Com as facilidades que o Acordo de Schengen permitiu à circulação de pessoas e bens em quase todo o espaço europeu, muitos já quase não nos lembramos da aventura que era atravessar a fronteira, mesmo que apenas para ir comprar caramelos a Espanha ou visitar a família em França. Se quiséssemos ir um pouco mais longe, as andanças pelo Registo Civil, embaixadas e consulados eram uma canseira, e os controlos nas fronteiras, sempre que caíamos na tentação de exagerar nos “lembranças” para a família e amigos, punham-nos o coração aos saltos. Estas situações tiravam-nos, no momento, parte do prazer da viagem; mas a verdade é que, passado o susto, tornavam-se quase sempre motivo de gargalhada e passavam a fazer parte do livro das nossas melhores memórias de viagem.
Mas, pelos vistos, algumas das
dificuldades que muitos ainda tivemos para sair do País, foram quase
insignificantes comparadas com os trabalhos por que passavam os nossos
conterrâneos (compatriotas) que, até há pouco mais de cem anos, tinham que
viajar para além dos limites do concelho.
A Torre do Tombo disponibilizou há tempos
alguns livros de registo dos passaportes e vistos de alguns dos anos dos
séculos XVIII e XIX. Mesmo com a dificuldade em decifrar a caligrafia do
escrivão que os redigiu, é um desafio empolgante passearmo-nos por lá. Através
deles ficamos a conhecer um pouco mais de alguns aspetos da vida do País,
principalmente das gentes da nossa terra. Deixo um resumo do que consegui
perceber:
1 – Qualquer pessoa que pretendesse
viajar para fora da sua comarca tinha que ter um passaporte cujo modelo seria
idêntico a este, da comarca de Tavira:
2 - Todos os passaportes ficavam registados em livro próprio. Quem fazia estes registos no ano de 1768 e seguintes era Cláudio António Simões, filho de Manuel Lopes (seria escrivão do Concelho?); os livros destes registos eram rubricados pelo Juiz de Fora, que naquela altura era Francisco de Avis Pereira Rosa de Ferraria(?), substituído, anos mais tarde, pelo administrador do Concelho, Bonifácio José de Brito Coelho de Faria.
3 - A autoridade responsável por
atribuir o documento era o Juiz de Fora;
4 - No documento constava a
identificação do requerente, o estado civil, a naturalidade, a idade, a
profissão, a residência, e várias características particulares como a altura, a
cor dos olhos, do cabelo, nariz, barba, e sinais particulares (muitos destes
sinais eram cicatrizes e vestígios de bexigas).
5 - Constar também o lugar de destino da
viagem, o itinerário, a duração e referir quem acompanhava a pessoa, se fosse o
caso;
6 - Era obrigatório haver alguém que
“abonasse” a viagem (uma espécie de fiador);
7 - Por cada localidade onde passasse
(parasse, pernoitasse?), a autoridade local tinha que visar o passaporte, confirmando
e registando os dados que nele constavam;
8 - Caso o viajante não apresentasse
passaporte era-lhe aplicada uma multa que seria elevada, para aquele tempo
(cerca de mil e duzentos réis em maio de 1825). O responsável pelo recebimento
destas multas era, na altura, o escrivão Bernardo António Robles.
9 - As autoridades civis e militares de
cada localidade estavam obrigadas a dar a proteção e auxílio que o viajante
necessitasse (serão desse tempo as Casas da Malta?).
“Nacionais”
de SVB que requereram passaporte
Entre os anos de 1767 e 1800 cerca de
270 pessoas do nosso concelho pediram passaporte para se ausentarem da comarca.
Os números não são homogéneos - existem anos em que são relativamente elevados:
1768 – 26, 1769 – 38, 1770 – 34, 1771 – 24, 1779 – 20), e outros em que são
bastante baixos (1772 – 7, 1777 – 8, 11778 – 3, 1781 - 7, 1782 – 7, 1783 - 7,
1784 – 5, 1785 – 3, 1786 – 4, 1787 – 4. É possível que existam circunstâncias
que expliquem esta discrepância (epidemias, más colheitas, instabilidade social
ou política), mas não são claras.
Os motivos e destinos das viagens eram muito variados, mas a maior parte era por razões de trabalho. Fica um resumo que tentei que fosse representativo da informação disponível e fizesse o retrato da vida social e económica de SVB naquele tempo:
DATA |
NOME |
DESTINO |
MOTIVO |
DURAÇÃO |
04/01/1768 |
Sebastião
Luís |
Lisboa |
Fazer
negócios |
1 m |
20/02/1769 |
José António |
Vários pontos
do reino |
Trabalho de
caldeireiro |
6 m |
25/02/1669 |
José António
Coxo e António Rodrigues |
Lisboa |
Vender
Castanhas |
2 m |
24/03/1769 |
Francisco
António Simões |
Coimbra |
Matricular-se
(na faculdade ?) |
15 d |
27/03/1769 |
José Lourenço |
Sertã |
Trabalho de
almocreve |
1 m |
21/04/1769 |
João Dom.
Araújo |
Castelo de
Vide |
Comprar cal |
1 m |
02/06/1769 |
Manuel Mendes
e Remualdo de Proença |
Alentejo |
Ir às ceifas |
2 m |
05/01/1770 |
António José
da Costa |
Lisboa |
Visitar a mãe |
1 m |
17/04/1771 |
José Leitão |
Porto |
Tratar de
assuntos de seu amo, Francisco Caldeira |
1 m |
05/03/1773 |
Domingos
Marques (ganhão) |
Lisboa |
Fazer
negócios à corte |
2 m |
24/01/1775 |
José Vaz |
Abrantes e
Punhete (atual Constância) |
Comprar
bacalhau para as religiosas do convento |
25 d |
24/03/1775 |
Manuel Mendes |
Marvão |
Cobrar rendas
das religiosas do convento |
19 d |
| ||||
27/01/1779 |
Serafim
Esteves |
(?), bispado
de Lamego |
Regresso à
terra (trabalhara como mestre no lagar do Ramalhoso) |
|
02/06/1779 |
José Luís de
(?) |
Penacova |
Comprar cera |
1 m |
28/07/1780 |
José Cruz |
Comarca da
Guarda |
Pedir esmola |
6 m |
06/04/1788 |
Manuel
Lourenço (?) |
Roma |
Pedir
dispensa papal para casar com uma prima |
6 m |
09/07/1790 |
P. José
António Fernandes |
Santiago da
Galiza (Compostela) |
Não consta |
2 m |
01/04/1791 |
Manuel
Joaquim Ribeiro |
Brasil |
Tratar da
herança de seu tio |
1 ano |
08/06/1792 |
João Patrício
Leitão (barbeiro) |
Lisboa |
Praticar (o
ofício de sangrador?) no Hospital Real |
6 m |
20/07/1798 |
Joaquim
Milagre |
Porto |
Levar o
cavalo do Juiz de Fora que ficara cativo |
1 m |
05/08/1798 |
Luís Machado |
Almeida |
Tratar da
licença do filho, soldado no R. Cavalaria de Almeida |
1m |
27/08/1798 |
Manuel do
Espírito Santo |
Olivença |
Visitar seu
filho, soldado naquela Praça |
1 m |
02/09/1799 |
(?) Fernandes |
Castelo
Mendo, Guarda, e Santo Estêvão? |
Cobrar as
rendas de D. Benedita, sua ama |
1 m |
10/04/1800 |
Paulino
Mendes |
Campo Maior |
Procurar um
irmão que diziam ter morrido |
1 m |
A amostra é pequena e pode não dar uma
ideia clara quanto aos objetivos das viagens, mas no documento original percebe-se
que a maior parte das pessoas viajavam em negócios, à procura de trabalho
(principalmente para o Alentejo no tempo das ceifas), para acompanhar os
patrões, ir a feiras comprar matérias primas (solas, panos ou cera) ou animais,
por motivos relacionados com o serviço militar, para pedir esmola, visitar
familiares ou regressar à terra de origem depois de terem trabalhado em várias
atividades em SVB. Uma nota curiosa: as religiosas do convento enviavam, quase
mensalmente, um criado a Marvão cobrar as rendas que lhes eram devidas. Há também
várias referências a negociantes que iam a Lisboa vender castanha e azeite. Nessa
altura a viagem até à capital demorava dois meses (ida e volta).
Quanto aos destinos mais frequentes, nota-se uma procura bastante elevada de várias localidades do Alentejo, mas também de Lisboa, de Coimbra, do Porto e várias outras terras entre o Douro e o Tejo. Interessante a viagem de Manuel Lourenço a Roma a requerer a dispensa papal para casar com uma prima, ou a de Manuel Joaquim Ribeiro, ao Brasil, para tratar da herança de um seu tio, que era padre, autorizadas por seis meses e um ano, respetivamente.
Viajantes
“estrangeiros” (de fora do concelho)
Sobre os viajantes de outras partes do Reino que se deslocavam a São Vicente ou por cá passavam com rumo a outras localidades, sabe-se que eram obrigados a apresentar o passaporte emitido pela autoridade da sua comarca, devidamente visado nas localidades por onde já tinham passado. Os dados constantes do passaporte eram anotados em livro rubricado por uma autoridade local, igualmente o Juiz de Fora ou o Administrador do Concelho.
Os registos disponíveis mostram que
durante o ano passavam por São Vicente algumas dezenas de pessoas vindas de
vários pontos do reino (1825 – 56, 1826 – 66, 1841 – 51, 1842 – 48, 1843 – 54,
1844 – 64, 1845 – 54), embora nem todos tivessem a Vila como destino. Eram
sobretudo almocreves, negociantes, feirantes, criados de servir, tendeiros,
artesãos (caldeireiros, peneireiros, cereireiros) e mendigos; mas também há
referência a ourives, capadores, quinquilheiros e religiosos (um registo de
agosto de 1853 diz que o padre José Bernardo Ribeiro, de Almaceda, foi “a
banhos da Figueira”).
Um facto relevante nestes registos, é
que os viajantes eram todos homens, sendo que as mulheres apareciam apenas como
acompanhantes, ou, muito raramente, no caso de serem viúvas, podiam requerer
passaporte e viajar acompanhadas por algum familiar mais velho ou pelos filhos.
Não admira que fosse assim nesse tempo; o pior foi a situação ter-se prolongado
por tantos anos.
Este modo de viajar, que se manteve até
há pouco mais de um século, não seria muito diferente do que acontecia na Idade
Média ou até antes. Entretanto as mudanças foram enormes. Já quase com os
nossos avós, o aparecimento do comboio, seguido do automóvel e do avião, e a
abertura de estradas e autoestradas em qualquer bocado de terra tornou o mundo
mais pequeno; uma viagem que demorava muitos dias a concluir faz-se agora em
poucas horas e a vida das pessoas ficou mais fácil - para o bem e para o mal.
Daqui por uns anos se verá em que proporção…
M. L. Ferreira