terça-feira, 4 de abril de 2017

O tesouro da Partida

Há muitos anos vivia na Partida uma família a que chamavam “As Mari’ Joanas”. Eram duas irmãs solteiras que viviam com o pai, e já naquele tempo eram consideradas das pessoas mais abastadas da terra.
Um dia, já rente à noite, bateram-lhes à porta. Estranharam a hora, mas foram assomar à janela e viram dois homens, cada um com sua mula pela mão, que disseram ser almocreves. Pediram que lhes dessem alguma coisa que cear e os deixassem dormir por uma noite, que vinham com fome e cansados do muito caminho que tinham andado. E que não tivessem medo, que tinham com que pagar o comer e a dormida.
Fazendo justiça à fama da hospitalidade das gentes da terra, as duas irmãs prepararam logo ali num instante uma bela sopa de couves temperada com um bom naco de presunto. Os viajantes comeram-na tão sôfregos e calados que até parecia que não comiam há uma semana. Entretanto foram fazer as camas com os melhores lençóis de linho que havia na casa.
Depois de comerem, os viajantes levantaram-se da mesa e disseram que queriam fazer contas. O dono da casa bem disse que não senhor, que as contas se faziam de manhã, e que ficassem mais um pouco para dois dedos de conversa e a reza do terço. Disseram que não, que tinham que abalar de manhã cedo, antes do nascer do Sol, mas antes agradeciam muito que lhes indicassem para que lados era um sítio, ali nas redondezas, que dava pelo nome de Porto, e qual era o melhor caminho para lá chegarem.
O dono da casa achou estranha a pressa dos dois homens em abalar, mas desconfiou ainda mais da curiosidade deles em saberem onde era o tal lugar. Não pregou olho em toda a noite, a pensar no caso e à escuta de qualquer barulho, não fossem eles abalar sem ele dar conta. Já agora não queria perder a partida de tão estranhos hóspedes e ver se tirava a limpo as intenções que os trazia a vaguear por aquelas bandas.
Ainda o dia vinha longe, sentiu o ranger das tábuas. Deviam ser eles a levantarem-se, e ficou à escuta. Mal ouviu a porta da rua a ranger, pôs-se a pé e foi espreitar. Viu-os a descer a rua, cada um montado na sua mula. Nem se preocupou de estar em camisa de dormir e barrete na cabeça; enfiou só as botas nos pés e foi atrás deles. Quando chegaram lá ao sítio, viu-os parar e pôs-se à espreita, um pouco mais longe, a ver o que é que eles faziam. Nem queria acreditar quando os viu a encherem umas sacas e a carregarem uma das mulas com elas. Aproximou-se mais e viu que eram moedas de ouro o que estavam a ensacar. Assim que o viram, os dois homens voltaram-se para ele, zangados:
            - Se não tivéssemos comido ontem à sua mesa e dormido nos seus lençóis, era hoje aqui o fim da sua vida. Mas, assim sendo, nós já cá levamos o nosso quinhão; ainda aí fica esse pote, acabe vossemecê de o rapar.
O homem não perdeu tempo e, tão depressa quanto pôde, apanhou as moedas que restavam no fundo do pote e encheu o barrete com elas. Correu depois para casa o mais depressa que as pernas deixaram, não fosse alguém dar por ele, e foi contar às filhas o sucedido.
Se já eram abastadas, as Mari’Joanas ficaram ainda mais ricas. Quando morreram, como eram solteiras e nem sobrinhos tinham, quem herdou tudo foram os primos Fernandes. Vem desses tempos a fama, e só eles sabem se o proveito, de serem das famílias mais ricas da terra.


M. L. Ferreira

4 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Já ouvira esta história aquando da apresentação, na Partida, do livro "Dos Enxidros aos casais...".
É uma saborosa história que mergulha as suas raízes na nossa tradição oral da existênica de potes cheios de moedas enterrados em certos sítios.
Já em 1758, o vigário das nossas Memórias Paroquiais escreveu: «No fundo da mesma serra se acha um forte dilatado[na Torre?], que conserva somente os alicerces de cantaria lavrada, e dele nasceu uma calçada muito bem feita de cantaria, a que chamam a Calçadinha dos Mouros, em parte demolida, o que tem feito a curiosidade de alguns ambiciosos, por se dizer que naquele sítio está um grande tesouro.»
O Eça de Queirós escreveu um conto intitulado "O Tesouro", sobre as atitudes de 3 irmãos face a de um tesouro encontrado.
Também a família Gama, do Maxial da Ladeira, atribuiu algum desafogo económico dos seus antepassados ao confisco de um tesouro trazido pelos franceses, a 3.º invasão (ver neste logue "Emboscada da Enxabarda").
E após tantos séculos das florescentes civilizações romana e árabe, era de facto possível alguém encontrar algum tesouro escondido à pressa devido aos invasores que puseram fim a estes eldourados. Não há fumo sem fogo!
Desafio: e o que dizem os membros da família Fernandes?

Anônimo disse...

Curioso! No Mourelo existiu uma história em tudo idêntica, à qual era dada o nome de "Lenda da Carapuça". Constava no site da aldeia, enquanto esteve online:

« Esta é a história da Caparuça, lenda que conta como foi adquirida, por Francisco Martins, a riqueza necessária à construção da capela do Mourelo, a fim de seu filho poder celebrar a missa. Um certo dia dirigiram-se dois viajantes à procura de abrigo para dormir durante a noite. A quem perguntava para onde eles se dirigiam, os forasteiros diziam apenas que tinham de prosseguir de manhã cedo a sua viagem para onde se destinavam. Como as demais pessoas ficavam desconfiadas por tal mistério, tinham receio de lhes dar abrigo. Todos excepto um, que lhes deu guarida. Aí pernoitaram então. Logo de manhã cedo, partiram, como haviam dito. Mas Francisco Martins, despertado pela curiosidade do mistério daqueles homens, seguiu-os sem que eles se pudessem aperceber. A certa altura os dois viajantes pararam e começaram a escavar no solo, lugar onde haviam sonhado existir um tesouro. Escavaram e escavaram até que encontraram uma grande riqueza. Nesse momento Francisco Martins, o homem que lhes havia dado abrigo, apareceu, enquanto eles punham o tesouro numa grande saca velha. Os dois viajantes reconheceram-no e chamaram-no, dizendo-lhe: "A sua sorte foi termos dormido na sua casa embrulhados nos seus lençóis, senão já não saia daqui vivo. Abra lá a sua carapuça e não diga que vai daqui." Ao chegar a casa é que Francisco Martins viu que o que haviam posto na sua carapuça era ouro... ».

O filho de Francisco Martins a que se refere esta lenda era o Padre José Martins, o qual chegou a assinar alguns assentos nos paroquiais de São Vicente da Beira no final do século XIX, como padre assistente, julgo. Foi aluno do Colégio de São Fiel (embora não saiba dizer em que anos e por quanto tempo o frequentou, embora os ditos antigos a fizessem contemporâneo de Egas Moniz) e foi, durante cerca de 35 anos, o pároco de Paúl, até falecer de apendicite.

HM

Anônimo disse...

Correcção: onde escrevi Paúl queria dizer Peroviseu.
Cumprimentos,
HM

Anônimo disse...

Como diz o José Teodoro, não há fumo sem fogo, e estas histórias que mergulham no fundo das crenças populares que não encontram explicação para alguns fenómenos, poderão ter algum fundamento. Talvez por isso, também, várias povoações as reivindicam como suas. É o caso desta, segundo o HM, e doutras que já aqui temos contado.
Há tempos, no Violeiro, também me falaram de lendas que dão conta de tesouros escondidos no fundo de poços e minas, mas que, pelos vistos, ainda ninguém teve a sorte de encontrar. Talvez por isso não haja por lá ninguém que se distinga por ter posses muito mais avultadas que os outros…
Ainda a este propósito, na Partida acredita-se que por baixo dumas escadas da capela do Santiago está escondida uma cabra com dois cabritos todos em ouro. Parece que ainda ninguém se atreveu a procurá-los, porque estão guardados por uma serpente muito venenosa...

M. L. Ferreira