quarta-feira, 26 de junho de 2024

A MEMÓRIA DO CAMINHO DA FONTE FERREIRA com sapatos à mistura

Fonte Ferreira, atualmente. No passado, era uma fonte de mergulho.

Da minha casa vê-se este caminho.

Não a Fonte Ferreira, mas o caminho, a Barreira de São Francisco quase toda.

À Fonte Ferreira vinhamos buscar água para beber, que guardávamos em cântaro de barro - em todas as cantareiras, em todas as casas havia um cântaro de barro, para a água de beber.

Também se bebia água no local, joelho em terra, o nariz dentro da poça, a água tantas vezes a entrar tanto na boca como no nariz.

No Inverno a Fonte quase sempre desaparecia, era preciso refazê-la quando acabavam as enchentes de Inverno na Ribeira.

A água para outros gastos de casa era apanhada ali em cima, do lado de cima das passadouras, mesmo depois de fazerem a Fonte do Casal.

Isto só mudou, nesta parte, para quem morava do lado de baixo da Estrada, quando, muito mais tarde, se construiu uma outra Fonte, no lado de cima da Quelha, na junção com o caminho que agora se chama travessa ou rua dos Nicolaus, fonte essa mais recentemente destruída, quando passou a haver água canalizada nas casas.

Do lado do Casal, este caminho chamava-se A Quelha; do lado da Vila, Barreira de São Francisco.

E a ribeira, pelo menos lá em casa, era a daqui, a Ribeira das Passadouras, e ali em baixo, a Ribeira da Azenha. O nome desta vinha do que todos conhecem como Lagar do Zé Mesquita, para nós uma edificação que fazia parte da história da família: ali tinha sido uma azenha, de moer cereal, a minha avó Encarnação era a Moleira, e ali na Azenha lhe nasceram vários filhos e filhas, incluindo a minha mãe, a mais nova. Por isso, àquele edifício, ouvi muitas vezes chamar "a nossa Azenha".

Tenho memórias muito vivas associadas a este caminho:

- os peixeiros da Vila, quando o peixe chegava a SVB, de caixa às costas, descendo a correr, do lado de São Francisco, apregoando o que levavam, para chamar os fregueses do Casal, a começar pelos da parte de baixo da Estrada, tudo fazendo para serem os primeiros a chegar à "Charneca" - o Maiaca, a Palmira Sardinheira, António Brocha, creio que o Pinura,..."Dois, 25 tostões", o chicharro, em certa altura; "Fresca e boa! Olha que é boa e barata", se era sardinha que levavam;

- os grupos, aos 3 e aos 4, às vezes mais, nos domingos, a caminho da missa - víamos eles descerem a Quelha, subindo depois ali do lado de São Francisco;

- as "passadouras", que a ponte é um melhoramento recente, creio que posterior ao 25 de Abril. E as enchentes da ribeira, que deixavam as passadouras intransitáveis - e lembro-me de ver o meu pai a passar às costas, em dia de missa, várias mulheres, do lado do Casal para o da Vila;

- ainda nos domingos - é uma memória de Verão - homens bêbados, virem de lá para cá, naquele estado, em graus diversos: foram à missa, trataram de algum pendente à saída da igreja, encontraram-se com este e aquele, "vai um copo?", o estômago em geral vazio, e regressavam a esta banda alguns em péssimo estado. O bêbado mais notório do Casal era o tio António Tota - lembro-me de o ver, dali da minha casa, sentado numa pedra, ali no cimo do Covão, em grande cantoria, dizendo de vez em quando "Eu sou o Tota", e chamando em altos berros: "Oh, Maria Amália", era a mulher, fula, com razão, fechada em casa, e ele por lá ficava naquilo...;

- muito viva ainda, a imagem das escadas do Calvário, ainda nos domingos, pejadas de gente, homens também, mas principalmente mulheres. Era o local e a hora de as mulheres mudarem de calçado, trocando os sapatos velhos, botas ou sandálias, cobertos de pó e lama do muito caminho andado, por "calçado de ir à missa"; no regresso, no mesmo sítio, voltavam ao "calçado de andar", para demandarem Pereiros, Mourelo, Partida, e não sei que mais. E eu, vendo-os, tinha um sentimento meio indistinto, acho que um misto de pena (acho que por sabê-los pobres) e de vergonha! Sei lá porquê, na verdade.

E por falar de calçado, há que falar de andar descalço. Na minha escola primária, havia miúdos que iam descalços à escola. Até me lembro da inveja que tinha, quando se jogava à "Espada Lua", em que é muito importante a velocidade de corrida, a inveja que eu (que era um cepo a correr) tinha de um outro miúdo, que corria muito - e eu associava o "correr muito" ao facto de ele andar descalço.

Também havia adultos que andavam descalços. Destes, a memória mais presente é de uma senhora que todos os dias, ou duas a 3 vezes por semana, fazia o caminho, a pé, de SVB para as Anexas - Pereiros, Mourelo, Partida - levando e trazendo o correio. Tenho ainda muito viva a imagem dessa senhora, cabeça, tronco e membros, o porte e o jeito de andar, mas ainda estou a ver, especialmente, os pés dela... Era a tia Maria Chamiça.

...

Se não tivesse já falado muito, ainda vos contava como eu e o meu irmão Artur fomos apresentados, aqui neste local, às batatas doces - que, de todo, não conhecíamos! -, e uma certa aventura de um martelo de brincar que me saiu numa rifa, cujo prémio maior era uma cobiçada bola de borracha, martelo esse que eu, a descer a Barreira de São Francisco, não tive coragem de deitar fora.

Casal da Fraga, 23 de Junho de 2024

J. Miguel Teodoro (que também assina Sebastião Baldaque)

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Conta-me histórias do Casal da Fraga

Foi um bom passeio, com muitas histórias para partilhar!

Comecemos pelo fim:

No final, na taberna do Marcelino, esperava-nos um bom lanche, para retemperar forças, e cadeiras para descansar as pernas. Obrigado pela generosidade!

Recordámos a ti Pulquéria e falámos da origem do nome Fraga.


Na capela de Santa Bárbara, o João Barroso, a Libânia Ferreira, o José Manuel dos Santos e o José Teodoro partilharam as informações que a tradição e os documentos nos dão sobre a trasladação da capela do Valouro para aqui, em 1932.


Antes, tínhamos ouvido a Fátima Jerónimo falar da fonte de mergulho que existia por baixo da ponte ao fundo da rua do restautante da Mila. Finalmente, existe a promessa do seu restauro. E contou outras histórias, logo secundada pelo João Maria dos Santos.


Aqui, à sombra de um sobreiro, no alto do Casal do Baraçal, o António Pereira protestou por quererem estender o nome da rua (Eduardo Cardoso) pelo casalito adentro, acabando ali a urbanização da Devesa: é Rua do Casal do Baraçal! 

E tendo à nossa frente quase todo o vale do antigo casal do Monte do Surdo, o José Teodoro falou sobre a importância deste casal do Conde de São Vicente, no passado. 

Na ribeira, antes de subir para o Casal do Baraçal, a Libânia Ferreira, a Luz da Esperança, o José Teodoro e o João Manuel dos Santos contaram a história da guerra das lavadeiras, em 1970, quando Castelo Branco começou a beber a água da barragem do Pisco.


E aproveitando a sombra dos amieiros e o fresco da ribeira, o António Pereira partilhou connosco o processo judicial de que ele e outros habitantes do Casal do Baraçal foram alvo por se recusarem a deixar de passar no caminho que dali os levava à Vila, no tempo do Vila Franca, do Cavaco Silva e do Mário Soares.

hj

Na Fonte Ferreira, o José Miguel Teodoro contou as suas vivências pelas geografias em torno da fonte.
 

Antes, um pouco mais acima, onde começámos, falou-se da aventura que era atravessar as passadouras em dias de enchente, da sua substituição pelo pontão e de outras histórias que a ribeira guarda e só nos conta se lhe souberemos perguntar.

Aqui participaram tantos! Se não estiveram lá, terão de esperar pelas suas histórias, quando eles as passarem para o papel (como o João Maria já fez).


E voltando ao final, aqui a caminho da taberna do Marcelino, agora da Amália.

José Teodor Prata

Fotos de Francisco Barroso e Maria da Luz Teodoro

quinta-feira, 20 de junho de 2024

Conta-me histórias, 4 - Casal da Fraga

(Agradece-se partilha, noutrras redes sociais)

José Teodoro Prata
 

domingo, 16 de junho de 2024

Santa Pulquéria

Este texto já foi aqui publicado, mas voltamos a ele, porque é muito bonito e bom para vos abrir o apetite para a 4.ª tertúlia do Conta-me histórias, desta vez no Casal da Fraga, no próximo domingo.

“Olha lá cachopos, se vandes pra Lisboa e virendes por lá a minha ‘sabel, dai-lhe recomendações nossas!”

“Nossas” era como quem diz, da tia Pulquéria e do irmão da Isabel, ambos moradores numa casa que já foi abaixo, pedra em cima de pedra, com um balcão que dava para a estrada, no que eu sempre acreditei ser o lugar mais soalheiro do nosso Casal da Fraga.

Já grandes e com a arrogância que o cosmopolitismo aparentemente confere, sorríamos e acenávamos que sim, incapazes de compreender tanta simplicidade – é mesmo desarmante, a simplicidade, não é?

A mesma inocência com que, depois das pregações da Semana Santa, quando, regressados da igreja, descíamos a barreira de São Francisco, a tia Pulquéria repetia partes inteiras do sermão, exaltando a beleza de um gesto bíblico ou o sentido de uma parábola, que ela retivera e a nós, adolescentes de fresco, soava a prosa infantil. “Não é tão lindo, cachopos?”, ouvíamos ela dizer. Nesses dias, por causa das exéquias, ela calçava uma espécie de sapatos de pano – pretos, com uma presilha que abotoava de lado.

Nunca, que eu saiba, houve pessoa mais pura neste mundo.

Incapazes de perceber, pequenos e grandes, à uma, fazíamos pouco dela: do porco foçador, já com oito ou nove anos, que por vontade da dona nunca iria à faca; ou da pressa com que se mexia – ela não andava, corria, porquê? se não se lhe conhecia sombra de compromissos ou obrigações; ou do xaile ou pano preto com que sempre se cobria, já em muito mau estado; ou da horta e da criação que não tinha. E do afilhado, já homem e de bom físico, que a madrinha não deixava trabalhar, ao dia, porque se cansava, ou da limpeza por fazer, tanto da casa, como do corpo de passarinho; ou, ainda, de ela ter uma interpretação literal das parábolas da Bíblia ouvidas na igreja, e de, na sua ideia, Lisboa ser apenas um pouco maior do que São Vicente.  Sem semear, nem colher, interrogava-se o senso comum, que éramos nós todos, de que é que viviam aqueles dois pobres de Cristo – por que milagre, sem um vintém a entrar-lhes em casa?

Pobre de espírito ouvi chamar mais de uma vez à tia Pulquéria, uma senhora que, nós já adultos, ainda nos chamava “meninos”, para quem a pobreza era como se não fosse – antes, uma condição natural vivida com amorosa ingenuidade.

Em boa verdade, tal transcendência, para mim, foi durante muito tempo um caso de santidade. Hoje, mais incomodado com o conforto das certezas do que com o desconforto da dúvida, não vou tanto por aí. Ainda assim, guardo dela uma memória feliz, e isso para mim é mais importante que as questões da santidade.

Sebastião Baldaque

SET. 2022

quinta-feira, 13 de junho de 2024

No tempo das cerejas

Ao lado da casa dos meus avós, no Casal, havia duas cerejeiras. Todos os anos carregavam tanto que às vezes até esnocavam alguns ramos. Eram tão altas que só os rapazes conseguiam trepar por elas, mas, para nós, o meu avô arrumava-lhes uma escada, mal as cerejas começavam a ficar encarnadas, e só a tirava muito tempo e grandes barrigadas depois, quando até as passas já tínhamos comido, a meias com os pardais.

Era um tempo farto, e em que até as raparigas também ficavam mais bonitas, enfeitadas com os brincos novos todos os dias.

Contam que a Amália Rodrigues, que terá nascido no Fundão, não foi registada logo à nascença por falta de meios dos pais. Tempos mais tarde, quando a mãe a quis registar e lhe perguntaram a data de nascimento da menina, terá respondido: «Foi no tempo das cerejas». Isto prova que vem de longe a importância da cereja na economia da região.

ML Ferreira

Fotografia de Diamantino Gonçalves

terça-feira, 11 de junho de 2024

Conta-me histórias, 4 - Casal da Fraga

 

Agradece-se partilha nas redes sociais.

José Teodoro Prata

Eleições europeias, 2024

Resultados na freguesia de São Vicente da Beira:

PS - 39,55%

AD - 32,58%

CH - 8,54%

BE - 5,05%

IL - 3,31%

ADN - 2,26%

PCP-PEV - 1,92%

L - 1,57%

José Teodoro Prata