sábado, 30 de junho de 2012

Mais Feira



A Natureza engalanou-se.



O moinho do Pelome, com a sua mó de partir o milho.



Houve muitos guias no passeio pedestre. Junto à casa da roda, foi o Pedro Gama Inácio a botar faladura.



Os lisboetas foram às cerejas. Espero que tenham espantado os javalis!


Nota: As fotos são da Sara Varanda, que entretanto já partiu para Inglaterra. Muitas felicidades neste novo ciclo da sua vida!

sexta-feira, 29 de junho de 2012

3.ª Feira: o balanço

A Feira de Gastronomia e Artesanato que decorreu no último fim de semana já ganhou foros de acontecimento marcante na vida da nossa comunidade.
Estive apenas em dois momentos, tarde e noite de abertura e manhã de domingo, mas não me é difícil adivinhar o êxito que terão sido as atuações do rancho e da banda. Na parte dos comes e bebes, a animação já era muita na sexta feira e continuou no sábado e no domingo, segundo me constou.

Cerimónia de abertura: reconstituição histórica de um julgamento medieval, por alunos e professores da Escola de São Vicente, com a colaboração do bombos VICENTINOS.
Pela parte que me toca, o balanço que faço é francamente positivo. A apresentação do meu livro “O Concelho de S. Vicente da Beira nos finais do Antigo Regime” correu muito bem, tendo o Pe. Jerónimo falado para uma sala repleta de gente. Das suas sábias palavras, destaco esta ideia: «Um livro é para se abrir e para se ler, tal como um território é para se percorrer e se contemplar. Só assim ele revela toda a sua riqueza de informação e nos instrui e delicia.»




Quanto ao passeio pedestre que descrevi na anterior publicação deste blogue, foi o completar de um projeto que iniciei há dois anos. Embora a participação tenha sido fraca, tal como nos anos anteriores, tal fato não retira riqueza aos momentos que os participantes viveram. Todos os anos oriento vários passeios deste tipo, na zona histórica de Castelo Branco, para os meus alunos, e tanto se me dá que participem 5 como 35. Costumo dizer que se fosse só 1 já era muito importante. É curioso que o Pe. Jerónimo tenha terminado a apresentação do meu livro fazendo precisamente um apelo para a realização destes passeios, ao mesmo tempo que nos lançava este desafio: Que S. Vicente estamos a construir e que terra queremos deixar aos que nos seguirão?
Vamos continuar e durante este passeio até já programámos o do próximo ano: Da Praça a Santa Bárbara (Valouro).

O sr. António Craveiro, nosso cicerone no Pelome, a mostrar-nos o velho moinho.

Dois aspetos a melhorar, nas futuras feiras:
1. O tecido económico tem de se envolver mais na feira. Não sei como mobilizá-lo, mas é fundamental que isso aconteça.
2. E as nossas tradições do São João? Porque não incorporá-las na feira?


Nota: As fotos são da Sara Varanda e da São Teodoro.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

À descoberta dos encantos e recantos de São Vicente, parte II

Éramos poucos, mas bons! Depois de uma breve resenha histórica sobre o concelho de São Vicente da Beira, na época do foral manuelino, em jeito de comemoração do seu 5.º centenário, seguimos pela rua que vai da praça para a ponte, nome da rua Nicolau Veloso até finais do século XVIII, com paragem na casa que foi dos viscondes de Tinalhas.

Pela Calçada da Ponte...

Em Santo André, recordámos a ponte de pau, a única que existiu sobre a nossa ribeira até meados do século XX. Também vimos as ruínas do lagar dos irmãos Cabral de Pina do Violeiro, mais tarde herdado pelos antepassados dos viscondes de Tinalhas.
Passou por nós o tio João da Cruz, a quem pedira para ser nosso cicerone à sua Azenha Nova. Fomos andando, enquanto ele ia deixar o molho de feno ao palheiro do Pombal e fechar as cabras na corte.
A custo entrámos na azenha, que também foi dos Cabral de Pina, no passado. Evitámos as urtigas, mas lá dentro não havia nada de interesse. Fomos ver a roda da azenha, mas ela estava escondida por silvas e salgueiros. Só a Libânia a conseguiu vislumbrar, com ervas pela cintura.
Regressámos, pois o tio João da Cruz tardava e a manhã prometia aquecer. Já íamos na casa que os pais dele construíram, quando chegou, perguntando-nos se tínhamos visto o engenho no interior. Não havia lá nada, dissemos. “Se não viram isso, não viram nada!”, ralhou ele sem se deter, na certeza de que o seguíamos.
Atravessou o matagal de urtigas e nós fomos atrás dele, mas com cautelas. Desviou umas telhas e puxou um taipal, por onde se deixou escorregar para um buraco escuro. Gritámos, mas ele sossegou-nos e pediu um codaque. Não percebemos e só à terceira insistência é que entendemos que queria uma máquina fotográfica para nos fotografar o engenho. A São e a Sara juntaram-se-lhe e tiraram mais fotos. Por cima, espreitávamos o engenho, encantados com o que víamos e que nem imaginávamos existir.

Na Azenha Nova...
Puxámo-los do buraco e saímos, maravilhados e entristecidos por deixar a apodrecer tamanha riqueza da engenharia hidráulica. O Ernesto lembrou outra maravilha dos nossos artesãos: recordava-se de ver, na sua infância, o João Ventura pai a fazer uma roda de um carro de bois a partir do zero, usando pedaços de madeira de azinho.
Despedimo-nos do tio João da Cruz e continuámos. Vimos o sítio da forca e depois virámos para o Belo Jardim e descemos para o Pelome, onde as peles eram curtidas no passado, mesmo ao lado do moinho também arruinado.
Subimos para a Estrada Nova, nova de cerca de 1940, pois a antiga passava pela Praça. Seguimos direitos a São Sebastião e notámos as semelhanças da fachada da capela com a da Igreja. No cruzamento milenar do Marzelo, percebemos as duas estradas que no passado ali se cruzavam, uma este-oeste, pelo sopé da serra, e outra norte-sul, vinda do Alentejo para Beira mais alta. E ainda existe o troço romano junto à fonte da Portela, para mostrar a sua antiguidade. Enquanto estudávamos o local à sombra de uma cerejeira, fomos colhendo e comendo, pois ainda não estavam quentes.
Continuámos pela Corredoura e parámos a meio, no local da capela de São Domingos, agora nada, como a de Santo André. E, no alto da rua da Cruz, unimos esta à visita de há dois anos, descendo a rua sem pressas, recordando coisas que alguns já sabiam mas os estreantes ignoravam.
Como diziam os nossos antigos: soube a ginjas!


Esta roda interior é movimentada pela roda exterior, por um eixo na horizontal, e, ao passar naquele corpo de paus, em cima, encaixa neles os dentes e movimenta-o, fazendo girar este eixo vertical que transmite o movimento à mó superior.

Fotos do Ernesto Hipólito e da Sara Varanda

sábado, 23 de junho de 2012

São João era bom homem...

Os rapazes aproveitaram o regresso do trabalho para trazer molhos de rosmaninho e deitaram mão a toda a marcela que encontraram. Sabiam bem onde os havia com fartura, senhores que eram de montes e caminhos. As raparigas também ajudaram, com braçados de rosmaninho e sobretudo de marcela, sua preferida.
O rosmaninho e a marcela eram para a festa do São João e com eles fariam várias fogueiras e não uma só, como no Natal. À noite, todos trouxeram o rosmaninho e a marcela para os lugares do costume, largos, praça ou cruzamento e entroncamento de ruas, e fizeram montes que depois atearam.
A Vila encheu-se de um fumo acre, mas ninguém se importou, até tinha piada alguém tentar saltar a fogueira e chocar com outro que vinha do lado oposto. Todos saltavam, pequenos e grandes, novos e velhos, dependia do entusiasmo que cada um punha nas coisas da vida.
Assegurada a manutenção da fogueira pelas crianças na companhia dos adultos, os jovens solteiros percorriam, em rancho, todas as fogueiras da terra, saltando e galhofando de alegria.

Uma mulher mais velha entoou:

A 24 de Junho,
Ai a 24 de Junho,
Nasceu uma linda flor.
Nasceu S. João Batista,
Ai nasceu S. João Batista,
Primo de Nosso Senhor.

E outra continuou:

São João não tem capela,
Ai São João não tem capela,
Nem flores para a fazer.
Vamos ao rio Jordão,
Ai vamos ao rio Jordão,
Algumas lá há de haver.

Donde vens meu São João,
Ai donde vens meu São João,
Donde vens tão orvalhado.
Venho do rio Jordão,
Ai venho do rio Jordão,
Regar o pé ao cravo.

E a primeira respondeu com uma outra versão.

Donde vens meu São João,
Ai donde vens meu São João,
Donde vens tão molhadinho.
Venho do rio Jordão,
Ai venho do rio Jordão,
De regar o cebolinho.

Sim, porque o São João também tinha uma horta e regava as flores e o cebolo, como os demais.
E, sendo bom filho, nunca se esquecia do pai e da mãe.

São João subiu ao céu,
Ai São João subiu ao céu,
A regar o seu jardim.
Trouxe um cravo para Sant´Ana,
Ai trouxe um cravo p´ra Sant´Ana,
E outro p´ra São Joaquim.

Ele era povo. E nem sempre virtuoso.

São João era bom homem
Ai São João era bom homem,
Se não fosse tão velhaco.
Levava três moças à fonte,
Ai levava três moças à fonte,
E vinha de lá com quatro.

Homem macho, como se queriam todos os da espécie, a lançarem a escada às moças.

Para o São João que vem,
Ai para o São João que vem,
Já não moro nesta rua.
Inda não tenho casa,
Ai inda não tenho casa,
Menina arrende-me a sua.

E elas esperançosas.

No altar de São João
Ai no altar de São João,
Nasceu lá uma cerejeira.
Qual será a ditosa,
Ai qual será a ditosa,
Que colherá a primeira.

Porque ele era o protetor das moças.

No altar de São João,
Ai no altar de São João,
Nasceu uma rosa amarela.
São João subiu ao céu,
Ai São João subiu ao céu,
A pedir pelas donzelas.

Todos dançavam e as fogueiras mais animadas eram as que tinham as melhores cantadeiras e as moças mais bonitas e reinadias.
Marcou-se encontro com o São Pedro, na esperança de repetir a festa.

São João e o São Pedro,
Ai São João e o São Pedro,
São dois amigos compadres.
São João levava o cálice,
Ai São João levava o cálice,
São Pedro levava a chave.

E a noite terminou numa marouva anunciada.

Esta noite hei de ir às ginjas,
Ai esta noite hei de ir às ginjas,
Esta noite hei de ir a elas.
Quem as tem que as guarde,
Ai quem as tem que as guarde,
Senão ficará sem elas.


D. João de Mendonça, o bispo da Guarda que iniciou a construção do Jardim do Paço, em Castelo Branco, mandou lá colocar uma estátua de S. João Batista, com a seguinte inscrição:
"Das mulheres não nasceu maior homem do que S. João Batista, ao qual pregador do deserto, João entre todos o mais humilde, dedicou este retiro no ano do Senhor de 1725"

Nota:
A recolha das estrofes cantadas ao São João foi da minha irmã Maria Isabel dos Santos Teodoro, para um trabalho escolar já várias vezes aqui citado.


terça-feira, 19 de junho de 2012

sábado, 16 de junho de 2012

Fui ao Pelome

Fui ao Pelome, a preparar o passeio pedestre de 24 de Junho, domingo, com início às 8.30 h, na Praça. Esta atividade realiza-se no âmbito da 3.ª Feira de Gastronomia e Artesanato, integrando os respetivo programa.
 A caminho do Pelome, por entre muros altos

 O Lar de Idosos, antigo Hospital, visto do caminho

 No Pelome, dois grandes carvalhos, a minha árvore preferida, não sei porquê

 O açude que deu fama ao Pelome

 Um jardineiro plantou aqui uma horta, com canteiro de gladíolos, ao fundo

A nossa antiga técnica de construção: granito nas quinas e nas aberturas e xisto no resto

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Finalmente o livro

Eis que chega finalmente o dia da apresentação do meu livro que acima se mostra.
Será em S. Vicente da Beira, no próximo dia 22 de junho, sexta-feira, às 20.30 h, durante as cerimónias de abertura da 3.ª Feira de Gastronomia e Artesanato.
A apresentação está a cargo do Pe. Hipólito Jerónimo, nosso ilustre conterrâneo e homem de grande cultura. Quem melhor do que ele, com uma tão forte ligação umbilical a estas terras, poderia falar de um livro cheio de pessoas e lugares que são afinal os nossos?

Deixo-vos com um levantar do véu, a sinopse da contracapa:

Foi há cerca de 250 anos.
Em Tinalhas, vivia Teodoro Faustino Dias, que casou com Maria Cabral de Pina, do Violeiro, filha do Sargento-Mor Domingos Nunes Pousão. Teodoro Dias foi alferes da capitania de Tinalhas. Era o maior criador de gado bovino no concelho, 31 cabeças. A sua filha Eusébia Dias Cabral casou com António Meireles Gramaxo, do Fundão e Soalheira, os quais deram origem à Casa Viscondes de Tinalhas. Teodoro Faustino Dias tornou-se presbítero, após enviuvar, perto dos 50 anos, e foi cura do Freixial.
O Pe. João Antunes era natural do Casal da Serra, onde fiscalizou a capela devotada a São João Baptista, particular dos irmãos Duarte Ribeiro. Foi o capelão de São Tiago, pago pelos vizinhos dos montes da charneca que se fintavam para lhe fazerem uma côngrua, a troco de assistência religiosa. Os espanhóis levaram-no preso, na Guerra dos Sete Anos.
Ana Maria do Carmo nasceu em Castelo Branco e casou com o Dr. Diogo José Pires Bicho Leonardo, natural de Tinalhas, mas residente no Ninho. Enviuvou cedo. Morava na Praça e era dona de uma azenha, no Freixial, e de um lagar confrontante com a ervagem do Vale do Curro.
O Pe. Manuel Marques era natural do Louriçal, já fora cura do Freixial e era-o então do Sobral. Ensinava as primeiras letras aos filhos de parte da elite local: dos Duarte Ribeiro do Casal da Serra e dos Ramos Preto do Louriçal, mas originários do Sobral.
O tribunal e a cadeia eram na Câmara da Vila. Os pais cujos filhos sujassem a água do chafariz passavam 8 dias na enxovia dos presos e das presas. E quem colhesse uvas ou figos, em vinha alheia, pagava de coima 500 réis (Manuel Henriques andou um dia ao entulho, para as calçadas, e recebeu 150 réis).

terça-feira, 12 de junho de 2012

De manus

A palavra latina manus deu em português mão e em espanhol mano.
Além de mão, manus também significava, para os romanos, trabalho, obra e indústria.
Foram estes últimos sentidos que deram origem a maneio ou manejo, pois são sinónimos.
Maneio e manejo significam fazer à mão, designam um trabalho manual. Maneio era o termo usado para um imposto relativo a algumas indústrias (as quais no passado eram executadas à mão).
No antigo concelho de São Vicente da Beira, no século XVIII, alguns livros de registo de gados, para fins de cobrança de impostos e de declaração das lãs produzidas designam-se por Maneios.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Maneios

Houve um ano em que andei sempre com o meu pai. Ele recolhia gado desde os lados do Estreito. Quem lho trazia era o tio João da Paiágua que o deixava num compadre do Tripeiro e depois nós íamos lá recolhê-lo. Às vezes era quase de noite e o meu pai não largava a conversa.
“Nunca te preocupes, filho. Aqui, na Charneca, há sempre uma mesa com qualquer coisa para comer e uma cama, se for preciso, nem que seja uma faixa de palha.”

Conduzíamos o gado pelos caminhos, por entre montes alqueivados e matos ralos, em direção ao Sobral e depois à Devesa. Eu seguia à frente no burro, a indicar o caminho. O meu pai vinha atrás, de olho nas reses que se atrasavam, a abocanhar umas ervitas ou as pontas mais tenras dos matos. “Ah chibo dum ladrão! EH! EH!” Se ele não se juntava ao rebanho, o ralho “Ai o alma do diacho!” e o bordão atirado de longe eram suficientes para convencer o mais desentendido.

O gado ficava no casalito, à espera de outro destino. Por vezes trazia malina e começava a morrer passados um ou dois dias. Duma vez, morreram-nos 50 cabeças. Um prejuízo enorme!

Mais tarde, fizemos um bardo para guardar as cabras e os cabritos, no Vale Covo Cimeiro. O António Rodrigues do Monte do Surdo era nosso vizinho. O meu pai e ele trocavam gado, sobretudo os chibos de cobrição. O mesmo com os primos Albanos, criadores de gado e comerciantes como nós. Se o meu pai precisava de reses, mas não tinha as suficientes, eles desenrascavam-no. Outras vezes era ao contrário.

De quinze em quinze dias, fazíamos o mercado da Soalheira, nos domingos. Abalávamos ainda bem de noite e eu deixava-me dormir em cima do burro, deitado na albarda, com os braços em volta do pescoço dele. Se caísse, a alimária parava logo e só voltava a andar comigo novamente em cima. Ao amanhecer, já estávamos a atravessar a Ocreza, um bocado abaixo do Louriçal. Quando chovia, nós passávamos na mesma, desde que desse para o gado atravessar.

Os cães pastores dos rebanhos que havia nos campos apareciam com aquelas coleiras de picos contra os lobos, logo que sentiam o nosso gado. Ladravam, arremetiam, com as bocarras de dentes afiados, mas nós seguíamos em frente, eu no alto do burro e o meu pai de cajado na mão, com as reses coladas a nós, cheias de medo.

Por causa deles é que o meu pai enxotara o nosso cão. “Bobi, casa! Fica a guardar a tua dona.” Ele sentia-se rejeitado e ficava cabisbaixo, mas teimava em seguir-nos mais afastado e então tirava-lhe as ilusões com uma pedrada. Não queria ficar sem ele. Certo dia, o meu pai levou o gado para a Barroca, a comer as folhas que ficaram do milho depois de colher a maçaroca. À ceia, já em casa, deu por falta do cãozito. Também não achava o casaco que usava pendurado no ombro, quando não estava frio. Voltou à fazenda na manhã seguinte e deu com o cão deitado em cima do casaco, no meio do caminho, quase a chegar aos eucaliptos. Só lhe faltava falar!

Mas como eu estava a contar, íamos ao mercado da Soalheira, domingo sim, domingo não. O meu pai matava um cabrito logo que chegava, oferecia um bom presente ao senhor padre e tentava vender o resto. As outras reses eram compradas pelos negociantes que recolhiam gado para Espanha. Às vezes ainda trazíamos carne na volta, porque era tempo de pouco dinheiro. Em nossa casa, de marchante de gado e carniceiro, nunca faltava a carne, o queijo e o soro. Muitas vezes apetecia-nos outras coisas, mas era o que havia e tínhamos de comer.

Nessas ou noutras noites de domingo para segunda, muito antes de clarear, já o meu pai ia a caminho do Fundão, por aquele Arrebentão acima. Com o burro, mas sempre a pé, porque era muito magro e não gostava de andar a cavalo. Levava as reses que lhe tinham encomendado ou que ia tentar vender. Se não fizesse negócio até meio da manhã, já não as vendia. Depois voltava: Souto da Casa, Vale d´Urso, a subida até ao Alto da Portela e depois caminho da Senhora da Orada abaixo.

“Ai é o filho do ti Meguel Jerolme? O seu pai e o meu eram muito amigos.”




Notas:
- Esta é a primeira história de um novo projeto. Sempre o quis realizar, mas as ideias só há pouco me ficaram claras. Já há anos que venho escrevendo sobre a minha família, por isso o narrador fala na primeira pessoa, na tentativa de passar a escrito as histórias que nos aconteceram. Mas a ideia sempre foi escrever as histórias que se contavam ao serão, em volta do porco, nos trabalhos da matação... Este é o meu novo projeto: passar a escrito as nossas histórias orais. Já tenho cerca de 20, mas tenciono escrever muitas mais, sobretudo de pessoas fora da minha família. Quase todas serão contadas na primeira pessoa, sendo o narrador também personagem da história, pois as pessoas contavam (e contam) sobretudo coisas que lhes aconteceram ou que ouviram dos seus familiares. Mas atenção: todas as histórias serão ficionadas, nunca um retrato rigoroso do que aconteceu ou do que me foi contado; aliás, a minha mãe farta-se de protestar que eu escrevo mentiras no blogue.
Alerta: Esta história é contada na primeira pessoa, mas eu não entro nela!

- A história (de vida) agora publicada ensina-nos a forma como os gados eram deslocados desde a zona de criação até ao local de consumo. Neste caso, desde as proximidades do Estreito (Oleiros) até às cidades da raia espanhola. Da Sertã e Proença para Lisboa seria a mesma coisa: os gados passavam pelas mãos de vários produtores/comerciantes até chegarem aos arredores de Lisboa, passadas semanas ou até meses. (Na Idade Média, o rei tinha um curral enorme, chamado uchão, onde guardava os gados vindos de todo o reino, como pagamento de impostos).
Só na segunda metade do século XX é que apareceram os camionetas de transporte de animais e mais tarde ainda os talhos de dimensões industriais, com os seus camiões frigoríficos.