica naquelas folhas enormes e com muitas linhas. E não se pode enganar nem dar erros, para ficar tudo bonito!
Com o passar do tempo a responsabilidade aumenta: há que fazer bem os problemas de matemática. A professora tem uma régua grande, e, a cada erro, leva três reguadas. Ai! Ai! Já começa a esfregar a mão no vestido de lã: assim quente não dói tanto. Depois da reguada, para aliviar a dor, passa a mão na chapa metálica fria do suporte da mala.
Também há o dia das vacinas: vem a enfermeira, a menina Isaura. Ela trabalha no hospital da vila, onde também dá consultas o Dr. Alves, o médico, que também mora na vila. A menina Isaura sabe muito bem dar as injeções: só se sente a palmada.
Então, as meninas fazem uma fila sob o olhar vigilante da menina Ilda e da Senhê Zézita. As vacinas que custam mais são aquelas em que rasgam a pele com um aparo até fazer uma estrelinha. Doem mais, mas tem que aguentar senão as outras riem-se.
À hora do almoço, vai à cantina, que é por detrás da igreja. Desce um degrau: de um lado e do outro há várias mesas compridas de madeira com bancos corridos. Antes de comer vai para uma fila de crianças, que esperam para tomar a colher de óleo de fígado de bacalhau. Todos fazem caretas e riem. "Há por aí um gomito de tangerina?" É para tirar o mau gosto que fica na boca. Quem tem divide com as outras. Comem uma malga de sopa acompanhada de pão; outras vezes é uma malga de leite, feito de leite em pó.
Antes de regressar a casa ainda se atreve a jogar ao paspelho com as amigas, no largo da fonte velha. Mas não pode demorar-se, senão a mãe vai ralhar.
Sobe a quelha e, por vezes, vira-se para trás com medo, não vá algum lobo, uma bruxa ou a má-hora a segui-la, resultado de conversas ouvidas aos adultos, que a reportam para um mundo imaginário.
Chega a casa e a mãe já não está nada contente, pois há tarefas para fazer. Pega outra vez na sacola e conduz a cabrita até à barreira: caminha à sua frente, sempre a mordiscar o mato nos rebentos mais tenrinhos. Ao fundo avista-se o lameiro verdinho e a reluzir de água cristalina. Há roupa estendida sobre a relva, a corar. A roupa é lavada no ribeiro que corre abundantemente sobre as lajes de granito. Por vezes acompanha a mãe e as irmãs na lavagem da roupa. Aproveita ainda para chapinhar com as irmãs naquele caudal abundante, onde crescem plantinhas com flores lindas, amarelas e azuis, e onde veem as libelinhas, os peixes cabeçudos e as freirinhas. Mais abaixo, o caudal precipita-se pelas pedras muito inclinadas, formando uma grande cascata. Quando o caudal baixa e as pedras ficam a descoberto, as mesmas servem de escorrega. Então, a criançada é um ver se te avias, a escorregar pedra abaixo uns atrás dos outros, e aquele lugar enche-se de vida com as suas gargalhadas.
A cabrita lá continua, comendo as ervas tenrinhas pela regueira adiante, que leva a água da regadia até às Lages e às Tapadas de Baixo. Atravessa o ribeiro para o outro lado da barreira e sobe à pessera grande, que tem muitas saliências e para onde vai brincar às vezes com as irmãs. Tem uma saliência tão grande que até dá para se abrigarem da chuva. Senta-se lá e faz os trabalhos de casa. A cabrita continua a remoer, com os olhos por vezes postos na dona.
O sol começa a declinar e a cabrita inicia o percurso de regresso, lentamente, ainda mordiscando aqui e ali. A barriga já vai redondinha e as tetas tesas de leite. A cabrita dirige-se para a loja. Vai buscar a cafeteira para a ordenhar e enche-a de leitinho morno a espumar. Está a ficar fresco e a chaminé já fumega: a mãe está a preparar o jantar.
Corre a buscar a sua bola saltitona e vai para a quelha. Atira-a contra a parede da casa, apanha-a no ar e vai saltitando e cantarolando: "Ao ar, sem lugar, sem mexer, sem me rir, sem falar, uma mão, à outra, um pé, ao outro, à frente, atrás, cruzar e bailar".
A mãe chama todos os rebentos para dentro. Sentam-se à volta do lume com o prato do jantar ao colo. A seguir todos rezam o terço com os olhos postos no braseiro. Vai ao balcão e espreita a rua: a noite está fria e escura como breu. Olha o céu, cheio de estrelinhas a cintilar e volta para dentro. “A sua bênção mãe.” A mãe estende-lhe a mão e sorri. “Que Deus te abençoe e faça de ti uma santa!” Depois vem o sono reparador, aconchegada na cama com as suas irmãs.


T.T.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Ir à marouva

Andávamos de noite e éramos sempre uns poucos, que enquanto uns trepavam às árvores, os outros ficavam à espreita, a ver se lá vinha a Guarda ou o dono.
 Uma vez, já rente ao sol-posto, era eu, o Chico Vaca, o Albertino da Lusitana, o Jorge Gato e o Justino Escavaterra. Estávamos todos sentados na Fonte Velha à espera das cachopas que vinham à fonte, e às duas por três diz o Justino assim:
- O meu avô é que lá tem umas laranjas boas! São doces que nem mel! Mas onde elas estão ninguém lá chega, que a laranjeira está mesmo defronte da janela da cozinha.
Ninguém lá chega? Ai não que não chega! Olha para quem ele o estava a dizer! Fizemos logo sinal uns aos outros e assim que ele se levantou para se ir embora, levantámo-nos logo todos também e abalámos cada um para seu lado, como se fôssemos para casa. Não tardou muito, estávamos outra vez todos juntos, na Estrada Nova, ao pé da quelha. Todos menos ele, que não deu conta de nada.
Saltámos a parede do Pomar, que era onde havia a tal laranjeira, espreitámos pela janela e vimos que a candeia ainda estava acesa e o ti Tomás e a mulher ainda levantados, mas cada um com a cabeça já a cambalear para seu lado. Só o gato é que parece que deu razão de qualquer coisa e pôs-se coca, mas como não viu nada, tornou a enroscar-se aos pés do dono.
Saltámos para cima da laranjeira e toca a colher e a encher a camisa por dentro, que a tínhamos atado com a correia das calças. Só deixámos as que não víamos ou aquelas aonde não chegávamos.
Quando foi ao outro dia, ajuntámo-nos outra vez na Fonte Velha e chega lá o Justino, que até parecia que nos havia de comer:
- Seus cabrões, que fosteis às laranjas do meu avô e não deixasteis nem uma!
- Nós? Atão não nos vistes abalar também aquando tu? Alguém lá terá ido a elas, mas nós não fomos…
Ele calou-se e lá ficou na dele; nunca teve a certeza de quem tinham sido os ladrões.
Doutra vez, era no tempo das ameixas. Havia uma ameixoeira numa horta para lá do Marzelo, carregadinha delas; grandes e tão encarnadinhas que metiam cobiça. Até faziam água na boca, só de olhar pra elas. Um dia lá vamos nós, pela calada da noite, prontos para uma barrigada.
Assim que lá chegámos o Chico Vaca saltou logo para cima dum ramo tão carregadinho que até amochava; mas teve tanto azar que o ramo esnocou-se e ele foi parar ao leirão de baixo, mesmo por cima dum poço que lá havia. A noite estava como breu, e só o ouvíamos a berrar.
- Tirem-me daqui! Tirem-me daqui, que eu morro!
Fomos à horta e arrancámos uma empa dum tomateiro, e foi assim que o conseguimos tirar de lá; ele agarrado ao pau e nós a puxar pra cima. Vinha todo esfarrapado e a escorrer tanto sangue que até parecia um Cristo. E a sorte dele foi que o poço estava tapado com um basculho de silvas e o ramo tinha-o amparado, senão tinha morrido, que o poço era fundo como o diabo.
Jurou pra nunca mais, mas foi sol de pouca dura, que não tardou muito tempo e já andávamos todos aos gachos naquilo da dona Judite. Era cada um, dos brancos, mais doces que o mel! Mas dessa vez íamos sendo apanhados pela Guarda. O que nos valeu foi que demos conta da patrulha pelas passadas das botas e tivemos tempo de nos agachar atrás duma parede. Passaram mesmo à nossa frente, com a arma às costas, mas assim que deixámos de os ouvir, ó gachos duma figa! Foi até não podermos mais!
E estava aqui até à noite só a contar partes destas. Naquele tempo não havia a fartura da fruta que há agora, que até a deixam apodrecer, caída ao tronco da árvore. Se queríamos comer alguma coisa que nos consolasse, tínhamos que ir a ela, aonde a havia, naquilo dos ricos. Raras vezes éramos descobertos, mas mesmo que fôssemos, tínhamos as pernas leves e era difícil sermos apanhados.
Belos tempos! Quem me dera lá neles!...

M. L. Ferreira

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Passeio e magusto, 2016

Éramos metade dos do ano passado, mas só contam os que estavam e esses eram o absoluto.
Primeira paragem, o nicho. Edificado ainda no tempo do Pe. Tomás, cerca de 1964, com dinheiro angariado em peditórios, numa ação coordenada pela Menina Maria de Jesus (Rosário). Estranhou-se, então, uma Nossa Senhora estilo modernista, tão diferente do habitual (Libânia). E as crianças da escola, perfiladas de bata branca, cantaram (José Teodoro):
Passageiros e transeuntes
Que passais a qualquer hora
Nunca deixeis de rezar
À Virgem Nossa Senhora, Ave
Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria, Ave
Versos do sr. José Lourenço? Certamente…
Depois seguimos pelo caminho da discórdia. Lembra-te homem que és pó…
Ao fundo, na ribeira, aprendemos que a fazenda do Casal do Monte do Surdo, propriedade do Conde de São Vicente, no século XVIII, terminava na foz no ribeirito com a ribeira.
Este casalito que se segue é os dos ossos, derivado da atividade de carniceiro do ti Miguel, e é também dos Paiáguas e dos Sarnas (as 3 famílias que ali viviam). Mas o nome verdadeiro é Baraçal.
No alto de Devesa, o nosso baldio ao pé da porta, recordámos a forca, lá no alto, onde havia uma pedra grande que a plantação de eucaliptos destruiu (José Manuel). E havia restos de uma casa, ainda em 1940 (José Teodoro).
O Adelino levou-nos depois pelo seu Vale Covo abaixo e mostrou-nos tudo: as charcas, as árvores de fruto…Tanto sobreiro jovem! O calor no verão, as terras de xisto, outro Douro para a vinha?
A seguir, boa baixa de oliveiras, do ti João da Corredoura, agora aos cuidados da Silvina e do seu Zé. Depois, subida até à estrada dos Pereiros. Mas os caminhos estão bem lançados, esta montanha-russa é suave.
Estrada fora até ao Casal do Monte do Surdo, onde o ti António Rodrigues (último morador descendente dos Leitão Paradanta e Rodrigues Caio) ainda é da lembrança de quase todos. 
Descemos pelo caminho de terra até ao ribeirito, onde havia uma fonte que ficou debaixo da ponte e a mulher do Jerónimo viu, um dia, duas cobras enormes erguidas enlaçadas, formando um tronco.
Subimos e voltámos à estrada. Depois descemos para as passadouras da ribeira. Foram substituídas pelo pontão, cerca de 1972, obra do povo do Casal da Fraga. Das passadouras lembra-se o Zé Manel, metido debaixo do braço, para atravessar. A Rosário vinha do Casal dos Ramos, por aqui, a caminho da escola, tal a cegueira que elas davam nos cachopos e nas cachopas.
O curso da ribeira passa agora no lugar da fonte Ferreira. Não faz mal, já não é necessária…
Chegámos cedo, ainda a tempo de ajudar a cortar as castanhas. Já caía a noite quando o povo de juntou, a dar conta delas, empurradas pela jeropiga do Zé.
Para o ano há mais!



Texto de José Teodoro Prata
Fotos de Luís Ferreira e José Teodoro

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O Guimarães

Mais coisa menos coisa, andar-se-ia pelos idos de 1930. Por esta altura ainda Salazar não tinha tido tempo de impor a ordem no Retângulo da Europa, quanto mais no império que lhe restava, ilhas e além-mar, da África à Índia e a Timor! Mas já conjeturara a lição que iria dar aos iletrados portugueses, que ficaria para a história!
Neste Portugal europeu, rural, pobre, alegre e simples, tal como o governante o imaginara, deambulavam malteses de pau e manta, vagabundos, pequenos ladrões, malfeitores de pouca monta (mas havia alguns perigosos que podiam matar!), pedintes e zés-ninguéns esfomeados! Em suma, miseráveis de toda a condição! A faixa da Beira-Serra, por alturas da Gardunha, não fugia à regra.
Nas cidades e vilas mais importantes da região já havia pequenas guarnições do corpo da Guarda Nacional Republicana, como acontecia no Fundão. Onde pontificava o austero sargento Silva, nascido na vila de S. Vicente da Beira, irmão do ti’ António da Silva, alfaiate, com atelier posto na rua Manuel Mendes e pai das manas “Silva” que moraram nesse mesmo local até há pouco tempo.
Na vila, porém, apenas o Regedor e a força de Cabos de Ordem tentavam suster o freio à vadiagem e manter a legalidade, como o sherife, com os seus ajudantes, num qualquer western americano.
Há muito que o sargento Silva esquadrinhava a serra da Gardunha e arredores, com a sua gente, na peugada de delinquentes como o Pistotira, o Cireneu ou o Tonel, considerados pelas autoridades como perigosos e, que se sabia ou se presumia, andarem pelas bandas da vila.
De entre os vários e conhecidos bandoleiros que varriam a região, havia um que dava pelo nome de Guimarães. Não se sabendo se de seu nome de batismo, se por ser oriundo da cidade berço. Eventualmente, andaria fugido às autoridades do norte, tendo vindo parar a estas terras beirãs por mero acaso ou estratégia de fuga. Apesar de ser um marginal e homem de porte atlético, capaz de bater qualquer um que lhe fizesse frente, não era, pelo menos por aqui, considerado dos mais temidos. Fosse porque, pelas dificuldades de comunicação, não se sabia do seu currículo, fosse porque ainda não tivera tempo de fazer desacatos, por estes lados, dignos de assinalar! Mas em todo o caso, já sinalizado como marginal de furtos menores!
Um dia — possibilidade sempre à espreita dada a sua atividade de risco, como assaltante — foi preso por vários vizinhos que, discretamente, se reuniram, na Oles, lugar em que se tinha aventurado à cata de galinhas para matar a fome. E onde foi encurralado, apesar da sua estrutura física de meter respeito! Mas, afinal, que faria ele contra vários homens decididos a guardar o que era seu, que tanto trabalho lhes custara e que era o seu próprio sustento e das suas famílias?! Quando se viu acossado, calculou as suas probabilidades. E entendeu que, sozinho, nada podia contra eles. Pois apercebeu-se que os vizinhos estavam firmes, para fazer justiça por suas próprias mãos, se resistisse. Ele bem sabia como a justiça, nestes casos, pode ser muito dura e pouco proporcional ao ato criminoso! Nem era pelo valor dos animais roubados, se bem que isso já fosse um prejuízo, mas pela violação da paz e sossego do lugar e pelo medo e inquietação causada. Estando ele apenas munido da faca com que degolara as aves que já levava debaixo do braço, pensou que o mais certo era algum dos do grupo que o cercava trazer o canhangulo, arma de fogo que, mais ou menos clandestinamente, quase todos tinham em sua casa, naquele tempo, com que matavam um ou outro coelho ou perdiz e que também os podia defender de maus encontros. Ora, duas ou três galinhas não valiam a sua vida! Por isso decidiu não oferecer resistência e rendeu-se.
Era já noite e os homens, após lhe terem atado as mãos, muniram-se de duas lanternas e cada um pegou em seu varapau para defesa contra imprevistos do caminho. Iniciaram a marcha para o levar à vila, a fim de o entregar às autoridades locais. Subiram a estrada de macadam desde o fundo da barreira da Oles até ao cruzamento com a Cascalheira, onde descansaram um pouco. E continuaram pela mesma estrada que os havia de levar à entrada da povoação, por S. Sebastião, Fonte Velha, rua do Beco, até à praça, em direção ao edifício da antiga câmara municipal.
Ao passar pelas tabernas que havia neste percurso, que ainda se encontravam abertas, aquele tropel de transeuntes levando um prisioneiro, não podia deixar de despertar a curiosidade de alguns basbaques que vinham à porta, com o copo de vinho na mão, meio bebido, a dar fé do que se passava. Uma ocorrência como aquela não era vista todos os dias. Muitos dos presentes deixaram a taberna, seguindo a turba até ao edifício da antiga câmara, a espreitar qual seria o desfecho daquele inusitado caso.     
Chegados ao local, um dos homens que trazia o delinquente foi dar parte da situação ao Regedor, que logo mandou chamar os Cabos de Ordem, enquanto os outros ficaram na praça velha, junto à porta que nos fica à mão direita quando observamos lateralmente o edifício desde essa praça.      
Aí se situava a cadeia. Mas também se recorria muitas vezes, como prisão improvisada, ao antigo coreto, entretanto demolido, existente na grande praça, ao lado do pelourinho, cuja construção assentava numa base sextavada, robusta, construída em pedra, com dois metros de altura. Tinha porta forçuda, numa das faces, a abrir ao nível térreo e dois estreitos óculos para entrada de luz e ar a meio de duas das outras faces. Esta base era coberta por uma laje de alvenaria e ferro. De cada um dos seis cantos desta laje, partiam altas colunas em ferro e uma ao centro, sobre as quais assentava uma cobertura em chapa de metal vigoroso, a tapar o coreto. A ligar as colunas em todo o perímetro da laje, uma grade de proteção em ferro de um metro de alto, com uma abertura a meio de um dos lados. Acedia-se ao coreto por essa abertura, através de uma escada metálica amovível que se colocava nos dias de concerto da banda. Era, aqui, por baixo, no coreto, neste autêntico forte de pedra, que se encarceravam os prisioneiros.
Foram convergindo, paulatinamente, para junto do edifício da câmara, onde se encontrava o adjunto dos vizinhos com o prisioneiro, o Regedor, os Cabos de Ordem e muitos mirones que deram pelo sururu e que tinham vindo das tabernas próximas.
Acontece que estava ocasionalmente em S. Vicente da Beira, por esses dias, o sargento Silva, na sua missão de tentar capturar os malfeitores que andariam aqui pela Gardunha, segundo informações que haviam chegado ao Posto da GNR do Fundão.
Os marginais, quando eram capturados pelos vizinhos, uma espécie de milícias, como aconteceu com o Guimarães, estavam inevitavelmente sujeitos à exposição pública. Após serem amarrados, dados como inofensivos e submetidos à irrisão popular, desencadeavam na massa popular vários tipos de sentimentos contraditórios e mudanças repentinas de humor e agressividade coletiva. Certamente dependentes do caráter e da forma como cada um entendia as ofensas destes agentes do desassossego. Mas a maioria do povo assanhava-se muito contra eles, não tanto pelo que roubavam, como já se referiu, mas porque perturbavam a pacatez das suas vidas e eram, muitas vezes, uma ameaça séria para as pessoas, não hesitando em fazer sangue, se fosse caso disso. Pois, como muito bem se sabia, um ladrão acossado é como fera brava enjaulada. Torna-se furibundo e, no seu próprio desnorte, é capaz de matar e chacinar seja quem for que se atravesse no caminho da sua fuga.
Chegara, entretanto, à praça, o sargento Silva porque ouvira dizer que o Guimarães tinha sido preso por vários homens que já lá se encontravam e onde também já estavam o Regedor e os Cabos de Ordem. Vinha munido da competência e da legalidade que a farda da GNR lhe conferia. E diz ao prisioneiro do alto da sua autoridade, agarrando-o pelos colarinhos:
— O que te vale a ti, meu sacana, é não seres quem eu procuro!
É que o sargento Silva, como já se referiu, investigava, na altura, na vila, o paradeiro do Pistotira, do Cireneu ou do Tonel para lhes deitar a unha, o que, até então, ainda não tinha sido possível! 
Dito aquilo e, num assomo de fúria e gesto súbito, rápido como um raio que rasga o horizonte, atirou contra a face do prisioneiro um molho de chaves e algemas que trazia. E logo o sangue na sua fronte se soltou abundantemente!
O sargento talvez tivesse percebido, por momentos, que se tinha excedido no seu zelo e competências! Pois o homem permanecera, até ali, calado e aprisionado! Mas o tempo já era de repressão como preconizava o novo governante de Lisboa! Começava a faltar o respeito e dignidade pelas pessoas!
Com este passo, porém, a turma agitou-se e manifestava-se com grande algazarra:
— Ponham o homem na enxovia!
— Prendam-no e levem-no a tribunal!
— Deem-lhe umas valentes chicotadas no lombo!
— O que ele precisava, sei eu! Era ser metido num barco e levado para o degredo para as colónias de África! — diziam vários dos presentes.
— Mate-se já aqui este bandido! — gritava alguém mesmo ali ao lado do prisioneiro! 
— Escache-se agora este ladrão! — berrava o mesmo indivíduo!
O Guimarães, com a face cheia de sangue, olhou para ele. Não o conhecia! Mas era da vila! Era o Zé Parrito!   
Ao cabo de um bom pedaço nesta giga-joga, espécie de vindicta de rua, foi então que interveio o ti’ Zé Pedro, homem respeitado em toda a vila e arredores pelo seu caráter e pulso, talvez o único que se podia bater, mano a mano, com o possante Guimarães.
— Não senhor, aqui não se mata ninguém! — disse com firmeza.
— Então vai-se matar um homem como se fosse um animal?!
— Pois enquanto eu aqui estiver ninguém mais lhe toca!
Todos recuaram um pouco na sua sanha contra o preso, não só por respeito ao homem devido à autoridade natural que infundia como também pelo seu porte físico. Todo ele se impunha pela sua honorabilidade! Salvou-se o Guimarães, desta feita, de uma possível vingança popular, pela intervenção e verticalidade deste homem.
Um a um foram-se os espectadores da assistência afastando. Voltaram às suas vidas ou regressaram à taberna para acabar o sorvo do copo do vinho que o alarido da prisão do Guimarães lhes havia interrompido.
Ficava o detido agora apenas nas mãos do Regedor que deu ordens aos seus Cabos para que o encarcerassem, justamente, no coreto da praça. Não houve outro remédio porque a cadeia da casa da câmara estava em obras! Alegava que o homem era suspeito de vários assaltos. Tendo, inclusivamente, sido surpreendido em flagrante delito, a roubar galinhas, na Oles, por vários vizinhos que se uniram para o prender. Durante a noite em que o Guimarães dormiu, preso, dentro do coreto, alguns energúmenos ainda se divertiram a meter paus compridos pelos óculos da entrada de luz e ar, na tentativa de atingir o prisioneiro!
Mas o destino destes homens fora da lei, apanhados na Gardunha, estava traçado. Eram levados, no outro dia de madrugada, a pé, para a Soalheira. E dali, de comboio, até Castelo Branco, onde eram entregues às autoridades concelhias. Foi o que também aconteceu ao Guimarães. Uma vez na cidade e, após ser julgado e condenado pelos atos criminosos que cometera, cumpriu ou cumpria prisão — não se sabe bem porque as fontes não são esclarecedoras. Tudo aponta, porém, para a sua evasão da cadeia de Castelo Branco. O que se sabe, com certeza, é que o Guimarães tinha voltado à liberdade, pelo menos por uns tempos. Mas não mais se esqueceu daquela sua detenção na Oles, da prisão, por uma noite, no coreto de S. Vicente da Beira e das injúrias, afrontas e agressões de que então foi alvo!   
Sucede que, à época, havia bastante comércio de madeiras entre os proprietários dos pinhais da serra da Gardunha, designadamente, da freguesia de S. Vicente da Beira e os empresários da construção civil da cidade de Castelo Branco que crescia a olhos vistos! Como é bom de ver, os transportes rodoviários de camioneta não existiam ou eram incapazes. O transporte da madeira era então efetuado quase exclusivamente por carros de bois. Era vê-los, numa azáfama, a carregar madeira por esses pinhais! E juntarem-se depois, em fila, estrada abaixo, tão ronceiramente como vagarosos eram os bois, a caminho da cidade! Iam pelo escuro da manhã e estavam de volta à noite!
Ali pela estrada nacional, sensivelmente próximo de Alcains, costumavam parar a marcha para a bucha e descanso de pessoas e animais. Só se pondo em andamento após recobro de energias que bem precisas eram.
Os carros formavam-se numa grande fila, bem encostados ao longo de um dos lados da estrada, enquanto durava a pausa da fatigante caminhada. Eis senão quando aparece o Guimarães que então gozava tempos de liberdade fosse ela definitiva ou precária. O que é certo, é que ele ali estava, alto e garboso, junto dos ganhões de S. Vicente da Beira, com redobrada pujança e renovada energia. Ora, o Zé Parrito era um dos ganhões mais assíduos no transporte das madeiras, atividade com que ganhava a vida. O Guimarães tinha-o visto apenas daquela vez na praça em S. Vicente da Beira e não conseguia identificá-lo. Apenas se informara que ele costumava fazer o transporte da madeira por aquele trajeto, juntamente com os outros ganhões. Por isso, deveria estar por ali. O antigo prisioneiro do coreto da vila acercou-se, pois, do adjunto dos transportadores de madeira que ali se encontravam a repousar da jornada — e se eles eram muitos! E sem medo ou receio algum — que ele era um homenzarrão! — berrou, destemido, alto e bom som para que fosse bem entendido pelos presentes:
— Onde é que está aqui aquele que em S. Vicente da Beira, quando lá estive preso, disse: “Mate-se já aqui este bandido!” e “Escache-se agora este ladrão!”. Se o apanho, quem o mata já aqui sou eu!
Os presentes ouviram e calaram! O Guimarães apenas veio a saber, junto dos transportadores de madeira, por este e por aquele, por entre dentes que, nesse dia, o Zé Parrito, vá-se lá saber porquê, não fizera o transporte da madeira como era seu assíduo costume!
E foi assim, por um acaso da fortuna, que o Zé Parrito escapou a uma morte quase certa!
Outros tempos!

Fonte: História ficcionada que teve por base algumas passagens narradas pelo ti’ Albino Moreira.
Nota: Ressalva-se o eventual emprego, no texto, de alguma palavra regional ou local com grafia não oficial.


José Barroso   

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

De passagem

Morte

Todos os dias faço o meu trabalhinho
Ninguém leva nada, nem um bocadinho
É assim a vida de uma criatura
Do nascimento à morte há um intervalinho
Que devemos aproveitar com cuidadinho
Mal nos descuidamos, poem-nos numa sepultura

Saibamos aproveitar o tempo da nossa vida
Rentabilizando as horas da nossa lida
Deixemos nossa marca, um rasto de luz
Ajudando o semelhante mesmo desconhecido
Afastemos o mal, sarando alguém ferido
Desta maneira torna-se mais leve nossa cruz

A morte que nos mata, não leva mais ninguém
É sempre vencida, não a olhemos com desdém
Quando menos esperamos, ei-la à nossa frente
Ninguém saberá nunca quando virá ou vem
Cada um tem a sua, neste instante morre alguém
Para onde vou! Não sei. Deixo de estar presente

Todos um dia para a grande viagem partiremos
E nunca mais te verei, ou veremos
Deixo estas rimas, esta mensagem
Quem sabe num outro mundo não nos juntaremos
Para todo o sempre e com saúde nos amaremos
Morte… Saibamos esperá-la com coragem

Senhor quando chegar a minha hora
Perdoai este pobre pecador
Este Teu filho que Te ama e adora


Zé da Villa