Era
mais uma manhã escura de janeiro. Na vila, fazia frio e chovia. Corria um
daqueles invernos habituais, longos e modorrentos com chuva miudinha e
persistente. Com a humidade excessiva, os quintais, à ilharga das casas, onde
se acumulava o estrume dos animais, que se acomodavam na loja, por baixo ou ao
lado das habitações, tinham um cheiro peculiar a decomposição, pouco agradável!
O tempo passava lento, com aquele assardaniscar do carujo a ensopar a terra, mas
a fazer crescer as águas freáticas e a ribeira, o que era bom!
Mas
certo é que, com o tempo que fazia, a vida nas fazendas era muito agreste.
Mesmo assim, todos se levantavam logo pela manhã cedo, ainda ao lusco-fusco.
A
mulher punha o almoço em cima da mesa da cozinha. Comiam as migas ou as sopas
de leite ou o feijão pequeno e, ala que se faz tarde! Com o almoço na barriga,
os homens lá iam, casaco pelas costas, para se protegerem da humidade e do ar
frio da manhã, dar o almoço aos vivos, que já faziam a chinfrineira matinal com
a fome. A burra zurrava assim que ouvia a voz do dono e os porcos cuí, cuí,
pediam também o almoço! A manhã avançava e andavam por ali, entretidos, a dar
as forragens secas ao gado, guardadas desde o último verão. Ração de feno para
ovelhas e cabras. Palha triga e caneirões de milho para os animais de carga e
de tiro.
—
Raio de tempo este que não deixa fazer nada nas fazendas! — disse Bernardo
Garrancho, de si para si, arreliado com a invernia que tudo trazia enchapuçado! — As fazendas querem ver o dono todos os
dias! E ninguém as trata melhor! Por isso, lá diziam os antigos, “Quando o dono
morre, as fazendas vão com ele!”
Por
vezes passava ali pela porta da loja um vizinho ou mesmo um conviva habitual
dos domingos à tarde, na taberna:
—
Bons dias nos dê Deus!
—
Tu por aqui, Tonho?! Tu que moras da praça baixo, aqui no cimo de vila a esta
hora?! Anda por aí passarinho novo!
O
seu nome era António Dias, mas os amigos chamavam-lhe Tonho Racha! A alcunha
vinha-lhe de repetir muitas vezes na roda de conversadores, na praça ou na
taberna, sobretudo quando já estava com um copito: “Se for preciso, racha-se já
um diabo!” Apanharam-lhe o ponto! Mas lidava bem com a alcunha que, afinal, não
lhe arrancava nenhum bocado! À provocação de Garrancho respondeu:
—
Ná! Não quero, nem tenho idade para isso! A minha mulher tem feito vir muitos
ao mundo porque … é a parteira da terra!
—
Bem sei! E que tem isso?!
—
Tem que, para alvoroço de crianças, já basta as que tenho, que são minhas e
dela e as dos outros que ela vai ajudando a nascer!
—
Então e depois?!
—
Depois, é que vim só a dizer ali ao João Jarêto para falar com o patrão a ver
se me pode ir lá dar uma jeira daqui a um mês ou dois, à entrada da primavera.
Tenho a fazenda do Vale de Caria com o mato a querer avançar para um leirão que
este ano quero semear de batata. Aquilo tem que ser atalhado quanto antes.
Senão, os vizinhos vá de me censurarem a dizer que ali não entra ferro de
enxada nem charrua! E, como bem sabes, a semente quer mudar de terra de vez em
quando, senão deixa de luzir! Olha lá, ou!... Mas, que andas tu a fazer,
Bernardo?!
—
O que hei de andar a fazer, Tonho? — respondeu Bernardo Garrancho. — Com o
tempo como tem ido, ando aqui a dar de comer à burra e aos bácoros, porque as
cabras, essas, estão sempre na serra. O meu neto, que pode bem melhor que eu,
ainda hoje tem que dar lá um salto para lhes dar a ração, apesar do tempo que
faz! Tenho lá ainda as galinhas e os coelhos que também estão sempre a reclamar
a sua parte. Na semana passada a raposa fez-me lá estragos! Escavou um buraco
por baixo da parede de madeira e rede do galinheiro, conseguiu entrar e
matou-me meia dúzia de galinhas, o estupor! Aquilo deve ter sido um
desassossego! Mas quê?! Se é no verão, estamos a dormir lá ao lado, em casa, e
podemos acudir logo que haja alarido nos animais. De inverno vimos a dormir
para a vila e é o que se vê! Já
viste como vai este ano que ainda há dias começou?! Um alagoeiro que alto lá
com ele! Nada se pode fazer que as terras não estão capazes!
—
Deixá-lo — retorquiu Tonho Racha. — Uma temporada assim é boa para as couves
negras e, sobretudo, para as nascentes. Sem elas como é que, no verão, regamos
as batatas, os tomates e as alfaces?! Sofremos esta inclemência, se é que podemos
assim chamar-lhe, mas a partir da primavera, vamos gozar o que agora estamos a
amargar! E lá diz o ditado: “Quem manda, pode”!
S.
Pedro, que era quem podia, não estava a colaborar. Aquela invernia ensopava
tudo!
—
Mas — acrescentou Tonho Racha — volúvel, é a oração do crente! Agora quer chuva,
logo quer sol e calor! Por isso é que o santo decide como lhe apraz, sem
atender aos rogos dos homens!
O
resultado ver-se-ia na primavera, com a natureza a rebentar, prenhe vida.
O
“casarão”, assim designado pela família, era a loja térrea dos animais em casa
de Garrancho, onde os dois amigos se encontravam em amena conversa. Espaço em
parte coberto pela “casa velha”, também assim apodada pela família e, em parte,
a céu aberto. Tinha um portão largo que dava diretamente para a rua, por onde entravam
as carradas de mato e carqueja, mas também o feno, a palha e os caneirões para o
gado, no inverno. E de onde saía o estrume para todas as fazendas que ele
cultivava.
—
Mas, ó Tonho — disse Bernardo Garrancho — tenho aqui um barril de tinto na loja.
Está ali a ouvir a conversa! Vai um copinho? Olha que é de boa vontade!
Tonho
Racha era um grande apreciador de aguardente, a sua bebida preferida pela manhã
cedo, logo que se levantava! Depois, durante o dia, passava tanto para o vinho
tinto como para o branco! Dizia que nunca fora homem com preferência por qualquer
cor! E nunca recusava um copo à porta de uma adega, desde que fosse cheio de
uma bebida da família da uva fermentada.
—
Se vai?! Homessa! Ó Bernardo, isso nem se pergunta! Um homem, para ser um bom
cristão, nunca deve recusar um copo de vinho! É como se fosse uma obrigação e
até um preceito da nossa religião! Na adega, como na missa, há de beber-se
sempre vinho! — riram!
Bernardo
Garrancho estendeu-lhe o copo de meio quartilho que Tonho levou à boca e bebeu
sem descansar.
—
Aaah! — fez de satisfação!
A
seguir a um copo foi outro, que Garrancho gostava de tratar bem os amigos! E
Tonho Racha não se fez rogado.
—
Já fui a muitas adegas cá na vila a provar o deste ano — disse — e olha que este
é um dos mais bem apaladados! — concordaram os dois!
—
Espera! — disse Garrancho — tens ainda que beber mais um. Vou ali à salgadeira
buscar um bocado de presunto para acompanhar.
Veio
um pedaço de presunto. Febra bem curada de sal, com uma tira de gordura entremeada
para não saber a seco! Mas Bernardo foi ainda buscar um bom naco de queijo de
cabra curado que a mulher era hábil em fazer e metade de um casqueiro!
—
Mau, ó Bernardo, não me estejas já a arranjar o jantar! Olha que ainda é muito
cedo! Ainda agora é de manhã!
—
Nada disso. Hoje já comeste o almoço?
—
Bebi só um copo de aguardente com passas de figo.
—
Ora então aí tens! Isto é apenas uma bucha para aconchegar. Toca a comer e a
beber!
Depois,
aproveitaram para conversar sobre a agricultura e as sementeiras. Como é que ia
o tempo, como é que não ia. Se andava bom para as colheitas, se não andava. E
mal se descuidaram estava a chegar a hora do jantar. Despediram-se com mais um
copo para a sossega!
Não
fossem os afazeres com os animais nas lojas e os amigos para o palratório e
estes homens andariam ali por casa a rebolar, sem nada produzir, como que a
morrinhar ou sentados à lareira. Quando assim era, uma dormência tolhia-lhes o
corpo habituado que estava à exercitação diária do trabalho. As pernas entorpeciam.
Depois, levantavam-se e iam ao janelo da cozinha, encostavam-se à vidraça a
olhar o horizonte. Lá fora, via-se a invernia muito agarrada que acaçapava todo
o vale onde se situa a vila, ao fundo da encosta da Gardunha. E depois punham-se,
absortos, a ver cair a água dos beirais, mesmo ali nas casas defronte. O regato
à roda das parede de ambos os lados da calçada lá ia, rua abaixo, com pouco
mais que uma chisca. Com as trovoadas e aguaceiros é que a valeta, pouco
profunda, não podia conter o caudal que extravasava para a calçada.
Mas
muitas vezes os homens, nestas manhãs molhadas, também iam para a taberna fazer
sociedade. Bebiam, riam em voz alta, jogavam as cartas, ao tanguinho ou ao
burro. Falavam dos negócios do gado, da vida agrícola e contavam passagens para
matar o tempo. E assim passavam a maior parte destes invernos feios e mortiços,
sem nada poder fazer!
Inverno
rima com inferno!
Seria
isto uma grande verdade, não fosse certo que a água é um bem precioso que não
podemos dispensar e que torna a natureza úbere!
Eram
estes homens, prisioneiros da sua própria condição, que vinham às portas das
lojas, das casas ou das tabernas. Olhavam, impotentes, o cinzento carregado do
firmamento, enquanto a chuva fazia o seu caminho do céu à terra, aspergindo-a
vagarosamente como uma canção dolente!
Nota:
neste texto foram utilizados termos ou expressões regionais ou locais.
José Barroso