domingo, 31 de janeiro de 2016

A política e a ganância

Quando acabei a quarta classe, tinha dez anos, fui logo trabalhar para Lisboa. Antes de abalar, o meu avô sentou-se comigo na varanda que tínhamos à frente da casa e disse-me assim:
- Olha, filho, toma bem conta deste conselho que te vou dar: tu nunca te metas por lá na política, nem sejas muito ganancioso.
Naquela altura, não percebi o que é que o meu avô queria dizer com aquelas palavras, mas fiquei a pensar nelas e nunca mais as esqueci.
Da minha terra a Lisboa nem é assim muito longe, mas as estradas eram más e as viagens levavam muito tempo. Ainda por cima, nessa noite tinha havido um ciclone, havia muitas árvores caídas e eram os passageiros da camioneta que tinham que se apear e limpar a estrada. Foi um dia inteiro de caminho.
Fui trabalhar para casa dum tio meu que tinha uma mercearia ali para as Janelas Verdes. Era uma das melhores de Lisboa. Vendia de tudo quanto era bom e os fregueses eram as famílias mais importantes: condes, marqueses, embaixadas, grandes negociantes; tudo gente de dinheiro. 
Naquele tempo era costume os fregueses fazerem as encomendas daquilo que precisavam e as casas mandavam os empregados entregá-las à porta. Eram os moços de recados. Era um trabalho duro e, quando havia festas naquelas grandes casas, andávamos carregados que nem burros; mas eu gostava, principalmente quando me mandavam à embaixada da Inglaterra. Davam-me sempre uma gorjeta boa, mas do que eu gostava mais era quando me davam jornais ou revistas. Não percebia nada do que diziam, mas tinham fotografias muito lindas; já tudo a cores. Não era como cá, que era tudo ainda a preto e branco.  
Um dia mandaram-me entregar uma encomenda num sítio para os lados do rio. De repente vejo uma tormenta de homens a correr pela rua fora, com a polícia atrás, à cacetada a eles (ouvi depois dizer que era uma manifestação de estivadores). Fiquei cheio de medo e desatei a correr também e meti-me na primeira porta que encontrei aberta. Não me valeu de nada, porque um polícia veio atrás e desatou à pancada a mim. Ao ver a minha cara de rapazito e o meu ar de pânico é que percebeu que eu não tinha nada a ver com aquilo e até me pediu desculpa. Mas já as cá tinha no lombo…
Quando cheguei ao pé do meu tio e ele me viu a chorar, perguntou o que é que tinha acontecido. Lá lhe contei, como pude, ainda todo a tremer. Ele encolheu os ombros e só disse isto.
- É a política…
Era a segunda vez que ouvia falar nessa coisa da política, mas continuava sem saber o que isso era. Passados uns tempos, quando fui à terra, o meu avô tornou a chamar-me para a varanda e, antes que ele me fizesse perguntas sobre a minha vida em Lisboa, fiz-lhe eu a pergunta que já trazia atravessada há que tempos:
- Avô, o que é que é a política?
- A política, filho, é uma coisa que só serve aos grandes. Para os pequenos, como nós, só serve para levarmos no lombo.
E eu já tinha levado…
Depois perguntei-lhe ainda:
- E o que é que é a ganância?
- A ganância é nós querermos ter mais fatos do que aqueles que precisamos na vida e podemos levar quando morrermos, para não irmos embrulhados num lençol…

M. L. Ferreira


Nota: Esta história passou-se em 1940 e foi-me contada pelo senhor Jaime Costa, um homem que tem muito que contar. 

4 comentários:

Anônimo disse...

Antes da revolução de Abril era perigoso pensar, discordar da politica vigente da época. Mais que dois ou três juntos,era preciso muito cuidado "toca a dispersar"...
Certa vez,eu mais o Zé Augusto estava-mos conversando na praça, "principio dos anos setenta do passado século", tempo veraneio, meia-noite, o sino da torre batia as doze badaladas, não havia mais ninguém no largo; a certa altura, uma mão bate-me no ombro:-olha lá rapaz,tem cuidado com a língua, a tua sorte é sermos amigos do teu pai... era a patrulha da G.N.R. Eu tinha vindo à poucos dias de terras gaulesas,para onde tinha fugido para não ir à tropa, mas as saudades...
Poucos dias passados andava a marchar...
Para terminar; fiquem-se com mais estas:-Os que são incapazes de recordar o passado, estão condenados a repeti-lo. "George Santayana"
A melhor maneira que o homem dispõe para se aperfeiçoar, é aproximar-se de Deus. "Pitágoras".
J.M.S

José Teodoro Prata disse...

É curioso ver como os conselhos de um avô ao seu neto se enquadravam tão bem na mentalidade da época. Catorze anos após o golpe militar de 28 de Maio e sete após a instauração da ditadura do Estado Novo, o povo já aprendera que não se podia meter em política.
E a crítica à ganância (ao lucro) era um velho lema da Igreja Católica, à custa do qual perseguira antigos judeus durante séculos.
Os dois forjaram o lema: humilde e pobrezinho. Ou, como diria o meu primo Chico Pontífice, ser poucochinho.

Anônimo disse...

Encosto-me ao Chico Pontífice (lá em casa, Chico Aranha), aqui citado pelo ZTP, para deixar registado um dito, para mim dos mais fascinantes sobre política, considerando o seu autor, Francisco Franco Bahamonde (escrevo-a, de vez em quando, para não esquecer):«Usted haga como yo y no se meta en política.» À vossa consideração.
JMT

Anônimo disse...

Naqueles tempos, ainda por cima com a 2.ª Guerra Mundial a decorrer e Portugal naquela indefinição, não me admira que o avô aconselhasse o neto a que não se metesse em política. Mas entristece-me muito que, passados tantos anos e tanta gente tenha levado no lombo, continuemos a proceder como se a Política fosse uma coisa só para alguns, e tanta gente fique em casa em dia de eleições.
Quanto à ganância, que bom seria este mundo se todas as pessoas conseguissem ter o que precisam para viver e morrer com dignidade…

M. L. Ferreira