1 – Vestígios de organização comunitária
a) – Generalidades:
Ao observador
menos atento poderia parecer não existirem na população da Partida quaisquer
manifestações de comunitarismo, dado não existirem terras comuns, antes se
encontrando a propriedade muitíssimo dividida e ser a exploração feita
individualmente.
Porém, e como não
podia deixar de ser num meio onde cada um depende do seu vizinho para a
realização de múltiplas tarefas e suprimento das mais diversas dificuldades,
são muitas e variadas as formas como as pessoas aqui se agregam para, em
conjunto, realizarem o que a cada um seria impossível.
– Fornos públicos
Existem os da
Barroca, da Barreira, do Cabeço, do Esteval e o do Cordágua.
Fornos do Esteval e da Barreira, na atualidade.
O único
verdadeiramente de todo o povo é o da Barroca, que é também o mais antigo. Os
restantes já foram construídos pelos moradores das proximidades do local onde
se situam, aos quais se restringe geralmente a sua utilização. Não há, no
entanto, qualquer registo de propriedade e a posse é meramente costumeira. A utilização por um não-dono
é sempre por empréstimo, nunca dando lugar ao pagamento de qualquer aluguer.
Não existe a
profissão de forneiro ou forneira. Cada mulher que deseja utilizar um forno
começa por colocar nele um sinal (pequena
porção de lenha colocada na boca do forno). Se já houver nele outro sinal tem
que procurar saber a quem pertence, para saber o dia e a hora que convém à
primeira, e se a quantidade de pão de ambas couber numa fornada e a hora de uma
convém à outra, combinarem cozer juntas.
Acontece quase
sempre juntarem-se duas, três ou mais vizinhas para uma cozedura, por cada uma
cozer pequenas quantidades de pão e ser assim necessária menos quantidade de
lenha de cada uma para aquecer o forno.
Por meio dos
sinais colocados no forno é estabelecido um calendário cujo cumprimento decorre
quase sempre na melhor ordem. Se uma vez por outra surgem discussões entre as
vizinhas interessadas, são resolvidos sem recurso a qualquer autoridade
pública, embora não deixem de ser aproveitadas para cada uma apontar à outra os
defeitos que supõe ter.
Terminada a
cozedura, cada uma leva o seu pão, não havendo qualquer poia ou maquia, pois como
já se disse não há forneiro ou forneira, sendo os fornos utilizados
directamente pelos interessados.
b) – Moinhos, lagares e azenhas
Aqui verifica-se uma propriedade colectiva, mas não
pública. Cada lagar, moinho ou azenha tem os seus donos e os vizinhos que deles
se quiserem servir terão que pagar uma poia
ou maquia.
I –
Lagares:
Existem três
lagares para fabrico de azeite. O Cimeiro, o Novo ou do Portabeira e o
Fundeiro, cada um com duas varas.
Parte do engenho da
moagem da azeitona do lagar Cimeiro.
A roda foi reutilizada como escultura no
Parque Natural da Ribeirinha
O quinhão base é
o oitavo, o que não quer dizer que o número de condóminos seja rigorosamente de
oito. Pode um só dono possuir mais do que um oitavo, ou um mesmo oitavo
pertencer a mais que um dono. Isto acontece sobretudo por motivo de herança,
pois, não raro, vários herdeiros mostram interesse em ficar com uma fracção de
um quinhão a herdar. É que todos os lagares têm também azenhas para moagem de
cereais que funcionam fora do período de fabrico de azeite e enquanto as
ribeiras levam água suficiente para o efeito.
Quanto ao fabrico
do azeite, cada ano há um avinhador a quem compete fornecer a primeira módura e contratar os 2 lagareiros, bem como o fornecedor de lenha. Os lagareiros tiram
uma poia proporcional ao azeite
produzido por cada módura (são dez partes para o dono e uma para o lagar) e
vão-na despejando no pote da poia.
Desta é tirado um litro por módura
para o ganhão que transporta a azeitona para o lagar. Do azeite produzido por
cada módura é ainda tirado um litro para o fornecedor de lenha.
Finda a campanha
e depois de retirado o azeite para os ganhões e fornecedor da lenha, e entregue
aos lagareiros a quantidade de azeite devida pelo serviço, é o azeite vendido
pelo avinhador que convoca os outros
condóminos para um determinado dia e hora, para fazerem as contas.
As contas são
normalmente feitas em casa do avinhador
que apresenta as despesas feitas durante o ano, assim como os respectivos
rendimentos. É um acto revestido de certa solenidade, findo o qual os sócios
bebem uma boa quantidade de vinho. No mesmo acto é a chave entregue ao
avinhador do ano seguinte.
II
– Azenhas:
Quanto ás azenhas
que funcionam em cada um dos lagares, o seu uso limita-se quase exclusivamente
aos respectivos proprietários, moendo cada um o seu próprio cereal e portanto
sem que lhes seja retirada qualquer maquia. A utilização por não-donos é
excepcional e só pode ser feita na vez de um dos donos. É que se azenha fosse
utilizada com fins lucrativos seria considerada uma indústria e teria que pagar
a respectiva contribuição.
Não se verifica
normalmente uma rígida limitação do tempo de utilização da azenha por cada
dono.
Embora,
logicamente, o tempo de utilização deva ser proporcional ao quinhão, é dado a
cada um o tempo suficiente para moer todo o cereal de que necessita. O critério
da proporcionalidade apenas é utilizado em ocasiões de escassez de água ou
quando vários donos querem moer ao mesmo tempo.
III – Moinhos:
Existem vários
pequenos moinhos de roda exterior horizontal, pertencendo cada um a uma
sociedade.
Moinho
(azenha?) das Fragoeiras, na Ribeirinha.
A capacidade
destes moinhos é bastante menor que a das azenhas dos lagares e, por esse
motivo, há maior necessidade de limitar o tempo de utilização do moinho por
cada um dos donos, de acordo com a quota parte de cada um. Cada um é moleiro do
seu próprio cereal
c)– Extinção de incêndios
À semelhança do
que se verifica na maior parte das aldeias portuguesas, também aqui não há
qualquer organização de bombeiros voluntários.
Ora, dado que os incêndios
ocorrem quer em construções quer em pinhais e que o recurso aos bombeiros
voluntários da sede de concelho não é viável, a não ser para incêndios de
grandes proporções, o que felizmente se não tem verificado, era natural que se
criasse o costume de serem os próprios moradores da povoação a extingui-los,
ajudando-se mutuamente. Este costume verifica-se de facto e constitui uma das
mais belas manifestações de solidariedade a que é dado assistir.
Logo que se
espalha a notícia de um incêndio, a pessoa que primeiro consegue chegar ao sino
da capela de S. Sebastião começa a tocá-lo a rebate. Imediatamente toda a
população válida se dirige para o local do incêndio, assinalado pelo fumo ou
indicado pelo tocador do sino, levando logo cheias de água as vasilhas que
tiver à mão. (…) Enquanto as mulheres e as crianças transportam a água, os
homens procuram lançá-la sobre as chamas, muitas vezes com risco da própria
vida. Cada um faz o máximo que pode e o trabalho só termina depois de o fogo
estar completamente extinto.
É necessário
salientar aqui que muito raramente alguém deixa de acorrer a ajudar a extinguir
um incêndio por motivo de inimizade com o dono do prédio sinistrado. Ao
contrário, é frequente as pessoas ajudarem nestas circunstâncias até mesmo os
próprios inimigos. Impõe não só a consciência de cada um, mas também o senso
comum da população que reprova a falta de colaboração, independentemente das
relações existentes entre os interessados.
e) – Rebanhos de cabras pertencentes a vários donos ou meeiros
(…) a propriedade
encontra-se excessivamente fragmentada, sendo poucos os proprietários que
trabalham exclusivamente nos seus próprios terrenos e não havendo nenhum que
possa dar-se ao luxo de não trabalhar no campo.
A exploração
pecuária torna-se difícil e daí o agrupamento de pequenos rebanhos de dois ou
mais donos, chamados meeiros, num
único rebanho à guarda de um só pastor, o que permite não só uma melhor
utilização das pastagens, como também o mais fácil pagamento da soldada do pastor.
O pastor é
alimentado às semanas pelos meeiros e
é-lhe dada a possibilidade de escolher uma cabra merendeira. O leite desta é utilizado pelo pastor como complemento
da merenda levada de casa. A soldada anual consta de uma soma em dinheiro – de
300 a 1000 escudos - e de algumas peças de vestuário e calçado. Um fato e meio,
três camisas, três pares de ceroulas, umas botas e um gavão. Por vezes recebe também uma cria (chiba), escolhida pelo
pastor entre as de cada ano.
f)– Arranjo dos caminhos pelo Carnaval
Este é um costume
que se vai perdendo (….).
Para o arranjo a que nos estamos referindo era mais uma
vez o sino da povoação que chamava as pessoas ao trabalho. No dia de Carnaval,
logo pela manhã, o cabo de ordens ou alguém por si mandado, dava umas badaladas
no sino, após o que vários homens isolados ou em pequenos grupos e munidos das
necessárias ferramentas, se dirigiam para os locais onde os caminhos
necessitavam de reparação, procurando cada um reparar aqueles que mais
directamente lhes interessavam. Este trabalho prolongava-se apenas pela parte
da manhã porque a tarde, essa era reservada para os folguedos tradicionais.
g) – Arranjo de «encanamentos» e
«presas» colectivas no princípio do Verão:
Existem várias
regadias interessando simultaneamente
maior ou menos número de agricultores, por vezes dezenas.
Dado o
vigoroso acidentado do terreno e o acentuado declive do leito dos ribeiros,
todos os anos os encanamentos ou
captações de água para as levadas são danificados pelas cheias, pelo que têm
que ser reparados ou construídos.
Interessando
estes «encanamentos» a todas as pessoas que beneficiam da respectiva rega,
juntam-se as mesmas em dia previamente combinado e vão meter a água à regadia.
h) – Águas públicas (aduas):
(…)
Se a água
abunda e nem todos os agricultores da regadia estão interessados em regar, a
conjugação de interesses não é difícil de conseguir e basta que se vá seguindo
na rega a mesma ordem por que os prédios se encontram na regadia.
Quando a
água escasseia o procedimento é diferente, conforme a regadia tem adua ou não.
Se tem adua, o que quer dizer que há um número
de horas de rega para cada prédio, constante da própria matriz, a água é aduada e começa no cimo da regadia a
utilização dela por cada proprietário durante as horas que lhe competem.
Cada
interessado vai-se informando onde é que anda
a água, procurando tomar conta dela no momento exacto em que passa a
pertencer-lhe. Chegada ao fim da regadia, volta novamente ao princípio.
Nas
regadias que não têm adua, o princípio
orientador é o da água passar sucessivamente de um proprietário para outro até
dar a volta a toda a regadia. Como não há um número de horas estabelecido, cada
um procura regar o seu terreno de uma só vez. Assim, frequentemente os direitos
de uns são atropelados e os prejudicados são normalmente os situados no fundo da regadia. É fácil aos que estão
mais acima abrir os tornadouros e
regar, ainda que não seja a sua vez.
As desavenças são
aqui mais frequentes, mas não têm passado de simples toca de palavras. Com
efeito não há notícia de qualquer questão de regas ter levado a ofensas
corporais de qualquer natureza.
i)– Contribuição espontânea para obras de interesse
colectivo:
Pode afirmar-se
que, dentro das suas possibilidades, os habitantes da Partida se mostram muito
generosos sempre que são chamados a colaborar com dinheiro, trabalho ou outros
meios para obras de interesse colectivo. A atestar este espírito de cooperação
estão a igreja, a casa paroquias, a capela de S. Sebastião, a capela de S.
Tiago, os troços de calçada das ruas e alguns pontões de madeira para passagem
de peões, tudo construído ou reconstruído sem ajuda oficial.
Porém, também
aqui tem sentido o ditado que diz que «Santos da casa não fazem milagres».
Embora nunca desmentida, a aludida generosidade mostrou-se no entanto mais
claramente quando o Reverendo Padre Manuel de Oliveira Campos, natural do Souto
da Casa, aqui exerceu o seu ministério há alguns anos. Homem dinâmico e
conhecedor da natureza humana, facilmente obtinha a adesão dos habitantes aos
empreendimentos a que metia ombros. Naturalmente generosa e superiormente
orientada, contribuiu a população da Partida naquele período com mais de duas
centenas de contos e muitos dias de trabalho para várias obras de interesse
geral.
Retirado
de «PARTIDA - COMUNIDADE DA ZONA DO
PINHAL NA BEIRA BAIXA», de Luís Leitão -
Composto e impresso nas Oficinas Gráficas do Jornal do Fundão, 1991.
Nota.
As fotografias são atuais e foram acrescentadas ao texto original.
Para
além dos fornos referidos, os autores falam ainda de outro que existe num local
ermo, chamado Forno dos Mouros, que poderá provar o período da fundação da
Partida.
Falaram-me também de um lagar que existe na ribeira entre
a Partida e o Vale de Figueira onde se podem ver ainda vestígios de uma mão
moura. Parece é que está comido pelas silvas…
M.
L. Ferreira