terça-feira, 20 de agosto de 2024

Luz para o Casal da Fraga

Era uma grande tristeza que a gente sentia quando víamos as luzes acenderem-se do outro lado da Ribeira, mesmo ali à nossa frente! A Vila parecia um cantinho de céu estrelado, e do lado de cá, à noite, as ruas eram um negrume e as casas alumiadas só pela luz das candeias e dos candeeiros a petróleo. Era uma injustiça! Constava-se que a culpa era do Manuel da Silva, que disse que São Vicente acabava na casa onde tinha a garagem, logo a seguir ao Posto. 

Quando começaram a dizer que o Governador Civil e outros grandes de Castelo Branco vinham cá para a inauguração, resolvemos ir esperá-los com o nosso rancho para lhes pedirmos também a luz para o Casal. E também precisávamos de um tanque, que não tínhamos onde lavar a roupa. A partir daí, cachopas novas e mulheres já casadas, mesmo as que andavam todo o dia no campo ou na resina, como era o meu caso, não tivemos um serão de descanso: eu e a minha mãe, que estávamos mais acostumadas, começámos a escrever os versos (ainda chegámos a ir a casa do senhor Zé Lourenço a pedir a opinião dele) e também fomos nós que ensaiámos a marcha; as que sabiam de costura foram ao Sobral comprar a chita e talharam e coseram os fatos; outras foram ao Valcaria arranjar o vime para fazer os arcos. Ainda me lembro que foi a Maria Papoila que foi à lenha para aquecer o forno, e era lá que os iam moldando até terem a forma certa. Depois ainda tiveram que os enfeitar com flores de papel às cores. Quem não podia ajudar com trabalho dava dinheiro, que ainda se gastou muito. Só para petróleo cada uma de nós deu vinte e cinco tostões.

No dia da inauguração saímos aqui do Casal e fomos até à ponte, que já lá tínhamos a Banda à nossa espera. Depois seguimos todos em cortejo (havia outros ranchos, mas o nosso era o que ia à frente) até à barreira do hospital, e foi lá que esperámos os carros que vieram de Castelo Branco. Também já lá estava a gente mais importante cá da terra e muito povo que veio da freguesia toda.

Mal saíram dos carros, a Maria de Deus da Ti Lucinda e o meu Mário entregaram um ramo de flores ao Governador Civil e começou logo tudo a andar. Era um mar de gente: os grandes à frente, depois a Banda e os ranchos; no fim ia o povo a bater palmas e a dar vivas.

O que estava combinado era que, depois de dar a volta pelas ruas, ia toda a gente para a Praça, as entidades subiam até ao balcão da Casa da Câmara e os ranchos desfilavam cá em baixo. Mas não houve tempo: de repente começa a chover (estávamos em abril…), e eles começaram logo a correr para dentro. Foi lá que fizeram os discursos e no fim comeram um grande banquete que tinham à espera.

Os dos ranchos, cá fora, ficámos todos molhados e com os arcos a desfazerem-se. É claro, começou tudo a abalar. Nós também já íamos embora, mas apareceu o senhor António Prata e disse-me que não fosse, que subisse, que o senhor Governador Civil queria ouvir a nossa cantiga. Eu levava uma candeia de azeite na mão, para mostrar como é que a gente ainda se alumiava, e o papel com os versos (quem os tinha passado a limpo até tinha sido o Sebastião, que a letra dele era mais bonita que a nossa), e cantámos, para quem lá estava: 

Esta nossa freguesia

Que pra nós é a primeira

Bem-vindos sejam senhores

A São Vicente da Beira

 

Nós somos de São Vicente

É de cá que queremos ser

Se somos independentes

É sem a gente saber

 

O rancho do Casal da Fraga

Vem pra cantar e rir

Nós não lhes vimos dar nada

Vimos só pra lhes pedir

 

Ó senhores governantes

Tão agradáveis no trato

Recebei as homenagens

Das terras que há pelo mato

 

Ó senhores governantes

Concelhio e distrital

Corações de diamante

Almas de puro cristal

 

Lembrai-vos dos pobrezinhos

Dos pobres aqui é claro

Que necessitam carinho

Precisam do vosso amparo

 

Ó senhores governantes,

Homens de bom coração

Atendei os nossos rogos

Tenham de nós compaixão

 

Pedimos a vossas excelências

Que mais têm pra nos dar

Também lhes queremos pedir

Uns tanques para lavar

 

O Casal já é tão grande

Está entre meio de flores

Quase não se veem as casas

Tem oitenta moradores

 

O Casal da Fraga é tão lindo

Mas está tão desprezado

Tudo lá é noite escura

Só o centro iluminado

 

Queremos-lhes dizer senhores

Neste meio resplendente

Aqui não há distinção

O Casal é São Vicente

 

Também lhes queremos dizer

Que em S. Vicente da Beira

Obra de tanto valor

A nossa querida bandeira

 

A nossa querida bandeira

Obra de tanto valor

Pena que ela não tenha

O seu melhor conservador

 

Dizemos a vossas excelências

São Vicente é um espelho

Pedimos junto à bandeira

O nosso querido concelho

 

Nosso querido São Vicente

A quem temos tanto amor

Nós temos em São Vicente

Obras de tanto valor

 

Já cá temos uma escola

E temos um hospital

O que nos faz muita falta

É uma casa paroquial

 

A Vila de São Vicente

Como ela não houve igual

Foi onde deram entrada

Os primeiros reis de Portugal

 

A Vila teve outro nome

Terra de tantos regalos

O transporte que os trouxe

Foi montados em cavalos

 

Viva o senhor vigário

Que nos dá o seu carinho

Vivam todos em geral

E o senhor engenheiro Martinho.

Ao fim bateram-nos palmas e o senhor Governador Civil disse que tinha gostado muito, se podia levar o papel com os versos e a candeia, que era muito bonita. Ela nem era nossa, que a tínhamos ido pedir emprestada ao lagar do César, mas não tivemos cara para dizer que não. 

Nota: Esta história foi-me contada, mais ou menos como a deixo, pela Isabel do Chico da Azenha, que, com a mãe, a Ti Luz do Valcovo, fez os versos e ensaiou o rancho com que o Casal da Fraga se apresentou em abril de 1969, na inauguração de alguns melhoramentos feitos na Vila. Passados dois anos, a luz ainda constava duma lista de prioridades das obras a realizar na freguesia. Acabou por chegar quatro ou cinco anos depois, mas os moradores do Casal, entre todos, tiveram que pagar oitenta contos…

Os versos foram transcritos com algumas alterações da ortografia. Teria sido interessante apresentar cópia do original, mas o documento está muito danificado e parte do texto já se lê com dificuldade.

ML Ferreira

domingo, 18 de agosto de 2024

O nosso falar: comua

Ontem, de regresso a casa e a este blogue, houve um pequeno problema técnico no avião que me trazia, e a viagem demorou mais meia hora do que as duas horas e meia previstas.

Como vinha no banco fundeiro, local onde se situava uma das casas de banho, na última hora foi tal o acumular de pessoas no corredor, à minha volta, que exclamei para a minha gente:

- Pensam que isto é alguma comua!

Se estivesse em São Vicente da Beira, mandava-os para a Devesa, que era para onde os adultos mais rezingões mandavam as crianças e adolescentes que os incomodavam com correrias, algazarras, jogos da bola ou andar de bicicleta na praça ou pelas ruas da nossa terra.

A Devesa era o nosso baldio na encosta oeste da Ribeirinha, mesmo em frente à Vila. Comua vem de comum e comuna, não tendo esta necessariamente apenas significado o político-ideológico a que atualmente está reduzida. Aliás, o termo e o significado têm já muitas centenas de anos.

A minha mãe usava esta palavra em sentido pejorativo, um local ou uma situação com muita gente, em que se fazem coisas não muito graves, mas negativas, tipo bandalheira, anarquia.

É provável que este significado tivesse origem na campanha do Estado Novo contra a ideologia comunista. A esmagadora maioria das pessoas não percebia nada do assunto, mas a campanha das mais ilustres figuras do Estado e do Partido, mesmo a nível local, era tão intensa que alguma coisa ficava na mentalidade do povo.

Há poucas semanas, fiquei impressionado com as muitas referências deste tipo presentes na poesia do nosso poeta José Lourenço. Mesmo que não viesse a propósito, a certa altura do poema lá conseguia encaixar um louvor a Salazar, à excelência do Estado Novo, que nos salvavam do Mal!

José Teodoro Prata

quinta-feira, 18 de julho de 2024

Jornadas Europeias do Património, 2012

 Foram assim as nossas jornadas, em 2012, há 12 anos. Este ano vamos realizá-las a 22 de setembro, na Partida. Estamos todos convidados!

Primeiro, a nossa banda deu as boas vindas às individualidades, na Praça.


Seguiu-se a sessão solene, nos antigos Paços do Concelho. No uso da palavra, a diretora do Agrupamento de escolas de Alcains e S, Vicente da Beira; na mesa, o presidente da Junta, João Prata, o presidente da Câmara, Joaquim Morão, e a presidente da AHP, Isabel Cabral.


No casa Hipólito Raposo, apresentei (José Teodoro) uma exposição sobre os vicentinos mais ilustres, de acordo com o tema das Jornadas ( As Memórias).


Na Rua do Convento, à porta da casa onde viveu Maria de Lourdes Hortas, recitou-se a sua poesia (ainda as Memórias).


O rancho animou a festa, momentos antes do magusto (mais Memórias).



E os bombos encerraram a festa (sempre as Memórias). Uma tarde bem cheia!

Não sou nostálgico. Se o fosse, escreveria que eramos felizes e não o sabíamos!

José Teodoro Prata

segunda-feira, 15 de julho de 2024

A taberna da Amália

 É o lugar mais conhecido do Casal (quando mo perguntam e digo que moro em frente da taberna da Amália, ficam logo a saber onde é a minha casa), mas a fama já vem do tempo do pai, quando ainda era a do Marcelino, com outro ar e outra freguesia.

Atualmente é ponto de encontro, quase só de mulheres, para um café e dois dedos de conversa; nas tardes de verão há quem se demore na esplanada a beber um cai-bem, refresco feito com uma mistura de refrigerante gasoso e xarope de groselha, receita caseira. Mas isto são coisas dos tempos modernos, que, há pouco mais de cinquenta anos, nenhuma mulher se atrevia a entrar na taberna, mesmo que fosse para ir chamar o homem, esquecido a matar a sede depois de uma tarde de domingo a jogar à malha. Por isso mandavam os filhos, se já se fazia tarde para a ceia, que às vezes também eram encorridos para casa, apenas pelo apontar de um dedo e o olhar esbugalhados de quem quer afirmar a autoridade do chefe da família. Eles iam ficando sempre mais um pouco…  

Mas havia o Ti Miguel Jerolme, um andarilho toda a vida, sempre de um lado para ao outro à procura das melhores rezes para criar ou vender a quem lhas rogasse nos mercados e nos talhos. Era uma paz d’alma, amigo de toda a gente; também do Ti Marcelino, quase da mesma criação.

Quando deixou de andar por lá, no negócio do gado, era raro o dia em que não aparecesse no Casal, quem sabe se num chamamento do coração ao ninho onde se criou, ali a dois passos, e ficava até se fazer noite, entremeando a conversa com mais um copinho. Vendo-o magrito, não fosse o vinho cair-lhe na fraqueza, a Tia Trindade oferecia-lhe muitas vezes uma bucha, quase sempre um bocado de pão com uma mancheia de azeitonas ou uma talhada de queijo, e ele não dizia que não.   

Quando começava a passar da hora, ia-lhe dizendo: «É melhor ir andando, Ti Meguel, que se faz tarde e a sua mulher já deve estar ralada…». Mas ele nunca tinha pressa de abalar: «Já vou…», e ia-se deixando ficar, sentado num dos bancos corridos encostados à parede. Até que, já noite escura, aparecia a Tia Laurentina com a lanterna na mão, e parecia ele que via Deus: levantava-se logo, com a alegria de uma criança confiante na mãe e, com o equilíbrio possível, caminhava atrás dela, pela vereda que os levava até casa, no outro lado do ribeiro. E era assim, muitos dias…

Após a morte da Tia Laurentina, foi a Chão, a última das filhas em casa, que, com a mesma dedicação e amor da mulher, lhe serviu de estrela, alumiando-lhe as noites escuras no regresso, desde o Casal da Fraga da sua infância, até ao Casalito onde se tinham criado os dez filhos que Deus lhes deu.

 O Casal do Baraçal, já tão diferente, visto do Casal da Fraga (apenas as casas em primeiro plano, ao fundo é já a Devesa)

Nota: O senhor Miguel Jerónimo nasceu no Casal da Fraga, em 1905, numa casa duma travessa da rua de Santa Bárbara, uma das mais antigas do Casal, que ainda é habitada. Era filho de António Jerónimo Lopes, já aqui nascido, e de Maria Josefa, natural dos Pereiros. Teve oito irmãos. À exceção de uma irmã, todos se criaram, casaram e terão tido filhos. Do casamento com a senhora Laurentina Hipólito teve dez filhos, todos criados até à idade adulta, e só o Padre Zé e a Conceição (Chão) não deixam descendência. Será, por isso, uma das famílias com mais parentes em São Vicente. Faleceu em 1 de junho de 1981, poucos anos depois da mulher.

ML Ferreira

sábado, 13 de julho de 2024

Taberna Vicentina

Foi em fevereiro de 2013. A Junta de Freguesia (não sei se mais alguma instituição) organizou uma tertúlia na casa Hipólito Raposo. Foi bonito. De vez em quando alguém recorda aquele convívio!

Foi tudo perfeito: taberna, comida, boa disposição, histórias...









José Teodoro Prata

terça-feira, 9 de julho de 2024

Casal da Fraga

O Casal da Fraga não é um casal mas três: Casal do Baraçal, Casal da Fraga e Casal dos Ramos. Num passado recente existia ainda o Casal do Monte do Surdo, que agora sobrevive apenas nas cadernetas prediais, estando na linguagem comum incorporado no Casal da Fraga.

Há cerca de 300 anos, haveria apenas uma família de proprietários em cada casal (exceto no do Baraçal, que não surge nas fontes).  Todo o vale onde corre o ribeiro que atravessa a estrada perto do entroncamento para os Pereiros e Partida era propriedade do Conde de São Vicente, sendo a mais rica das que tinha na freguesia. Os rendeiros viviam na casa, agora em ruínas, que existe um pouco abaixo do referido entroncamento. O mais ilustre destes rendeiros foi João Rodrigues Lourenço Caio, natural do Louriçal, que casara com a filha do rendeiro anterior, José Leitão Paradanta. Chegou ao importante cargo local de Capitão de Ordenanças da Vila, no tempo das Invasões Francesas (1807-1812).

No Casal da Fraga, numa casa que existiria na zona da atual residência do Comissário Barroso ou nas proximidades, moraria Duarte da Fraga, cerca de 1700, e outros Fragas ali continuaram a viver, ao longo de todo o século XVIII. Na casa em frente, que foi do sr. Miguel Leitão e hoje é do filho Pe. José Augusto, existem as mais antigas oliveiras de São Vicente. Fraga designa uma rocha ou uma forja de ferreiro. Qual destas terá dado o nome ao casal? Ou nenhuma delas e Fraga vem do apelido familiar desta família que ali viveu, com esse apelido, mais de um século?

Do Casal dos Ramos veio a esposa de Manuel Rodrigues Fraga, chamada Luísa Maria Leitão (nascida cerca de 1750), o que nos permite concluir que ali viveria pelo menos outra família.

Certo é que o casal foi crescendo, beneficiando do estrangulamento urbano provocado na Vila pelas casas senhoriais que detinham a maioria dos terrenos em redor da povoação: Casa Cunha, Visconde de Tinalhas e Casa Conde.

Em 1970, um ano após a passagem do Presidente do Conselho pela Vila, a inaugurar a barragem e os melhoramentos que a acompanharam (eletricidade e redes de água e esgotos), os habitantes do Casal decidiram que já era tempo de acabar com um dos maiores perigos que haviam vivido durante séculos: a travessia da ribeira pelas passadouras. Fizeram um peditório entre si e contruíram um pontão sobre a ribeira, mais tarde alargado pela Junta de Freguesia. Só o projeto custou 100 contos! E quando começaram as multas por lavar roupa na ribeira, as mulheres do Casal foram com as da Vila numa camioneta a Castelo Branco, falar com o Governador Civil e o Presidente da Câmara. Não ganharam lavadouros, como as da Vila, mas não houve mais multas.

Anos depois, com a Vila já eletrificada, tiveram de pagar do seu bolso a rede de postes e fios que finalmente levou a eletricidade a suas casas. Até 1980, dos poderes talvez apenas tenham recebido de graça a fonte que a junta edificara, em 1960, no que ficou a ser chamado o Largo da Fonte. Até o pequeno pontão para o Casal do Baraçal, sobre o ribeiro que desce do Monte do Surdo para a Ribeirinha, foi construído pelo António Pereira.

Atualmente, o Casal da Fraga tem arruamentos pavimentados, redes de água e esgotos, muitas casas novas ou recuperadas, uma fábrica de engarrafamento de água, um restaurante, uma taberna, uma associação que organiza a festa da Santa Bárbara, com sede própria, e ganhou o estatuto de uma povoação autónoma e não apenas um sítio da Vila. Tem pouca população jovem, como todo o interior, mas mantém o espírito bairrista e ativo que sempre o caraterizou.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 4 de julho de 2024

A revolta das lavadeiras

Terão muito de fantasia as memórias dos dias felizes da infância, quando acompanhava a minha mãe à Ribeira para a lavagem da roupa da semana (na verdade, não seriam dias fáceis, principalmente se era inverno).

Chegávamos cedo, pela fresca, para apanhar a água mais funda e a pedra maior, mas, às vezes, os melhores lugares já tinham em cima alguma peça de roupa deixada de véspera ou de madrugada, sinal de que o lugar estava guardado. Normalmente esse sinal era respeitado, se não, podia ser pretexto para grandes discussões e zangas entre as mulheres.

E não tardava que as margens, ao longo da Ribeira, se enchessem de lavadeiras, de pés enfiados na água ou ajoelhadas em pedras que cobriam com alguma peça de roupa grossa para tornar menos penosas as horas passadas naquela posição, a ensaboar, esfregar, passar por água, ensaboar de novo… até que a relva, à roda, se enchia de roupa a corar. Enquanto esperavam, as conversas fluíam sobre as coisas da vida, algumas vezes da vida alheia, que as delas pouco tinham para contar…

Nós, as crianças, divertíamo-nos a chapinhar nos açudes, a fingir os primeiros gestos de nadar ou a perseguir libelinhas e alfaiates, que quase sempre corriam mais que nós; os rapazes pescavam, um anzol improvisado na ponta de uma linha presa a uma cana. Naqueles dias, de combinação arregaçada e água pouco acima dos tornozelos, via-me na praia da Nazaré ou da Figueira da Foz, coisa de ricos, de que mal tinha ouvido falar, mas imaginava tal e qual a nossa Ribeira.

Passaram alguns anos, até que em 1966 começaram as obras para a construção da barragem do Pisco, no leito da Ribeira. Foi um acontecimento importante para a nossa terra. Nunca tínhamos visto tantas máquinas e tanta gente junta a trabalhar. A Vila ficou diferente, cheia de pessoas vindas de fora, principalmente do Alentejo. No início todos olhávamos esses estranhos com desconfiança, principalmente porque não iam à missa aos domingos e até nos diziam que era perigoso falar com eles porque eram comunistas; mas a pouco e pouco fomos começando a apreciar outros aspetos da sua maneira de ser, sobretudo a simpatia e facilidade em relacionar-se connosco, que também lhes éramos estranhos. O contacto com pessoas diferentes foi importante para alguma abertura nas mentalidades, ainda muito fechadas, que tínhamos na altura.

Três anos depois de terem começado as obras, em março de 1969, a Barragem foi oficialmente inaugurada pelo Governador Civil de Castelo Branco, mas, para nós, o dia mais importante foi só em setembro, quando cá veio o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano. Nesse dia fomos todos, para lá da Fábrica, receber o Senhor Presidente, e era um mar de gente por aquela estrada fora. Já o conhecíamos do retrato na parede da escola ou das Conversas em Família, mas vê-lo em carne e osso, fora da televisão, era outra coisa e fazia da nossa terra o centro do mundo.

Quando a festa acabou e Castelo Branco e outras povoações aqui à roda começaram a beber a água da Barragem, saiu uma lei que proibia toda a gente de lavar roupa na Ribeira. Sem alternativa, tanto as mulheres da Vila como as do Casal da Fraga não tiveram outro remédio que desafiar a lei e as ordens do guarda-rios, que aparecia quando menos se esperava, fardado a rigor, a impor autoridade. Ao princípio só assentava o nome das mulheres num papel, mas avisava: «Para a outra vez, se a apanho, passo-lhe a multa. Olhe que são oitenta mil e quinhentos!». «Ó senhê Manel, onde é que uma pobre como eu, que nem água tem em casa, vai lavar a roupa de tanto filho?», era a questão de muitas. E o senhor Manuel, o guarda-rios, ia fazendo “vista grossa”.

Mas quando a Maria da Silva e a Celeste Pique foram multadas e levadas a tribunal, enfrentaram o juiz com a coragem de quem tem a razão do seu lado. A Mena, filha da Maria da Silva, diz que ainda se lembra de ver mãe, sentada no tribunal a reclamar: «Se queriam beber a nossa água, tivessem feito a barragem lá mais para cima. A Ribeira é nossa e é lá que havemos de continuar a lavar, que não temos outro sítio!»

Revoltadas com tanta injustiça, as mulheres resolveram ir a Castelo Branco protestar. A Luz “da Esperança” ainda se lembra: «Juntámo-nos todas e alugámos um autocarro, tudo pago à nossa conta, e fomos protestar em frente do Governo Civil e da Câmara. Quem organizou a manifestação e foi falar com o presidente foi o Zé Eletricista, que sabia falar melhor.» O que ele terá dito já ninguém sabe dizer, mas a verdade é que as multas foram retiradas e o processo não seguiu para a frente.

Entretanto a Junta de Freguesia mandou fazer um lavadouro comunitário no Quintalinho, mas deixou as mulheres do Casal sem alternativa à Ribeira. Na Vila, a solução também não foi bem aceite por ninguém. Habituadas a lavar na água a correr, as mulheres não gostaram daquela modernice: a roupa não ficava tão bem lavada nem o cheiro era o mesmo como quando a lavavam na água limpinha e fresca que corria da Senhora da Orada. Segundo se dizia, havia até quem tivesse visto piolhos por cima da água.

E durante anos, continuaram a ver-se mulheres, de bacia à cabeça, a subir e a descer os caminhos dos dois lados da Ribeira. A pouco e pouco, com os tanques de cimento e depois as máquinas de lavar roupa em cada casa, essa visão foi desaparecendo completamente. Hoje é tudo mais cómodo, mas ainda há quem diga que não é a mesma coisa…

Maria Libânia Ferreira