sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Saudade

Dois poemas da escritora Maria de Lurdes Hortas, nascida em São Vicente da Beira, mas radicada no Brasil desde menina.
Lembrança dos que estão longe, divididos entre dois mundos, aquele em que vivem e o que tiveram de deixaram.


DUPLA

Presente aqui.
Ausente além.
E vice-versa, sempre.
Assim, tão dupla
é que sou inteira.


ECO DE GONÇALVES DIAS

Minha terra tem coqueiros
onde pousam rouxinóis.
Minha terra tem pinheiros
onde canta o sabiá.
As aves da minhas terras
cantam cá e cantam lá
sempre ao inverso de onde
as deveria escutar.

Poemas publicados no suplemento IDEIAS, n.º 3, do Jornal do Fundão (04-05-1990)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Mãos mágicas

Eu era já grande e por isso recusei-me dar a faca à minha irmã mais velha, quando ela a veio buscar para ir fazer a ceia. Mas como era ainda demasiado pequeno para a vencer, fugi para a minha mãe, porque ela me agarrou a tentar tirar a faca.
Corri da quelha para casa, a chamar “Ó mãe, a Fátima quer bater-me!”, mas tropecei logo no primeiro degrau do balcão. Bati com o queixo no granito e fiquei com um corte a toda a largura. A minha mãe acudiu e atou-me um lenço do queixo ao alto da cabeça, para estancar o sangue.
Depois levou-me ao hospital. Descemos pela tapada dos Candeias, direitos ao Chão dos Negrinhos, e seguimos pelo caminho ao longo do muro da Casa Cunha, até ao Marzelo e daí para São Sebastião.
Era quase sol-posto, mas a enfermeira ainda estava no hospital, parecia que à minha espera. Desinfetou a ferida, fechou a carne cortada com umas latinhas e tapou-a. Sarou sem mais novidades.
Alguns anos depois, um dia à noite, fui com a minha mãe e as minhas irmãs ver o presépio da Menina Isaura, na escola velha, mesmo ao lado do hospital. E um mundo maravilhoso se revelou aos meus olhos: o presépio numa gruta e em volta tudo o que eu conhecia, mas muito pequenino. Além das pessoas a trabalharem e das casas, havia pedras, musgo, erva e até oliveiras com azeitona. Os lavradores lavravam a terra, os pastores guardavam o gado e as mulheres lavavam a roupa no ribeiro, onde corria água de verdade.
Tudo feito pela enfermeira que anos antes me tratara a ferida no queixo. A confirmar a magia das suas mãos.

Nota: Tenho a ideia de luz de lâmpadas penduradas nuns fios a iluminar o presépio. Ora a eletricidade foi inaugurada em Abril de 1969. Deve ter sido nesse Natal que a Menina Isaura repôs o seu presépio, já apresentado em 1959 e neste Natal exposto pelo GEGA, na Igreja da Misericórdia.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Oração

Lá vai lua alta
Mais alta vai a Senhora
Que para o céu subia
Madalena vai detrás
Alcançá-la não podia
Alcançou-a em Belém
Onde Jesus Cristo lhe assistia
Nossa Senhora era tão pobre
Que nem um paninho lá trazia
Lançou as mãos à cabeça
Era um véu que trazia
Partiu em quatro quartos
Jesus Cristo embrulharia
Desceu um anjo do céu à terra
Paninho de ouro lá trazia
São José lhe perguntou
Como ficou lá Maria
Maria ficou bem
Na sua salinha metida
Cantando Avé Maria
As paredes são de ouro
Lavradas de prata fina
Quem também as lavraria
Foi o filho da Virgem Maria

Nota: Oração recolhida e publicada em trabalho escolar, por Maria Isabel dos Santos Teodoro, na década de 1980.

sábado, 24 de dezembro de 2011

O Menino Jesus



FELIZ NATAL PARA TODOS

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O nosso falar: chalincar

Lembram-se do Chalim? Teria uma doença neurológica e por isso abanava muito os braços e as mãos, isto é, chalincava. Por isso ganhou a alcunha de Chalim.
A palavra mais próxima que encontrei nos dicionários, pela grafia e pelo sentido, foi chinelar: fazer o ruído de quem anda de chinelas. É o mesmo que chilindrar e chelindrar, esta da zona da Covilhã. Abanar e por isso fazer barulho é o nosso chalincar.
Há dias, levei os Enxidros a uma tertúlia literária da minha escola e li a crónica “Chalim”, publicada a 5 de fevereiro de 2010. Foi um sucesso.
Aqui vo-la deixo, porque muitos dos atuais leitores do blogue ainda não a conhecem e porque é Natal, o tempo de ser bom.

Chalim
Nunca soube o nome dele, mas chamavam-lhe Chalim. Às vezes avistava-o na Praça, sempre a babar-se e a dar com os braços e a cabeça.
Depois, na Tapada, quando eu, as minhas irmãs e os meus primos ficávamos sozinhos, se as nossas mães iam às compras ou à missa, imaginávamos o Chalim a dobrar a curva da quelha, a abanar-se todo.
Fugíamos para casa e fechávamos a porta por dentro. Sabe-se lá o mal que um homem assim nos podia fazer.
Um dia, ia com o meu pai para casa do meu avô Prata, na Oriana. Ao chegar à Dona Zara, na Rua de São Sebastião, vi um homem que vinha em direcção a nós. Era ele.
Cheguei-me mais ao meu pai, peguei na mão dele e apertei-lha com força. Cruzámo-nos e o meu pai cumprimentou-o. Ficaram a conversar e eu, espantado, porque o Chalim falava como os outros homens e era amigo do meu pai.
A certa altura, desceu a mão direita, lentamente, a abanar muito. E eu, outra vez receoso, a segui-la com os olhos. Tentou metê-la no bolso exterior do casaco, mas custava a acertar com o buraco, de tanta tremideira. Finalmente conseguiu e o gesto revolto, fechado no bolso, fazia abanar toda a aba do casaco.
A pouco e pouco, a mão começou a sair do bolso e a subir. Trazia uma bola cor de laranja, uma tânjara. Aproximou as duas mãos e mudou-a de mão. Depois voltou a descer, o mesmo calvário e mais uma tânjara.
A da mão esquerda voltou à direita e, a custo, estendeu a mão trémula e cheia na minha direcção.
“Toma menino.” - ofereceu-me, já com a baba a aparecer nos cantos da boca.
Eu fiquei parado, sem tempo para perceber tanta coisa.
“Aceita.” - disse o meu pai.
Peguei nelas, sem mais reacção.
“O que se diz?” – insistiu comigo o meu pai.
“Bem haja!”
Eles continuaram a conversa e eu descasquei uma das tânjaras e comia-a, sôfrego, dois e três gomos de cada vez. Era só mel. Depois a outra, doce como o açúcar!
Eu era ainda muito pequeno e não tenho mais lembranças do Chalim. Mas, muitas vezes, ao longo da minha vida, me interroguei se tenho sido merecedor de toda a doçura daquele gesto.

sábado, 17 de dezembro de 2011

GEGA apresenta presépio de encantar



Este é o presépio do Menino Jesus, idealizado e apresentado à moda antiga. As figuras foram todas realizadas manualmente e são da autoria de Isaura Maria, feitas de pano com todos os pormenores bordados à mão. O cenário é de musgo autêntico, com caminhos de pedra e areia. As árvores são mesmo pequenas árvores, as casas foram feitas à medida com pedra e telhas.
Foi em 1959 que, pela primeira vez, o presépio foi apresentado pela sua autora, enfermeira de profissão e artesã nos tempos livres.
Além da Sagrada Família e dos Reis Magos, o presépio retrata a vida rural, numa pequena aldeia e no trabalho do campo. Alfaias agrícolas, personagens que desempenham diferentes tarefas e profissões todos foram criados pelas mãos hábeis de Isaura Maria. No total, são cerca de seis dezenas de figuras feitas manualmente. Não falta o madeiro de natal junto da capela, o fontanário, os pastores e as ovelhitas, a cozinha onde se preparam as filhós, o sapateiro, a queijaria, a horta com o seu poço, o rio onde se lava a roupa, a apanha da azeitona, o moleiro e os moinhos, um castelo, uma ponte e a serra verdinha com pinheiros que acalenta o local onde o Menino Jesus nasceu.
Tanto as figuras, como as casas e a maior parte das peças necessitavam de algumas remodelações. Os responsáveis do Grupo de Estudos e Defesa do Património Cultural e Natural da Gardunha meteram mãos à obra e o presépio vai estar novamente exposto, na Igreja da Misericórdia, junto à Praça medieval, durante a época natalícia. A abertura será no próximo domingo, dia 18, pelas 15.00 horas, e ficará exposto até 8 de Janeiro de 2012, com abertura aos sábados e domingos, das 15.00 às 17,00 horas. Para visitas fora deste horário, agradecemos que nos contactem para 968053052 ou 272487035 (Inácia Brito) e fazer a respetiva marcação. A entrada é livre.

Nota: O material que serve de base a esta notícia foi-me enviado pela Direção do GEGA.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Sementeira de pinheiros


Conheço documentação que refere a compra de sementes de pinheiro, na Suécia, para florestar as serras de Oleiros, em meados do século XIX. Uns anos antes, em 1826, o contrato de emprazamento, por três vidas, do casal da Senhora da Orada, administrado pela Câmara Municipal, estipulava como obrigação dos rendeiros Ricardo Joze de Oliveira e Gestrudes Maria «...a sementeira dos pinheiros...». Nos inícios do século XX, alguém de C. Branco fotografou os montes da charneca a partir do Museu Tavares Proença Júnior, na entrada norte da cidade, e só se veem matagais, sem qualquer árvore a sobressair (muitos pinheiros já lá estariam, mas ainda pequenos).
O documento que agora apresento vem confirmar o início da florestação das terras incultas do interior, por pinheiros bravos, no século XIX. Apenas o início, pois parte dos atuais pinhais só se afirmaram na primeira metade do século XX e até um pouco mais tarde: muitos da minha geração e sobretudo mais velhos lembram-se de se fazerem alqueives de centeio em locais onde atualmente há bom pinhal. E no monte de Santiago, na Partida, ainda sobrevive o antigo olival, já sufocado pelos pinheiros.

Na sessão de 23 de Agosto de 1840, a Junta da Paróquia analisou um ofício da Câmara Municial (ambas de S. Vicente da Beira), no qual se incumbia «… a esta Junta a Sementeira de Pinheiros e plantação de Arvores nas terras pertencentes a esta Junta.» Também se mandava comunicar aos proprietários «… que a Junta Geral do Destrito se offerecia a mandar vir a Semente de Pinhos que fosse neceçaria tanto para a Junta como para os Proprietários.»
A Junta decidiu que, embora tivesse uma terra apta para a sementeira de pinheiros (a Devesa?), não tinha meios para fazer essa sementeira, pois os que tinha escasseavam para as despesas ordinárias. Quanto aos proprietários particulares, embora avisados por edital público, «…não compareçeo alguém que requereçe porção alguma de semente de Pinhos.»


Notas:
1. Esta ata foi escrita por Bernardino Ribeiro Robles, secretário da Junta. O presidente era Antonio Rodrigues Castanheira.
Na sessão seguinte, de 21 de Março de 1841, tomaram posse os membros efetivos da nova Junta. O presidente ficou então o Reverendo Vigário Manuel Marques Leite, ajudado por Francisco Lobo e Francisco Cardoso Sénior que transitavam da Junta anterior.
2. Ao lermos esta publicação, temos na cabeça três grafias: a nova que estamos a implementar (acta/ata, vêem/veem...), a que usámos até agora (e melhor sabemos) e a do século XIX (neceçaria/necessária, compareçeo/compareceu, offerecia/oferecia, Destrito/Distrito...).
Por mim, não vale a pena dramatizar o novo acordo ortográfico, como muitos o fazem. A nossa língua tem estado em constante evolução, desde o latim dos romanos até à atual grafia!

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Publicidade

Em 2009, tive publicidade no blogue, mas não achei piada e mandei tirar.
Agora considerei que valia a pena aproveitar os (magros) ganhos e por isso ela retornou.
Há rendimento sempre que se visita o blogue e sobretudo sempre que se clica na publicidade.
O dinheiro, muito ou pouco, será entregue ao ermitão da Orada, o Zé Duarte. Fica o compromisso.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Para o sol não o queimar

Voltemos a estas duas quadras da apanha da azeitona:

S´o meu amor fosse António
Ai solidão, solidão
Mandavó ingarrafar
Ai, ai, ai, ai, ai
Em garrafinhas de vidro
Ai solidão, solidão
Para o sol não o queimar
Ai, ai, ai, ai, ai

Não me namora teu ouro
Ai solidão, solidão
Nem a tua branquidão
Ai, ai, ai, ai, ai
Só me namora teus olhos
Ai solidão, solidão
Que tão fagueirinhos são
Ai, ai, ai, ai, ai

São bem antigas!
O ideal de beleza era a pele branca, o mais possível. As senhoras até usavam sombrinhas para não se bronzearem. Depois, cerca de 1930, a Coco Chanel, que então começava a ditar a moda, deixou-se dormir estendiada ao sol, numa praia (uma hábito novo, nesse tempo) e acordou bronzeada. E todos correram para as praias, para ficarem como ela. Até hoje.
Mas voltemos ao antes. Para as gentes do campo (mais de 90% da população das nossas aldeias) ter a pele branquinha era uma impossiblidade, privilégio das famílias dos grandes lavradores que não faziam trabalho ao sol. Por ser rara, diferente, era sinónimo de beleza e por isso desejada.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Os amores da azeitona...

Eram sobretudo canções de amor, estas da campanha da azeitona:

(Uma voz) Os amores da azeitona
(Coro) Ai solidão, solidão
(Uma voz) São como os da cotovia
(Coro) Ai, ai, ai, ai, ai
(Uma voz) Acabada a azeitona
(Coro) Ai solidão, solidão
(Uma voz) Vai-te com Deus ó Maria
(Coro) Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão - Coro)
Vai de lá ó Maria
Tudo é um bem querer
Está um ar amoroso
Não te posso ir a ver


S´o meu amor fosse António
Ai solidão, solidão
Mandavó ingarrafar
Ai, ai, ai, ai, ai
Em garrafinhas de vidro
Ai solidão, solidão
Para o sol não o queimar
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

O meu amor não me fala
Ai solidão, solidão
Tudo é que lhe fale eu
Ai, ai, ai, ai, ai
S´ele se leva no seu brio
Ai solidão, solidão
Também eu me levo no meu
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Meu amor se fores à missa
Ai solidão, solidão
Fica em sítio que te veja
Ai, ai, ai, ai, ai
Não faças andar meus olhos
Ai solidão, solidão
Em leilão pela Igreja
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Cantigas ao desafio
Ai solidão, solidão
Comigo ninguém mas cante
Ai, ai, ai, ai, ai
Eu tenho quem mas ensine
Ai solidão, solidão
Meu amor é estudante
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Sei um saco de cantigas
Ai solidão, solidão
Ainda mais um guardanapo
Ai, ai, ai, ai, ai
Se me fazes atentar
Ai solidão, solidão
Eu vou desatar o saco
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Não me namora teu ouro
Ai solidão, solidão
Nem a tua branquidão
Ai, ai, ai, ai, ai
Só me namora teus olhos
Ai solidão, solidão
Que tão fagueirinhos são
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Os olhos do meu amor
Ai solidão, solidão
São duas azeitoninhas pretas
Ai, ai, ai, ai, ai
Eles foram escolhidos
Ai solidão, solidão
No jardim das violetas
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Da janela do meu quarto
Ai solidão, solidão
Vejo a cama do meu sogro
Ai, ai, ai, ai, ai
Vejo o sogro, lembra-me o filho
Ai solidão, solidão
Pelo filho é qu´eu morro
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Da minha janela à tua
Ai solidão, solidão
É um salto duma cobra
Ai, ai, ai, ai, ai
Quem me dera já chamar
Ai solidão, solidão
À tua mãe minha sogra
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

A oliveira da serra
Ai solidão, solidão
Que azeitona pode dar
Ai, ai, ai, ai, ai
Dará uma, dará duas
Ai solidão, solidão
Dará três se carregar
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Se a oliveira a falasse
Ai solidão, solidão
Ela diria o que viu
Ai, ai, ai, ai, ai
Debaixo da sua rama
Ai solidão, solidão
Dois amantes encobriu
Ai, ai, ai, ai, ai

(…)

Além das lembradas pelos meus pais (António Teodoro e Maria da Luz), registadas pela minha irmã Isabel dos Santos Teodoro, incluí ainda as que o Ernesto Hipólito enviou para a publicação anterior.

domingo, 27 de novembro de 2011

Se a oliveira falasse…

Por volta de 1940, as terras de S. Vicente da Beira pertenciam, em grande parte, a três casas agrícolas: Casa Conde, Casa Cunha e Visconde de Tinalhas. Na altura da azeitona, contratavam camaradas para a colheita. Uma camarada era um grupo de homens e mulheres, dois homens por cada mulher, que colhia a azeitona para um médio ou grande agricultor, a troco de um décimo da produção: de cada dez alqueires de azeite, um alqueire (13,5 litros) era da camarada. No final da campanha (colheita), o azeite era distribuído por todos os membros.
Ao cantar do galo mais madrugador, às 5 horas da manhã, um homem da camarada ia à Praça tocar a corneta para que as mulheres se levantassem a fazer o almoço (pequeno almoço) aos seus homens: batatas ou feijão. Mais a merenda para um dia de trabalho.
Duas horas depois, confluíam para a Fonte Velha, chamados pelo toque do búzio da camarada, que partia depois em direção do seu olival, longe ou perto.
A colheita fazia-se a ritmo acelerado, pois tinham de colher azeitona suficiente para fazer o ordenado de cada membro da camarada. Os corpos magros e enregelados subiam e desciam escadas e as mulheres acorriam aos gritos de “Fato”. Os dedos frios das mulheres mal conseguiam catar as bolinhas negras no meio de ervas e terra. No início, o lume era mais fumo que fogo e uma passagem breve por lá apenas iludia o corpo.
Cantava-se para esquecer. Os homens desafiavam as camaradas que passavam ou andavam por perto. O diálogo gritado envolvia dois homens:

- Ó João, dá cá o podão!
- P´ra quê?
- P´ra malhar aqueles que além vão.
E torna-o cá a dar,
- P´ra quê?
- P´ra os tornar a malhar!


Os da outra camarada respondiam à letra:

- Ó João!
- O que é?
- Dá cá a navalha.
- P´ra quê?
- P´ra malhar aqueles canalhas.
E torna-a cá a dar.
- P´ra quê?
- P´ra os tornar a malhar!


As mulheres, alheias a estes rituais guerreiros, entoavam canções melodiosas com letras ligadas à tarefa que as ocupava:

(Uma voz) A oliveira da serra
(Coro) Ai solidão, solidão
(Uma voz) Que azeitona pode dar
(Coro) Ai, ai, ai, ai, ai
(Uma voz) Dará uma, dará duas
(Coro) Ai solidão, solidão
(Uma voz) Dará três se carregar
(Coro) Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)
Vai de lá ó Maria
Tudo é um bem querer
Está um ar amoroso
Não te posso ir a ver


Se a oliveira a falasse
Ai solidão, solidão
Ela diria o que viu
Ai, ai, ai, ai, ai
Debaixo da sua rama
Ai solidão, solidão
Dois amantes encobriu
Ai, ai, ai, ai, ai

E continuavam com outras quadras…
Mas o ganho era sempre magro, mesmo com muito trabalho. Por isso, à passagem de algum rico ou na ida do patrão ao olival, colhia-se um ramo de oliveira e oferecia-se:

Tome lá este raminho
Da minha mão se oferece
Ainda não é tão delicado
Como o senhor o merece


Ou

Tome lá este raminho
Todo cheio de alegria
Onde vão meus cumprimentos
E de toda a companhia


A simpatia pagava-se com dinheiro, para terem vinho a acompanhar o jantar (almoço).
Se encontrassem duas folhas pegadas, aproveitavam para reforçar os laços. Um rapaz e uma rapariga pegavam cada um num lado e rasgavam-nas, dizendo:

(Um) - Como se chama o menino?
(Outro) - Raminho de bem querer.
(Davam um aperto de mão)
(Ambos) - Vamos ser compadres até morrer!

No último dia da colheita, faziam um jantar ou ceia com bacalhau, batatas e couves. O patrão dava o vinho e o azeite.
Depois iam ao lagar do patrão buscar a paga. E comiam uma taborna (tiborna): pão torrado embebido no azeite novo. O ganho era dividido por toda a camarada e corria-se à procura de mais trabalho, na esperança conseguir azeite para todo o ano.

Como habitualmente, nestas tradições mais antigas, baseei-me num trabalho escolar da minha irmã Maria Isabel dos Santos Teodoro. Ela ouviu-as da boca dos nossos pais António Teodoro e Maria da Luz (Prata).

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O nosso falar: bátega d´água

Já aqui escrevi sobre a gravanada. Depois pus-me a pensar nas formas de chuva que havia e encontrei: gravanada, bátega d´água, bem chuvidinha, a cântaros e carujar. Já houve de todas, neste Outono, menos a chuva a cântaros ou potes.
Deixo-vos um glossário com os termos vicentinos para os diferentes tipos de chuva.

Bem chuvidinha: Era a chuva preferida dos nossos. Podia estar uma semana a chover, calmamente, nem estiava, nem chovia forte, que as nossas gentes não se aborreciam.
“Deixa estar que ela é cá precisa!”
“Assim é que é bom, entra toda na terra, para os nascentes correrem, quando fizer falta.”
Com a chuva bem chuvidinha, não há erosão dos terrenos, nem enxurradas destruidoras. A chuva cai e só faz bem: a terra mata a longa sede do estio e depois armazena para o resto do ano.

Carujar: Não é, nem deixa de ser. Quase dispensa o guarda-chuva, mas chamam-se parvos aos que andam debaixo deste carujo, sem proteção. Refresca, mas mal assenta o pó, se estivermos no tempo dele. "Está a cair um carujozito.", diziam os nossos mais antigos.

Gravanada: É uma chuva repentina, intensa, mas só dura breves minutos. Vem acompanhada de vento forte.

Bátega d´água: Cai repentina e intensa, também, mas por mais tempo do que a gravanada. Entre os 10 e os 30 minutos é o tempo de uma trovoada d´água ou pancada d´água, como também se diz. Provoca pequenas enxurradas.

Chover a cântaros ou a potes: Este termo é do tempo em que se ia à fonte com o cântaro ou o pote à cabeça. Imaginem que despejavam a água toda de uma só vez! É assim a chuva a cântaros, diluvial, intensa e demorada. Caem grandes quantidades de água durante largos minutos e até horas. Por vezes abranda e volta a cair com a mesma intensidade. "Chovia se Deus a dava!"
É a chuva das enxurradas e inundações.

Nota: Este texto foi reescrito no dia 1 de Dezembro, com base nos comentários do Ernesto Hipólito.

sábado, 19 de novembro de 2011

O nosso falar: gafa


Oliveira multicentenária na tapada de José dos Santos Candeias, por cima do Cimo de Vila.

Notícias do mundo agrícola, para quem está longe e com vontade de azeite novo.
Este ano a azeitona amadurou mais cedo, porque o mês de Outubro foi muito quente. A produção de azeitona será inferior à do ano passado e a qualidade do azeite ligeiramente menor.
Isto derivado da mosca, que não da gafa.
O Verão foi primaveril e a mosca não morreu com o calor, como pertence, antes continuou a furar frutos e pôr ovos. O resultado é a azeitona estar muito bichosa, em certas zonas. A chuva ventosa já tombou alguma, mas muita da colhida está furada, por isso o azeite não será tão puro. Por outro lado, em certas zonas, a azeitona engrossou muito com a chuva e por isso não fundirá como no ano passado.
Não que em S. Vicente se tenha dado por isso, pois muita gente recebeu do lagar azeite a 12 kg por litro, de azeitona sãzinha e miudinha. Mas quem levou a azeitona para mais longe teve fundas a 8. Este ano parece que dão o azeite pelos 10kg/l, nada mau, em ano em que a funda real andará próximo dos 9, em média.
Mas voltemos à azeitona. O mal dela é a mosca, não a gafa. Julgava que fosse um regionalismo, mas o site da SAPEC informa-me que a gafa ataca sobretudo a azeitona galega e acontece quando há muita humidade e calor, isto é, tempo quente e húmido durante o amadurecimento. O calor e a humidade são condições propícias ao desenvolvimento dos esporos que existem nos ramos e nas folhas. Já sabia da humidade, mas pensava que era do frio. Uma oliveira com gafa tem a azeitona podre e as folhas também morrem e caem.
Pelo menos livrámo-nos da gafa, graças a um Outubro seco.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Amato Lusitano

Comemora-se, este ano, o 5.º centenário do nascimento de Amato Lusitano (1511-Castelo Branco / 1568-Salónica). A data foi assinalada com inúmeros realizações que culminaram num congresso sobre Amato Lusitano, nos dias 10, 11 e 12 deste mês de Novembro. No dia de abertura, houve espetáculo no Cine-Teatro Avenida, onde, entre outras artes, foi apresentada uma peça de teatro da minha autoria, levada à cena pelo grupo de teatro da escola onde trabalho. Como a crítica a considerou uma obra asseada, aqui vo-la deixo.


Na corte do papa Júlio III.
(A abóbora é um produto biológico vicentino e também é nosso o topónimo Casal do Grilo!).


O AMATO DA LUSITÂNIA
José Teodoro Prata

Personagens
Amato Lusitano, o doente
Amato Lusitano, o médico
Amato Lusitano, a criança
Mulher muçulmana
Camponesa
Filha da camponesa
A outra camponesa
A Loucura
Personagens que contracenam com a Loucura
Damião de Góis
Erasmo de Roterdão
Embaixador de Portugal
Rapariga com fenda palatina
Mãe da rapariga com fenda palatina
Músicos, pintor, poeta, escultor...
Grupo de crianças-sangue

(À boca de cena, a um canto do palco, jaz Amato Lusitano, num cadeirão, doente de peste. É um homem de 57 anos, de barbas e cabelos grisalhos, com gânglios inchados e negros nas partes visíveis do corpo. Ali ficará durante toda a peça, tratado por uma mulher muçulmana. A sua atitude deve ser, ao longo de toda a representação, de sofrimento e humildade. Nos outros espaços do palco, desenrolar-se-ão as restantes ações desta peça.)

Amato Lusitano, o doente (Dirigindo-se à mulher que o trata): Sai desta casa mulher imprudente. Não vês como fiquei por tratar os doentes de peste? Se aqui continuares, acabará por te acontecer o mesmo. Foge daqui e não voltes mais!
Mulher muçulmana (Dando-lhe de comer, na boca): Um dia bati à sua porta, com o meu filho nos braços, a arder em febre há três dias. O senhor doutor curou-o, mesmo sabendo que sou da religião muçulmana e não tinha nada para lhe pagar. Por isso, não o abandonarei. Coma esta sopinha. Vai ajudar o seu corpo a vencer o mal! (Ele come duas colheradas e depois faz sinal de que não quer mais; a mulher tenta distraí-lo e animá-lo.) Sei que não é daqui. Como se chama a sua terra?
Amato Lusitano, o doente: Vim de muito longe, do reino de Portugal, também chamado Lusitânia, que fica na outra ponta da Europa, para o lado onde o sol se põe.
Mulher muçulmana (Aproveitando para lhe enfiar mais uma colherada de sopa): Então é por ser da Lusitânia que se chama Lusitano!
Amato Lusitano, o doente: Sim, e Amato é o meu apelido de família. Amato Lusitano.
Mulher muçulmana: E é bonita a terra onde nasceu, tão grande como esta nossa Salónica da Grécia?
Amato Lusitano, o doente: Não, é apenas uma vila, mas muito bonita. Espraia-se na encosta soalheira de um pequeno monte, rodeada de muralhas e com um castelo no alto. O castelo não é branco, mas chama-se Castelo Branco. Entre as pedras da muralha cresce uma pequena planta cuja flor parece uma pequena avezinha.
Mulher muçulmana (Compondo-lhe as almofadas): Deve ser muito bonita. E lá, na sua terra, o senhor doutor curava as pessoas como aqui faz?
Amato Lusitano, o doente (Recordando): Depois de me formar em Salamanca, no reino vizinho de Espanha, fiquei em casa pouco tempo e só acudi a algumas pessoas que me pediram ajuda, como tu fizeste um dia. O caso mais interessante passou-se com uma menina que, no pino do sol, ia com a mãe levar o almoço aos ceifeiros e foi mordida por uma víbora.
(No fundo da sala ouve-se um grito de criança. Ambas pousam as cestas que levam. A menina chora e a mãe grita aflita, chupando o sangue da mordedura na perna da filha. Esta começa a desfalecer e a mãe pega-lhe ao colo e grita por socorro. Na boca de cena, encontra uma mulher, pára e coloca a filha no chão.)
Camponesa (A gritar, aflita): Ajuda-me, a minha menina foi mordida por uma víbora!
A outra amponesa: Ata-lhe casca de trovisco acima da mordedura que atalha o veneno!
Camponesa (Aflita): Mas aqui, onde é que vou achar trovisco?
A outra amponesa (Procurando): Olha ali uma touceira! (Parte um ramo, tira a casca e com ela ata a perna da menina.) Agora tens de ir ao médico a Castelo Branco!
Camponesa (Pegando na menina ao colo): Faz-me um favor: vai chamar o meu homem que anda no Casal do Grilo com os ceifeiros. Eu vou indo para casa, a atrelar a burra. Valha-nos Nossa Senhora dos Aflitos! (A mulher sai de cena, por onde entrara.)
Mulher muçulmana: E conseguiu salvar a menina, como fez com o meu filho?
Amato Lusitano, o doente: Bateram à porta dos meus pais três horas depois. A menina já vomitara bílis e vinha atacada de tremores, com vertigens e perda de sentidos. Mandei o cirurgião golpear toda a perna e das feridas saiu um sangue negro. Depois apliquei, nas feridas, um emplastro de alhos e cebolas azedas. Também lhe receitei suco de freixo, para beber, e outros tratamentos. Um mês depois, estava completamente curada.
Mulher muçulmana (Ocupada a arrumar o quarto): Essa é a melhor recordação que tem da sua terra?
Amato Lusitano: Alcançar a cura para os meus doentes sempre foi a razão de ser da minha vida. Mas as melhores recordações são os tempos da minha infância, em casa de meus pais, com os meus irmãos e primos. E nunca esqueci um poema que me ensinou o meu mestre das primeiras letras. Era de um fidalgo-poeta da minha terra, chamado João Roiz ou Rodrigues, como eu, que morreu nos meus tempos de rapaz.
(Entra em cena um rapazito – Amato Lusitano, a criança - que recita o poema.)

Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora d' esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

(Amato Lusitano, o doente, fica triste, desanimado, quase choroso.)
Mulher muçulmana (Com voz calma, maternal): Pronto, já chega de conversa. Descanse agora um pouco.
(Amato Lusitano, o doente, fecha os olhos e dorme. A mulher muçulmana aconchega-lhe a roupa e depois coloca-lhe a mão na testa.)
Mulher muçulmana: Arde em febre. Pobrezinho! Um homem tão sábio e bom, neste sofrimento atroz. Que Alá lhe acude! (Vai buscar uma bacia de água e aplica-lhe uma toalha húmida na testa, refrescando-lhe o rosto e o pescoço.)
Amato Lusitano, o doente (Agita-se e fala em delírio): Loucura… Antuérpia… Erasmo… A loucura do Erasmo… O Góis…Antuérpia…
(A mulher não sai da sua beira, tentando baixar-lhe a febre. Entra em cena uma personagem mitológica, a Loucura, que semeia a discórdia por onde passa. Sugerem-se várias situações, como roubo, assassinato…)
Amato Lusitano, o doente (Continua agitado, em delírio): Antuérpia… Erasmo… A loucura do Erasmo… O Góis… A loucura…
(Aparecem em cena dois homens, conversando animadamente.)
Damião de Góis: Ora, meu amigo Amato, bons olhos o vejam nesta mui nobre e rica cidade de Antuérpia. Que notícias me traz do nosso Reino de Portugal?
Amato Lusitano, o médico: Más notícias, meu caro Damião de Góis. Intolerância, perseguições e fuga! Uma nova diáspora para o povo eleito de Abraão e Moisés, perseguido por todo o reino de Portugal. Só dor e tristeza!
Damião de Góis: (Lamentando): É uma tragédia nacional. Saem os mais esclarecidos e o reino fica privado da sua iniciativa e dos seus cabedais. (Animando-o.) Mas, aqui, nesta pérola da Europa do Norte, podes estar descansado. Muitos da tua religião já aqui se refugiaram e os seus negócios prosperam. Também tu te sentirás como em tua casa. Mas eis que chega o meu amigo Erasmo de Roterdão, ilustre autor da obra “Elogio da Loucura”. (Cumprimenta o monge Erasmo de Roterdão, com uma abraço.) Apresento-lhe João Rodrigues de Castelo Branco, mais um notável médico cristão-novo fugido da nossa madrasta Lusitânia.
Erasmo de Roterdão: É uma loucura! Os grandes da sociedade, políticos e religiosos, levam uma vida de luxo e de prazeres, desprezando os mais humildes. Os cristãos viraram-se uns contra os outros e ninguém se entende. A Igreja de Cristo começa a partir-se aos pedaços, dividida entre católicos, protestantes e anglicanos. E, não satisfeitos, perseguem os crentes das outras religiões do Livro, judeus e muçulmanos. Raros são os oásis de tolerância como esta minha Flandres. (Levantando as mãos para o céu.) Que Deus ilumine as consciências dos homens é tudo o que Lhe peço! (Vão saindo de cena, a conversar, agora em voz baixa.)
(Amato Lusitano, o doente, acorda, já mais aliviado da febre. A mulher muçulmana dá-lhe água a beber.)
Mulher muçulmana: Beba água, porque suou muito (Dá-lhe água e ele bebe.) E agora este xarope que me ensinou a fazer.
Amato Lusitano, o doente: Dormi, mas pouco descansei, porque as más recordações entraram no meu sono. Passa-me aquele livro!
(A mulher pega num livro e entrega-lho. Ele folheia-o.)
Mulher muçulmana: O que há nesse livro?
Amato Lusitano, o doente: Este livro é o quinto volume das minhas Centúrias, onde explico como tratei os doentes.
Mulher muçulmana: E tem alguma história engraçada?
Amato Lusitano, o doente: Por acaso, na cura 14, descrevo um caso muito curioso.
(Entra em cena Amato Lusitano, o médico, e chega uma mulher com a sua filha.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: Senhor doutor, a minha menina tem um buraco no céu-da-boca. Estou farta de correr os médicos e nenhum faz nada!
Amato Lusitano, o médico: Olá, moça. Como te chamas?
Rapariga com fenda palatina (Com voz de cana rachada.): Chamo-me Margariga.
Mãe da rapariga com fenda palatina: Vê, senhor doutor? Todos zombam dela!
Amato Lusitano, o médico: Abre a boca!
(Ela abre a boca e o médico observa. A mãe aproxima-se e aponta.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: É aquele buraco. A comida passa por lá e volta a sair pelo nariz. Pobrezinha da minha menina!
(Amato Lusitano, o médico, medita no caso e tira-lhe o molde do céu da boca, com uma massa.)
Amato Lusitano, o médico: Vou ver o que posso fazer. Venham cá para a semana.
(A mãe e a filha saem e Amato Lusitano, o médico, trabalha numa prótese para colocar na fenda do céu da boca. Mãe e filha voltam a entrar.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: Bons dias, senhor doutor. Mandou-nos voltar cá por via do buraco que a minha filha tem no céu da boca.
Amato Lusitano, o médico: Olá, Margarida.
Rapariga com fenda palatina (Com voz de cana rachada): Olá, senhor doutor.
Amato Lusitano, o médico: Abre a boca. Vou tapar a fenda que aí tens, com esta prótese. (A rapariga abre a boca e o médico coloca-lhe lá uma prótese.) Diz-me lá como se chama a tua mãe!
Rapariga com fenda palatina (Com voz normal.): A minha mãe é Joaquina.
(A rapariga fica surpreendida com o som, o médico sorri e a mãe fica maravilhada.)
Mãe da rapariga com fenda palatina (Exuberante.): A minha rica filha já fala como as demais! O senhor doutor é um santo. Deus lhe pague! Todo o dinheiro do mundo não chega para pagar o bem que fez à minha menina.
Amato Lusitano, o médico (Sorrindo.): São só 5 florins.
(A mãe da rapariga paga-lhe e continuam a falar em voz baixa, enquanto saem de cena.)
Mulher muçulmana: Foi uma sorte para esta rapariga ter sido tratada pelo senhor doutor! E diga-me mais uma coisa: de entre tantas pessoas que curou, qual foi a mais importante.
Amato Lusitano, o doente: Para um médico, todos os doentes são igualmente importantes. Mas percebo o que queres dizer. A pessoa mais famosa que tratei foi o papa Júlio III, na cidade de Roma.
(Em cena, entra um grupo musical e toca. Este grupo pode ser substituído por uma música renascentista gravada e colocada no início desta cena que pretende retratar a corte papal de Júlio III. Num lado, um pintor dá uns retoques num quadro. No outro, um poeta escreve. Estas sugestões podem ser substituídas por outras, desde que se crie o ambiente de uma corte renascentista. Deve existir um símbolo papal, que informe tratar-se da corte pontifícia. Entra Amato Lusitano, levado pelo embaixador de Portugal em Roma.)
Embaixador de Portugal: Agradeço a Vossa Mercê a prontidão com que acorreu à minha chamada. Sua Eminência Reverendíssima está gravemente doente e até agora nenhum médico deu com o mal.
Amato Lusitano, o médico: Eu é que lhe agradeço a Vossa Excelência, Senhor Embaixador, por ter oferecido à corte pontifícia os meus humildes serviços médicos. É para mim uma grande honra contribuir para a cura do chefe da Igreja Católica.
Embaixador de Portugal: E é também um enorme prestígio para o reino de Portugal! Vamos, eu guio-o à ala dos aposentos de Sua Eminência.
(Saem os dois e depois o poeta, o pintor e os músicos, se houver.)
Amato Lusitano, o doente: Felizmente, tive sucesso na cura do papa Júlio III e tornámo-nos grandes amigos. Infelizmente, sucedeu-lhe um papa intolerante com os judeus e vi-me obrigado a fugir de Itália.
Mulher muçulmana (Dando-lhe uma colher de xarope.): O senhor doutor descobriu tantas curas para as doenças! Qual acha que foi a sua maior descoberta?
Amato Lusitano, o doente: Na Universidade de Ferrara, também na Itália, trabalhei com o médico Canano e juntos descobrimos as válvulas da veia ázigos. Foi uma descoberta muito importante, pois permitiu que, alguns anos mais tarde, o meu colega André Vesálio explicasse toda a circulação do sangue.
(Entra em cena um grupo de crianças vestidas de vermelho. Algumas crianças formam em coração, dilatando-se e contraindo-se. A cada contração, sai uma criança, a simular a saída do sangue por uma artéria. Do outro lado, entra no coração uma criança, a simular a reentrada do sangue por uma veia. Nesta encenação, deve tapar-se da vista do público Amato Lusitano, o doente, que não volta a parecer.)
Mulher muçulmana (Olhando Amato Lusitano, o doente, prostrado no cadeirão.): E assim foi a vida deste homem sábio e bom. Nunca lhe conheci mulher ou filhos. Dizia que os seus filhos eram os seus discípulos aprendizes. Nasceu numa terra longínqua e percorreu toda a Europa. Foi médico de reis e papas, senhores e comerciantes, mas nunca recusou tratamento aos mais humildes, cobrando a cada um segundo as suas posses. Morreu sozinho e saudoso da sua pátria natal, ele que foi tão grande entre os homens. Amato Lusitano deixou o seu exemplo, a sua sabedoria e a sua marca na história da Medicina.
(Entram em palco as personagens, vestidas de médico, pela ordem que se segue. Vão ler trechos do Juramento Médico de Amato, escrito em Salónica, nos últimos anos da sua vida. Depois das falas, permanecem no palco, para o aplauso final.)
Amato Lusitano, o médico: «Juro perante Deus imortal e pelos seus dez santíssimos sacramentos, dados no Monte Sinai ao Povo Hebreu, por intermédio de Moisés, após o cativeiro no Egipto, que na minha clínica nunca tive mais a peito do que promover que a Fé intacta das coisas chegasse ao conhecimento dos vindouros.»
Camponesa: «Quanto aos honorários que se costumam dar aos médicos, fui sempre moderado no pedir, tendo tratado muita gente com mediana recompensa e muita outra gratuitamente.»
A outra amponesa: «Muitas vezes rejeitei firmemente grandes salários, tendo sempre mais em vista que os doentes por minha intervenção recuperassem a saúde do que tornar-me mais rico pela sua liberalidade ou pelos seus dinheiros.»
Mãe da rapariga com fenda palatina: «Nunca divulguei um segredo a mim confiado; nunca a ninguém receitei poção venenosa; com a minha intervenção, nunca foi provocado o aborto; nas minhas consultas e visitas médicas femininas, nunca pratiquei a menor torpeza; em suma, jamais fiz coisa de que se envergonhasse um médico ilustre.»
Erasmo de Roterdão: «Para tratar os doentes, jamais cuidei de saber se eram hebreus, cristãos, ou sequazes da Lei Maometana.»
Damião de Góis: «Sempre tive diante dos olhos, para os imitar, os exemplos de Hipócrates e Galeno, os Pais da Medicina, não desprezando as Obras Monumentais de alguns outros excelentes Mestres na Arte Médica.»
Amato Lusitano, a criança: «Fui sempre diligente no estudo e, por tal forma, que nenhuma ocupação ou circunstância, por mais urgente que fosse, me desviou da leitura dos bons autores.»
Embaixador de Portugal: «Nem o prejuízo dos interesses particulares, nem as viagens por mar, nem as minhas pequenas deambulações por terra, nem por fim o próprio exílio, me abalaram a alma, como convém ao Homem Sábio.»
Mulher muçulmana: «Os discípulos que até hoje tenho tido, em grande número e que, em lugar dos filhos, tenho educado, sempre os ensinei muito sinceramente a que se inspirassem no exemplo dos bons.»
Amato Lusitano, o doente (Trazido pelos dois outros personagens Amato Lusitano): «Os meus livros de Medicina nunca os publiquei com outra ambição que não fosse o contribuir de qualquer modo para a saúde da Humanidade. Se o consegui, deixo a resposta ao julgamento dos outros, na certeza de que tal foi sempre a minha intenção e o maior dos meus desejos.»

FIM

Notas:
1. Este texto dramático foi elaborado com objectivos educativos (pedagógico-didáticos).
2. Na realidade, Amato Lusitano inventou uma prótese para a fenda palatina de um rapaz e não de uma rapariga. Mas esta peça de teatro foi escrita à medida e o Clube de Teatro da minha escola (Escola Cidade de Castelo Branco) tem muito mais raparigas do que rapazes. A prótese era uma folha de ouro em forma do céu da boca, com uma haste envolta em espuma que encaixava na fenda.
3. Na encenação, a minha colega Carla Salgueiro dividiu o palco em três espaços: na boca de cena decorreram as animações (embora também nos outros planos), em segundo plano estava Amato Lusitano deitado numa cama e imediatamente atrás havia uma estrutura alta onde foram encenadas as recordações de Amato. As animações estiveram a cargo do Clube de Ginástica Acrobática da minha colega Magda Rocha.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Eleitores e elegíveis, 1840

Em Março de 1840, a Junta da Paróquia foi solicitada pela Câmara Municipal a apresentar a lista das pessoas que tinham direito a votar e a ser eleitas, na eleição dos senadores e deputados.
Propuseram-se os seguintes votantes:

Vila
António Rodrigues Castanheira
António de Oliveira
António Leitão
António Ferreira de Carvalho
Bonifácio José de Brito
Bernardo António Robles
Domingos Silva
Francisco António Leitão
Francisco António de Macedo
Francisco Duarte Lobo
Francisco Henriques
Francisco Rodrigues Lobo
Francisco Vaz Raposo
Francisco Nicolau
Francisco Cardoso de Almeida
Francisco Cardoso Sénior
Gregório Fernandes
Jacinto Nunes
João Robalo da Cunha
Padre João António Ribeiro
João Duarte Neto
João de Mesquita
João dos Santos Vaz Raposo
João Agostinho
João Duarte Remoaldo
João Duarte Marques
João Duarte do Casal
João de Oliveira Couto
Joaquim José da Rocha
Joaquim Duarte Lopio
Joaquim de Macedo
Joaquim Nunes
Joaquim José Gonçalves
Padre José Fernandes
Padre José Vaz
José Henriques Sénior
José Hipólito
Padre José Maria de Moura
José da Conceição
Padre Manuel Marques Leite
Manuel Simão
Manuel Duarte Durão
Manuel de Oliveira
Matias Henriques
Matias Vaz dos Santos

Casal da Serra
João Caetano
Joaquim Cruz
José Caetano
José Cruz
Manuel Cruz

Pereiros
António Fernandes Pedro
João de Oliveira
José António
Manuel Brás
Manuel Rodrigues

Paradanta
João Mendes
João Monteiro
Rodrigo Leitão

Partida
António Fernandes Varanda
António Martins
Domingos Fernandes Raposo
João da Costa
José Freire
Manuel Martins Dâmaso
Manuel Martins Pedro

Vale de Figueiras
Domingos Vicente
João Martins Pedreiro
José Rodrigues do Ribeiro
Manuel Francisco

Violeiro
Francisco Vaz
José Fernandes Sapateiro

Mourelo
Francisco Varanda
João Faustino
Manuel Leitão Matias
Manuel Gonçalves Bartolomeu

Tripeiro
Francisco José do Lopio
Francisco Valentim
Francisco Afonso
João Ramalhoso
Joaquim Magueijo
José Martins
Paulo Lourenço

Cidadãos da freguesia com direito a serem votados deputados:
1.º Bonifácio José de Brito Coelho de Faria
2.º João Robalo da Cunha Pignatelly da Gama
3.º Padre Manuel Marques Leite (Vigário)

Cidadãos da freguesia com direito a serem votados senadores:
Nenhum

Notas:
1.Relembro que o direito de votar e ser eleito se baseava nas posses do chefe de família. Os remediados podiam votar e os mais ricos podiam votar e ser eleitos. Os pobres não tinham direitos políticos, assim como as mulheres.

2. É curiosa a abundância de homens chamados Francisco e João. A grande devoção a São Francisco e a São João Batista influenciava a escolha dos nomes para os bebés rapazes.

3. Ainda se designavam as pessoas pela profissão e pelo local de origem: João Martins Pedreiro e José Fernandes Sapateiro; Francisco José do Lopio (Casal do Lopio – Barbaído) e João Ramalhoso (Casal do Ramalhoso – Sobral do Campo). Aos pais com filhos do mesmo nome acrescentava-se Sénior: José Henriques Sénior e Francisco Cardoso Sénior.

4. Estes 82 eleitores representavam 25% das famílias da freguesia, tendo em conta os dados do Censo de 1801 (323 vizinhos e 1397 habitantes). Em 1878, a freguesia já contava com 2248 pessoas, registando-se assim, um significativo aumento da população. Em 1840, o número de vizinhos (aglomerados familiares) seria superior a 323, pelo que os 82 eleitores representariam 23% a 24% dos vizinhos. Em média, em cada quatro famílias havia uma com um eleitor.

5. Em 1840 a Junta da Paróquia integrava os seguintes membros:
Presidente: António Rodrigues Castanheira
Regedor: Francisco Henriques
Matias Henriques
João da Conceição
José Rodrigues Marques
João Duarte Marques
Substitutos: Manuel de Oliveira, José Duarte Marques, Joaquim Henriques, João da Silva Lobo e José da Conceição
.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Arte Rupestre do Tejo

A Açafa n.º 4, da AEAT (Vila Velha de Ródão), é inteiramente dedicada à arte rupestre do Tejo. Aqui deixo a informação:



Exmo(a) Senhor(a)

Temos o gosto de informar que estão disponíveis para consulta os primeiros textos, abaixo identificados, do nº 4 (2011) da revista digital Açafa On-line relativos aos 40 anos do início da descoberta da arte rupestre do Tejo
- A geração do Tejo (António Carlos Silva)
- 40 anos depois - a Arte do Tejo no seu labirinto… (António Martinho Baptista)
- Vale do Tejo - a Ventura da Arte Rupestre (Francisco Sande Lemos)
- Ródão, há quatro décadas, um eixo vertebrador do “meu mundo” (Luis Raposo)
- Vão estas palavras… extractos de cadernos de campo de 1972/73 (Teresa Marques)
- 40 anos depois… (Vítor Serrão)

Atalho directo para consulta: http://www.altotejo.org/acafa/acafa_n4.html

Página da Associação de Estudos do Alto Tejo: www.altotejo.org

Com os melhores cumprimentos

Hélder Catarino
Coordenador Geral

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O nosso falar: gravanada

Ontem o dia esteve de gravanadas.
Fui a São Vicente. Sobre Almaceda e a Partida caía uma chuva forte, mas na Vila ainda brilhava o sol. A caminho do Ribeiro de Dom Bento, parei o carro para limpar a terra de uma valeta, pois a água abre sulcos no caminho. Mas caiu uma gravanada e tive de fugir para o carro. Depois estiou. Na descida do Carvalhal Redondo, nova paragem por causa de uma valeta cheia de caruma. Continuei caminho e outra gravanada obrigou-me a esperar, à chegada.
Parou de chover e fui colher alguns diospiros atrasados e depois apanhei as poucas castanhas que os esquilos deixaram para mim.
"Obrigado, esquilos. Para o ano, nem vale a pena tapar os ouriços com a rede. De uma forma ou de outra, são vossas. Sirvam-se à vontade!"
Enchi o peito do ar da serra, espraiei os olhos pelas minhas árvores e vim para a Vila. Almocei com a minha velhota e nova bátega forte, mas esta apanhou-me debaixo de tecto.
Regressei e fui dar aulas. Faltavam 15 minutos para o toque de saída e começou a ficar muito escuro. Depois um vento violento atirou gotas grossas contra as vidraças. Nenhum aluno trouxera proteção para a chuva e quase todos iam para casa a pé. Parecia que nunca tinham visto chover!
E eu a tentar acabar a matéria: "Estejam descansados. À hora de saída já passou. Hoje esteve assim todo o dia, as chuvadas não demoram mais de 10 minutos!"
"Se estiver a chover à saída e nos molharmos, a culpa é do stôr!"
Deixou de chover antes da saída e eu próprio vim a pé para casa.

Gravanada é uma chuvada curta e intensa. Se ainda houvesse gente como antigamente, diríamos gravaneda ou até graveneda. Mas agora andamos todos muito finos...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

P.e Jerónimo

Voltei ao Seminário do Tortosendo, como participante no encontro anual dos antigos alunos, sempre no último sábado de Outubro. Foi uma festa muito bonita!
Vicentinos presentes: P.e José Hipólito Jerónimo, José Miguel Teodoro, Artur dos Santos (Teodoro), Francisco Barroso, Joaquim Trindade dos Santos, José Teodoro Prata, Irmão José Amaro e Francisco Magueijo (ambos do Violeiro). Para o ano, vamos levar mais amigos ex-alunos!
Trouxe comigo o último livro do P.e José Hipólito Jerónimo, desta vez sobre o fundador dos Missionários do Verbo Divino.
As imagens da capa e da contra-capa falam por si.



quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Dia de todos os santos/halloween

Vêm aí o dia de todos os santos ou halloween, como se diz em inglês.
As nossas tradições desta época foram-nos trazidas pelos celtas, grupo de povos que habitaram a Europa, há cerca de 3000/2500 anos. Os Lusitanos eram seus descendentes. As tradições que nos deixaram foram as mesmas que deixaram na Inglaterra e Irlanda, as quais depois atravessaram o Atlântico e retornam agora pela televisão, na forma do halloween, que deixa as nossas crianças cheias de pena por não terem tradições iguais.
Em vez de me perder em explicações, vou contar uma história verdadeira.


Estávamos no Outono de 1974 e, na ala nova do Seminário do Tortosendo, logo à entrada, ficava o dormitório de quatro vicentinos: o Chico Barroso, o Zé Augusto, o Zé Teodoro e o Quim Trindade. Este dormia no segundo dormitório e os outros três logo à entrada.
Tínhamos um grande amigo da cidade que nos moía o juízo com marcas e modelos de carros, entre outras coisas do mundo urbano, a nós repletos de terra e de sol, como escreveu o Eugénio de Andrade, e mais das águas que corriam nas fontes e regadias da serra.
Aproximava-se o dia de todos os santos e resolvemos ensinar-lhe como era na nossa terra. O Quim foi à quinta e escolheu uma abóbora bem grande. Mas não era coisa que se levasse debaixo do braço, pela porta de entrada. Arranjámos um cordel com o comprimento da altura da estrada à janela e, comigo a puxar a abóbora atada pelo Quim, lá em baixo, ela foi trazida para os quartos, não sem uma descida vertiginosa a meio da subida, pela passagem do carro do nosso reitor.
A abóbora ficou aos cuidados do Quim, que lhe cortou uma tampa, tirou o miolo e abriu uma boca dentada. Lá dentro, a meio, uma vela ficou a aguardar pelo escuro da noite.
Deitámo-nos e no primeiro dormitório ficámos a conversar tranquilamente, já com as luzes apagadas. Pouco a pouco, a conversa foi indo para as histórias de bruxas e almas penadas, pela boca do Chico Barroso. Eu e o Zé Augusto compúnhamos o ramo, ajuda fraca e até dispensável face à mestria do Chico nas artes do falar, apenas útil para reforçar a credibilidade do que ele contava. Só me lembrei da história do lobo branco, que aparecera, nas Tapadas, a um filho do tio Miguel Rodrigues e a tia Ana Prata. Ficou com os cabelos em pé, de tão arrepiado! E quando contei ao Chico que, à noite, da Tapada, víamos umas luzes na serra onde ele morava, em vez de explicar que era ele e o pai à cata do texugo que lhes comia o milho, falou de espíritos do outro mundo.
O ambiente foi-se carregando e no dormitório ao lado já o Quim trepara com dois amigos para a arrecadação das malas. Por entre as nossas histórias, começaram a ouvir-se uns barulhos e gemidos vindos do alto da arrecadação, fechada com uma porta. E a narrativa fantasmagórica passou da Gardunha para o nosso dormitório, com epicentro na arrecadação onde ninguém ia.
Os gemidos tornaram-se gritos e correrias, com malas atiradas pelo ar. Ambiente aterrador. Depois o silêncio, temperado com as nossas interpretações do que poderia ser: espíritos, almas do outro mundo, com certeza.
A tensão já estava no limite e os gritos e ruídos ainda redobraram de intensidade. No quarto, pairava um sentimento de terror total! De repente, no escuro da porta aberta da arrecadação, apareceu uma caveira iluminada a falar com uma voz cava, acompanhada de ruídos estranhos. O nosso amigo teve um ataque de pânico, começou a gritar e nós saltámos das camas, aflitos, a acender as luzes e a acalmá-lo, pois suava frio e tremia como varas verdes. Um de nós foi ao outro quarto dizer aos colegas que a brincadeira acabara e todos corremos a remediar o mal que tínhamos feito.



Passados estes anos, surpreende-me que as tradições ancestrais desta quadra estivessem tão vivas nas nossas cabeças, como que inscritas nos nossos genes.
Mandem as vossas crianças pedir o santorinho, mas que não digam doçuras e travessuras. Quanto às almas do outro mundo, não vale a pena assustar a criançada. Os nossos santos que descansem em paz.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A Fonte Velha

Por Francisco Barroso

Já me apercebi que os Vicentinos que vivem fora e que gostam da sua terra têm hoje mais uma forma de matar saudades. Visitar o Dos Enxidros. Já o sabia quanto ao pessoal de Lisboa, onde o autor tem imensa família e amigos, mas confirmei, este Verão, o mesmo hábito no pessoal que vive em França.
É realmente bom visitar este blog. Saber as novidades e conhecer mais da sua história através dos textos que o Zé Teodoro nos oferece depois de horas imensas de investigação, em livros antigos que nós nem sequer conseguiríamos decifrar. Obrigado, Zé. Mas, o coração aquece mesmo é quando lá chegamos, depois de mais uma longa ausência fora.
Eu ainda sou do tempo em o pessoal de Lisboa ia à Senhora da Orada de camioneta e chegavam a cantar: Ó meu S. Vivente amado, tu és banhado pela ribeira, tu és a terra mais linda, p’ra mim tu és a primeira. Esta é a prova de que o aquecimento do coração é intemporal. Voltar à terra que nos gerou é sempre algo de reconfortante, de extraordinário.
Posto isto, no qual certamente todos estamos de acordo, há alguns factores que começam a mostrar-se preocupantes. O primeiro é a acelerada perda de população. Todos os anos há uns quantos que partem e nunca mais regressam do sítio para onde vão. As ruas cada ano mais desertas e cada vez mais casas fechadas. Os que estão fora e sonham regressar aquando da reforma vêm essa hipótese cada vez mais longínqua, com o provável aumento dos anos de trabalho para a obter. Chega a ser desolador quando vou à azeitona e às oito da noite não se vê vivalma nas ruas e os cafés desertos, sem ninguém para dois dedos de conversa.
O outro factor já é antigo. É o estado deprimido dum dos locais nobres e mais bonitos da Vila: a Fonte Velha. Uma terra como a nossa, com uma das praças medievais mais bonitas que conheço, bem arranjada e conservada e depois aquela fonte, meu Deus, que quase mete medo. Um local que é uma das suas principais portas de entrada, onde tantos vizinhos do Sobral, Ninho, Tinalhas e de C. Branco vêm no Verão buscar água e que era para estar num brinco, mas não sei porquê, nunca ninguém se preocupou com ela.
Porventura esquecemo-nos que a Fonte Velha é um lugar mágico, que não nos mata só a sede. Foi ali que os nossos pais sonharam o amor. Foi ali que se começaram tantos namoros. Era ali que se esperava pelas raparigas à tardinha, quando iam com o cântaro buscar água fresca para o jantar. Ali se trocaram (e trocam) tantos beijos, tantos afectos…é por isso que é mágico, porque é o ponto de tantos encontros.
Fiquei deveras feliz quando soube que a Banda vai fazer ali a sua sede e recuperar as casas a seu lado. Com a do Zé Passaraço que está um brinco, um dos lados fica arrumado.
Quanto ao outro, o barracão do Quintalinho já devia ter sido demolido há vários anos, porque não faz qualquer sentido manter-se, depois da Casa do Povo construída. A casa paroquial, que é da comunidade e não do Pároco, é outra vergonha nossa, porque nunca a conseguimos acabar. Nunca se pintou e ficou com uma varanda de costaneiros que acabou por cair de podre ainda há pouco tempo. E foi por falta de dinheiro? Não foi. Foi por falta de brio, de vaidade daquilo que é nosso.
Já agora acabo o projecto. O logradouro da casa paroquial, que mais parece um estaleiro deve ser arranjado. Um pequeno jardim fica muito caro? A Junta podia cuidar dele, porque é ela quem em primeiro lugar deve zelar pelos interesses colectivos. As flores e algumas árvores podiam ser oferecidas. A água para o regar não falta. Os contentores do lixo deviam estar num sítio menos visível e menos bonito.
Parece que o que falta mesmo é gosto e generosidade. Mas generosidade como? Se a Vila está cheia de gente generosa? Vejam a quantidade enorme de pessoas dedicadas à causa pública. Não sabem quem são? Eu digo. Todos os músicos da Filarmónica e a sua Direcção. O seu presidente, por exemplo, poderia estar a gozar a sua magnífica reforma a namorar a sua Daniela. Quanto do seu tempo dá à causa? Digo o mesmo das pessoas envolvidas no Rancho, novas e velhas. Querem um exemplo de grande dedicação à comunidade? O meu amigo Zé Taleta. Tem o seu emprego, trabalha a sua horta, faz os seus treinos com a regularidade de um relógio, levando o nome de S. Vicente a todas as corridas em que entra, andou anos e anos na Banda, e agora no Rancho. O João Paulino quanto do seu tempo deu e dá ao GEGA e o Zé Teodoro quanto do seu tempo nos dá para manter o seu (nosso) blog?
O meu muito obrigado a todos vós que ajudais a manter a Vila em pé. Sobre a recuperação da fonte é bom que pensemos nisso, ou como diria o outro: “era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”. Não acham?
Lisboa, 15 de Outubro de 2011.





sábado, 15 de outubro de 2011

A capela-mor da Igreja Matriz

No «Anno de Nascimento de Nosso Senhor Jezus Christo de mil oito centos e trinta e seis, em os sete dias do mez de Agosto…», reuniu a Junta da Paróquia, na sacristia da Igreja Matriz, como habitualmente.
O Presidente Francisco Lobo informou que já estavam tomadas as contas da Fábrica Maior, ao fabricário Joze Henriques, e que existia um alcance líquido de cinquenta e dois mil, duzentos e vinte e seis réis. Propôs então que desta quantia se despendesse o necessário para a feitura da parede da capela-mor da Igreja Matriz, em atenção à precisão que havia de se reparar aquela parede sem demora. A proposta foi aprovada.
Na reunião seguinte, 14 de Agosto, o Presidente anunciou que já ajustara a obra da parede da Capela-Mor com os pedreiros João Faustino e José António, por não haver outros mestres que a pudessem fazer com a brevidade necessária.
Os pedreiros pediam vinte e quatro mil réis, pela feitura da parede e pela grade de ferro para a fresta que havia de levar, livres de carretos de pedra e barro e madeira para os andaimes e dando-se-lhes alguma gente para a abertura do alicerce.
Os membros da Junta aprovaram o ajuste indicado e pediram ao Presidente que se encarregasse de dirigir a obra.
Tudo registado em acta, pelo secretário da Junta da Paróquia Caetano José dos Santos.

A actual capela-mor e a zona envolvente, incluindo a sacristia, datam dos anos oitenta do século passado, mas, na altura, o espaço apenas foi recuperado e reorganizado. Em termos de área útil, esta parte da Igreja resulta das obras de ampliação que ali se realizaram, em 1918, como informa a inscrição na porta da sacristia.
O Tó Sabino falou-me, há dois anos, de uma foto da Igreja antes desta ampliação, mas não a conheço. Por isso vou tentar descrever esta parte da Igreja, com base noutras fontes.
A capela-mor é a parte da Igreja onde se situam o altar e o sacrário e em que decorrem os ritos litúrgicos (missa…). Como bem sabem os rapazes e raparigas da minha idade, nos anos 60, as cerimónias religiosas decorriam no altar do fundo da capela-mor, quase sempre de costas para os fiéis, todos de frente para o sacrário. Só depois se acrescentou o altar onde actualmente decorrem os actos religiosos.
Seria naquele altar do fundo, cercado de adornos em talha dourada, do tamanho de toda a parede, que se celebravam os ritos religiosos. Mas, se repararem no tecto da capela-mor, existem duas filas de caixotões pintados e três filas de caixotões em madeira limpa. Até 1918, a capela-mor tinha apenas o tamanho dessas duas filas de caixotões decorados e por isso o altar-mor estaria imediatamente atrás do actual altar onde se celebram os actos.
A sacristia seria muito diminuta e localizar-se-ia na capela lateral do lado da Praça, onde hoje está o novo sacrário. Na parede exterior, por detrás do altar-mor, havia uma fresta com grade de ferro, como informam os documentos acima apresentados.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Reforma da Administração Local

O Governo apresentou, no passado dia 26 de Setembro, o Documento Verde da Reforma Administrativa Local.
Por acordo com a troika, em meados do próximo ano devem estar lançadas as bases desta reforma e publicada a legislação de suporte.
O jornal Gazeta do Interior, de C. Branco, traz esta semana artigo de fundo sobre o tema.

Algumas questões:

- Confirmaram-se os meus receios: incentiva-se a fusão de municípios, mas a extinção de freguesias é a prioridade. Pudera, é nos concelhos e em volta das câmaras que gravitam as elites partidárias locais, no poder agora ou daqui a uns anos. Afrontá-las seria criar fracturas nos partidos, comprometendo apoios às direções nacionais!

- Na reforma administrativa que extinguiu o concelho de S. Vicente da Beira, em 1895, salvaram-se os concelhos minúsculos de Vila de Rei, Vila Velha de Ródão, Penamacor e Belmonte. Alguns chegaram mesmo a ser extintos, mas restauraram-se de novo, só pelo de S. Vicente ninguém acudiu, como se lamentava Hipólito Raposo. Agora, cem anos depois, preparam-se para continuar a sobreviver. Pelo menos o de Vila de Rei não será tocado, pelo peso que tem dentro do partido do Governo.

- No artigo da Gazeta, vários autarcas da região defendem que, em vez de extinguir freguesias isoladas, a prioridade devia ser extinguir as freguesias das sedes dos concelhos, que não servem para nada, pois aí são as câmaras que fazem tudo. Nas sedes dos concelhos, apenas no século XIX foram criadas as Juntas da Paróquia, nos séculos anteriores eram as câmaras a cuidar dos assuntos das sedes concelhias. Sem esta medida e sem a extinção dos concelhos pequenos, não vejo onde se vá poupar alguma coisa, sendo esse o principal objectivo desta reforma.

- O critério será, segundo o documento, extinguir freguesias com menos de 500 habitantes. No nosso concelho, estão nesta situação o Sobral do Campo, Ninho do Açor, Freixial do Campo, Juncal do Campo, Cafede, Monforte da Beira e Mata. São Vicente da Beira, com 1261 habitantes (Censo de 2011), é a quarta freguesia mais populosa do concelho e também uma das maiores em área geográfica. A lei não a obrigará a alterações.



- Em princípio, não sou um partidário cego das freguesias atuais. Muitas vezes, elas dividem os povos mais do que os unem. Por exemplo, Cebolais de Cima e Retaxo são duas freguesias do mesmo concelho, encostadas uma à outra, por uma rua que nem sei a qual pertence. Juncal e Freixial, quase igual. Cafede é uma minúscula aldeia ao lado de C. Branco, quase um mini dormitório. Dos tempos antigos, perdemos a solidariedade, a partilha, a união. São valores a renovar nesta reforma. Associação generalizada de freguesias pequenas e/ou contíguas, independentemente do número de habitantes, porque não? (Mas não percebo onde se consiga poupar dinheiro que se veja!)

- Mas temo por este extingue-se e depois logo se vê. Não vai haver tempo para as ideias amadurecerem, fazendo germinar novas realidades, novas práticas de vida comunitária. O que está em risco de morrer é nada menos que a democracia local, a proximidade com as pessoas, a participação das comunidades na resolução dos seus problemas. Claro que não é a associação de freguesias, só por si, que implicará esse risco, mas sim as soluções apressadas. Há uns tempos conheci um ditado que retrata esta ideia: cadelas apressadas parem cachorros mortos. Estamos a esquecer-nos demasiado das pessoas: a lógica atual é a precaridade e o desemprego, porque se poupa; fechar serviços, porque se poupa; diminuir os transplantes, com a consequente morte dos pacientes, porque se poupa… Cresce um sentimento generalizado de abandono, entre as gentes.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O nosso falar: trogalho

É um trogalho, trogalhão ou trogalheiro quem se engana frequentemente naquilo que quer dizer. Troca tudo, mete os pés pelas mãos.
O dicionário informa-me que um trogalho é uma pequena corda para servir de atilho. Não foi por aqui que os nossos antepassados qualificaram quem diz trogalhices.
Trogalho significa também uma pessoa desajeitada. Mais não diz o dicionário e por isso ficamos sem saber se esta falta de jeito se aplica a tudo ou só ao falar, como na nossa freguesia.
Chamar a alguém trogalhão ou trogalheiro é uma forma carinhosa de se referir às suas dificuldades em se expressar pela fala. Normalmente, aplica-se às crianças e aos idosos, pessoas em quem a trogalhice é natural. Mas, por uma questão de respeito, raramente a usamos em relação a alguém que diz trogalhices por motivos de saúde.

sábado, 1 de outubro de 2011

Os eleitores de 1838

Em Outubro de 1838, a Junta da Paróquia reuniu, sob presidência de José Hipólito, estando presentes ainda João Duarte Marques (Regedor), João Agostinho, Gregório Lopes e Jacinto Nunes.
A ordem de trabalhos era o recenseamento dos eleitores da freguesia, a fim de votarem nas eleições municipais.
Segundo a legislação da época, só podiam votar os homens maiores de 25 anos, com posses para sustentar a família. Era o voto censitário, reservado aos mais ricos (com o mínimo de 100$000 réis de rendimento anual).
Considerando a população da freguesia, anos antes, no Censo de 1801 (323 fogos e 1397 habitantes), os 82 eleitores recenseados representam 25% dos chefes de família. Em média, por cada 4 famílias(fogos), o chefe de uma delas tinha direito a votar nas eleições.

Eleitores da freguesia de S. Vicente da Beira, em 1838

Vila
Francisco António Leitão
António Leitão
Manuel Duarte Durão
José Henriques Sénior
Francisco Vaz Raposo
Joaquim Duarte
António Ferreira de Carvalho
Bernardo António Robles
Manuel de Oliveira
O Reverendo Padre Joaquim Marques
Manuel Simão
João Agostinho
Caetano José dos Santos
António Roiz(Rodrigues) Castanheira
João Duarte Marques
Joaquim Se.(?) Gonçalves
Francisco Cardoso de Almeida
João Duarte Neto
O Reverendo Vigário Manuel Marques Leite
Francisco Duarte Lobo
João Robalo da Cunha
O Doutor José Maria de Moura
José Hipólito
Gregório Lopes
Joaquim Nunes
Bonifácio José de Brito Coelho de Faria
Francisco Rodrigues Lobo
Francisco Cardoso
João Duarte Remoaldo
Jacinto Nunes
Francisco Henriques
João dos Santos Vaz Raposo
O Reverendo Padre João António Ribeiro
Domingos da S.ª(Santa?)
João de Mesquita

Pereiros
João de Oliveira
António Fernandes Pedro
José António
Manuel Roiz(Rodrigues)

Paradanta
Manuel Leitão
João Mendes

Partida
Manuel Martins Dâmaso(?)
António Fernandes Varanda
João Fernandes Pedro
Manuel Martins Pedro
José João
João da Costa
António Martins
José Freire

Vale de Figueiras
João Martins
Manuel Francisco
Domingos Vicente
José Rodrigues

Violeiro
Francisco Vaz da do meio
José Fernandes Sapateiro(?)

Mourelo
Manuel Leitão Matias
João Faustino
Francisco Varanda
João Miguel
Manuel António
João Diabinho
Manuel Roiz(Rodrigues) Bartolomeu
José Varanda
João Francisco Diabinho

Tripeiro
João Ribeiro Garrido
José Martins
Paulo Lourenço
Francisco Valentim
Francisco Afonso
João Ramalho
Joaquim Francisco Magueijo
Francisco José de lopio(Lopo?)
José Lourenço Sénior
Francisco Ramos
João Marcelino

Casal da Serra
Francisco Rolão
Manuel Freire
José Cruz
Manuel Cruz
Joaquim Cruz
José Caetano
Joaquim Martins

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Uma sede para a banda


Com 100 anos, a Filarmónica Vicentina já merece uma casa sua. A Direcção e a Câmara Municipal estão a tratar disso.
O local é um dos mais bonitos da Vila: a casa e quintal que foi de João Coxo, junto à Fonte Velha, e uma outra casa encostada, a dar para a Rua Dona Úrsula.
A nossa banda ganha uma sede e requalifica-se aquele espaço, já em ruínas.
Só falta a casa da família Cunha e o largo da fonte ficará um brinquinho!

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O nosso falar: malina

A palavra tem outros significados, mas, nos sentidos que lhe damos, é o mesmo que maligna.
No referente à saúde das pessoas, a palavra malina designa uma doença contagiosa, como uma gripe, mas tem sobretudo o sentido de algo ruim, incurável.
Nas plantas, aplica-se a doenças como o oídio (cinza) e o apodrecimento dos gachos ou a cinza e os piolhos nos feijoeiros. Como viram em recente comentário do Ernesto Hipólito, a vindima este ano foi fraca, porque deu a malina dos gachos.
Conheço um agricultor de fim de semana que se iludiu com o bom tempo do ano passado, não tratou as videiras, nesta primavera, e agora restam-lhe as uvas morangueiras. E viva a festa!
Mas malina também pode usar-se para apreciar o carácter de uma pessoa. Uma mulher malina é maldosa, mal-intencionada, gosta de fazer mal. No masculino, a mesma coisa e ainda sinónimo de diabo. Ele que não existe no feminino, talvez porque, quando foi criado, as mulheres não eram suficientemente importantes para serem dignas da maldade de que ele é capaz.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A côngrua de 1836

A Junta da Paróquia reuniu, no dia 9 de Outubro de 1836, a fim de «…arbiterar ao Reverendo Parrocho desta Freguesia huma congrua decente e razoável, conforme o seo trabalho e as posses dos Fregueses…».
A ordem vinha do poder central, via Câmara Municipal, acompanhada de cópia do decreto de 19 de Setembro.
O que sendo tomado em consideração «…com toda a madureza, que o objecto demanda, acordou a Junta que em atenção áo trabalho, que o Reverendo Parrocho tem na Administração dos Sacramentos por ser esta Freguezia numerosa e constar de Povos dispersos, que a Congroa annual fosse arbiterada na quantia de duzentos mil reis em dinheiro não só por que nesta quantia veria a emportar a sua congroa antiga, que as Comendas lhe pagavaõ em géneros, mas (…) naõ devia parcer excessiva tendo consideraçaõ á grandeza da Freguezia.»

Há séculos que as comendas de Avis e de Cristo beneficiavam dos rendimentos da Igreja, no concelho, e por isso pagavam as suas despesas. Em 1758, Ordem de Cristo pagava ao Vigário 17500 réis em dinheiro, 4000 réis em casas de aposentadoria, 300 alqueires de pão meados trigo e centeio, 40 almudes de vinho em mosto, 7,5 alqueires de azeite e metade do pé de altar; a Ordem de Avis pagava-lhe 14000 réis e metade do pé de altar.
Mas a revolução liberal de 1820, confirmada pela vitória dos liberais na guerra civil de 1828-34, acabou com essa realidade, ditando novas regras, que aqui dou a conhecer.

O mesmo decreto mandava «…arbiterar áo cobrador huma cota razoável pelo seo trabalho…» e por isso acrescentou-se a quantia de seis mil reis, «…que vinham a ser dois e meio por cento como se costuma dar aos recebedores da fazenda Publica.»
E era necessário ordenado para o sacristão «…que ajude o Parrocho no serviço da Igreja…» . Como a Junta não tinha dinheiro para lhe pagar, decidiu-se cobrar mais cinco mil e setecentos e sessenta réis.
Côngrua para o pároco + ordenado do sacristão + pagamento ao cobrador = duzentos e onze mil, setencentos e sessenta réis. Esta quantia devia ser derramada (dividida) pelos fregueses.
No dia 1 de Janeiro do ano seguinte, o rol (lista) dos chefes de família da freguesia já estava pronto e por isso se decidiu cobrar a côngrua, imediatamente, sendo nomeado, para cobrador, João Duarte Marques.

sábado, 17 de setembro de 2011

O nosso falar: gacho


Gacho de moscatel branco.

Com as vindimas quase no fim, há que recordar a palavra gacho. Este ano os gachos estavam fracos. A humidade primaveril favoreceu o aparecimento de doenças, sobretudo do oídio.
Andei toda a semana a pensar esta palavra, que não existe com o sentido que lhe damos. Gacho é a parte posterior do pescoço do boi, em que assenta a canga, o cachaço. Também se usa para designar uma pessoa baixa, atarracada.
Na quinta-feria, fez-se-me luz: gacho é a nossa maneira de dizer cacho. O nosso povo dizia cacho sem abrir suficientemente a boca e por isso os mais novos, ao aprenderem a palavra, percebiam gacho e assim ficavam a dizer.
Abrir a boca para dizer cacho era (é) uma trabalheira!
Cacho é um conjunto de flores ou frutos sustentados por pedúnculos. Exemplo: cacho de uvas. Cada bago é uma uva e o conjunto das uvas forma um cacho de uvas.
Na minha infância, nem sequer conhecia a palavra uva. Só dizia gacho. Agora quase desapareceu, já ninguém a usa.


Estes gachos são de morangueiro branco. São docinhos e não há malina que entre com eles.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Recenseamento militar - 1838

Na reunião da Junta da Paróquia de São Vicente da Beira, a 14 de Setembro, na Sacristia da Igreja Matriz (em obras desde 1918, pelo menos) deu-se cumprimento às ordens de Sua Majestade, a rainha Dona Maria II, recenseando os mancebos que estivessem nas circunstâncias de serem apurados para o exército permanente(de primeira linha).
A listagem elaborada foi a que se segue. Respeitou-se a ordem das pessoas e das povoações como consta da acta da reunião.

Vila
António, com 18 anos, filho de Eleutério dos Santos
José, com 19 anos, filho de José Moreira (com 60 anos)
António, com 24 anos, filho de Margarida dos Prazeres
António, com 22 anos, filho de Maria Luísa
José, com 19 anos, filho de Constantino Fernandes
Francisco, com 18 anos, filho de Inês Ribeiro e pai incógnito
José, com 23 anos, filho de António Leitão Salgueiro
Francisco, com 22 anos, filho de António Gil
João, com 14 anos, filho de João Duarte Remoaldo
António, com 22 anos, filho de José António Craveiro
António, com 19 anos, filho de Matias Vaz dos Santos

Casal da Serra
Caetano, com 22 anos, filho de Joaquim Martins

Pereiros
João, com 20 anos, filho de José Varanda
José, com 29 anos, filho de João Ramos
António, com 20 anos, filho de pais incógnitos, a viver em casa de Rosário Martins

Partida
José, com 20 anos, filho de João da Costa
António, com 23 anos, filho de António Rodrigues Paradanta
António, com 22 anos, filho de José Martins
António, com 19 anos, filho de Ana Leitão (viúva)
Firmino, com 19 anos, filho de pais incógnitos, a viver em casa de Maria (viúva)
Joaquim, com 18 anos, filho de Isabel Leitão (viúva)

Paradanta
Francisco, com 19 anos, filho de José Monteiro
António, com 22 anos, filho de pais incógnitos, a viver em casa de Martinho dos Santos
Júlio, com 19 anos, filho de pais incógnitos, a viver em casa de Rodrigo Leitão
Francisco, com 19 anos, filho de António Gonçalves

Violeiro
Joaquim, com 19 anos, filho de Domingos Lopes Folgado
João, com 24 anos, filho de Maria Martins Páscoa
António, com 20 anos, filho de Manuel Pires
José, com 19 anos, filho de José Pires

Tripeiro
Luís, com 18 anos, filho de Paulo Lourenço
António, com 22 anos, filho de Domingas Lourenço (viúva)

Neste ano de 1838, a Junta da Paróquia era assim formada:
José Hipólito, Presidente
João Duarte Marques, Regedor
Gregório Lopes
João Agostinho
António Leitão

Notas:
- Os bebés expostos eram criados por uma ama e ficavam a viver com ela até serem adultos ou, cerca dos 10 anos, iam trabalhar como criados, para outra casa. Nos casos acima referidos, não temos informações sobre qual destas duas situações se aplica a cada um deles, mas o normal era ficarem na casa que os recebera acabados de nascer.
- Não havia nenhum mancebo entre os 18 e os 24 anos, no Mourelo e no Vale de Figueiras.
- Na época, escrevia-se Peradanta e não Paradanta. Tal facto vem reforçar a hipótese da palavra derivar de Pedra de Anta (anta: construção sobre o solo, com grandes pedras, que servia de túmulo colectivo).

domingo, 11 de setembro de 2011

No nosso falar: chapado

A Margarida Gramunha regressou às origens e ouviu a expressão: “Já me chaparam.” (Ver comentário a “O nosso falar: relouquedo”).
Eu também já não a ouvia há muito tempo, mas costumava usá-la regularmente, sobretudo na forma: “Estou chapado.”
Chapar vem de chapa, uma peça de metal, com a forma achatada (espalmada). O verbo chapar significa colocar uma chapa em algo. Por consequência, ser chapado quer dizer receber uma chapa, ser marcado com ela.
Estou chapado” ou “Já me chaparam” querem dizer que o sujeito foi marcado, sofreu ou vai sofrer uma penalização, à qual sente que já não pode fugir. Mas é uma pena suave, embora trabalhosa. Em todo o caso, está lixado!
Por exemplo, tem de se escolher uma pessoa para uma tarefa ou cargo que ninguém ambiciona. Antes da votação, alguém mobilizou os outros para a escolha recair sobre um deles. Este está chapado, vai ser designado, não tem escapatória. Aqui usa-se chapado com sentido de marcado.
Ou um grupo de pessoas combinou e repartiu tarefas. No final, descobre-se que alguém não cumpriu a sua parte e outro terá de ir fazer o que falta. Esse está chapado. Por exemplo, um pastor emprestou um chibo para cobrir as cabras de outro. Combinaram a devolução do chibo passada uma semana. Mas já passou o prazo e o chibo está a fazer falta no rebanho. A solução é o pastor, no final do dia, ir buscar o chibo ao rebanho do outro, em vez de ir descansar. Está chapado. (Este exemplo é do tempo em que não havia telemóveis e de um mundo rural que já quase desapareceu.)
Desconheço a origem do significado que damos a chapar e chapado. A única explicação que encontro é ter origem na recruta militar, usada até ao século XIX. Todos os homens dos 18 aos 60 anos pertenciam a um corpo militar local chamado Ordenanças. Pouco faziam, além de algum treino e certas tarefas. Mas em caso de guerra, cada concelho enviava ao comando provincial um batalhão de ordenanças, formando-se assim os Regimentos de Milícias. Mas isto esporadicamente e por pouco tempo. O pior é que os oficiais das Ordenanças tinham de escolher e enviar, regularmente, certo número de rapazes para fazerem parte do exército de primeira linha, o exército nacional permanente. Era uma grande reviravolta na vida destes jovens, que partiam para longe, a pé ou a cavalo, por alguns anos. Muitos andavam fugidos das autoridades durante muito tempo, pois recusavam-se a deixar a casa familiar.
Eram chapados, isto é, o seu nome fora tirado para irem cumprir serviço militar longe de casa (no nosso caso, na Fortaleza de Almeida). Talvez o seu nome fosse inscrito numa placa de metal.
Esta é apenas uma hipótese de explicação. Todas as achegas são bem-vindas.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Chegar a porca ao porco

A leitura da notícia “O varrasco do concelho” pode dar-nos a ideia de que levar uma porca ao porco era uma coisa banal, mas não, não era pera doce.
Nos finais dos anos 60, o meu pai emigrara para França e a minha mãe, com muitos filhos, cá tocava a vida para a frente. Havia anos em que o porco que comprava para criar era uma porca e então punha-se a fazer contas. Tirar uma ninhada de porcos, antes de a matar, iria ajudar um pouco na economia da casa, concluía ela. Havia o inconveniente de adiar a matação para inícios da primavera, mas isso era o menos.
Entre Abril e Junho, a porca ficava saída e então ganhava o privilégio de sair da furda e descer a quelha até à Vila. Depois, rua da Cruz e rua do Convento abaixo, transpúnhamos o portão da Casa Conde e, já dentro, procurávamos o quinteiro ou a mulher dele.
O barraco morava sozinho, numa furda. Abríamos a cancela e chegávamos-lhe a porca. Ele interessava-se logo por ela, esfregavam-se um no outro, roncavam e faziam o serviço. A seguir, desinteressava-se e nós puxávamos a porca para fora e ala para a Tapada, agora sempre a subir, com pausas para descanso, pois a porca nunca andara tanto na vida dela.
Havia porcas que andavam bem, mas outras eram um monte de trabalhos: deitavam-se no chão, teimavam em seguir por ruas fora do nosso itinerário…
Uma houve que foi particularmente difícil de levar e trazer. Até ao Cimo de Vila não houve novidades, mas depois deu em deitar-se no chão, afocinhar, correr para a Corredoura quando nós queríamos descer a rua. De pouco valeu a lata com o milho ou a folha de couve. Fez o que lhe apeteceu e só à conta de empurrões pelo rabo, puxões pelas orelhas e folhas de couve roubadas num couval ali perto é que encarreirou com a descida. Chegou às traseiras da Igreja sem mais trabalhos, mas depois queira ir passear para a Praça ou ficar a fossar na esquina da rua Dona Úrsula. Mais uma trabalheira para a meter na quinta. Lá dentro foi o costume, fácil.
No regresso, outro calvário, menos movimento, mas igual teimosia. Já estávamos todos cansados, a porca e nós (eu e a minha mãe) e ela só queria ficar a espojar-se nas valetas frescas da regadia. Mas lá voltou à furna.
Se, no mês seguinte, a porca não desse sinais de andar saída outra vez era porque estava coberta. Então esperava-se até parir e a vida na Tapada tornava-se uma festa, com uma ninhada de bacorinhos branquinhos a brincar de um lado para o outro e a correr para a mãe sempre que ela os chamava para mamarem, com um roncar carinhoso.
Depois, quando já comiam a comida da mãe, também eles desciam a quelha para a Vila, no sábado do mercado. Agora, a porca não fazia birras, nem tinha caprichos, toda atenções só para os filhos. O pior eram eles mesmos, desabituados do movimento das ruas. Corriam de um lado para o outro, entre o susto e a brincadeira. E nós (agora com reforços) a tentarmos mantê-los junto da mãe, que não sabia para onde se virar.
O mercado dos porcos era na entrada da rua do Quintalinho, então aberto para futura urbanização. Eu ficava ao pé da porca, juntando os porquinhos o mais possível. A minha mãe dava uma volta pelos negociantes de leitões, a ver os preços. Se tínhamos a sorte de alguém se abeirar de nós e mostrar interesse pelos porquinhos, vinham logo os negociantes, um a um, a desdenhar dos nosso porcos e a perguntar o preço. A minha mãe enervava-se, mas aguentava aquele jogo de cálculo e nervos que durava uma ou muitas horas, dependia de como estava o mercado e da pressa que os negociantes tinham em partir. Era a eles que acabávamos por vender quase todos os porcos.
E voltávamos para casa com a porca, todos aliviados, mas confusos: a porca por não voltar com os filhos, eu a tentar entender aquela lição prática de economia e a minha mãe na dúvida se fizera o melhor negócio.
Bom ou mau, o preço de um leitão era para pagar a cobrição ao dono do barraco. O resto engordava a porca para a matar ainda antes de vir o calor.