quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

A menina e o poeta

Aos onze anos fui trabalhar para Castelo Branco, estive lá dois anos e depois vim para a Casa Conde, em 1947 ou 48. O feitor era o senhor José Lourenço que vivia na casa com a mulher, o filho e a nora. Mas ele e a mulher iam dormir à casa do convento, na Cerca.
Como eram duas casas grandes e muito trabalho, havia mais duas criadas, uma criada de voltas e a cozinheira. Numa semana eu lavava a roupa, na semana seguinte limpava as casas. Eu gostava muito de cozinhar e a cozinheira deixava-me. Mas, como ainda era pequena e não chegava ao fogão, punha-me em cima de um meio alqueire para lá conseguir pôr as panelas.
Às vezes estava a passar a ferro e o senhor José Lourenço no escritório. Ele queria que o concelho voltasse e andava a escrever uns versos para eu ir cantar à Fonte Velha.
Vinha ter comigo e dizia-me: “Ó Eulália, canta lá agora esta.”

Querido S. Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
que torne o concelho a vir.

Foi terra muito importante
Lá nos seus tempos de glória.
Ainda tem alguns pregões
Que lhe servem de memória.

Querido S. Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
Que torne o concelho a vir.

Se nós trabalharmos
Todos de amor e vontade
O concelho virá já, já.
Se não trabalharmos,
De amor e vontade,
O concelho virá mais tarde.

Não sei se havia alguma cerimónia, mas não cheguei a ir lá.
Ele tinha uma caderneta para cada mercearia. Fazia compras em todas, para todos andarem contentes: Chico Tavares, Manuel da Silva, Aurélio e Francisco Matias. Quando uma criada ia às compras, levava a caderneta e o merceeiro apontava tudo. No fim do mês, faziam-se os pagamentos.
Onde agora mora a ti Janja, era o forno deles. A Luz Jerónimo é que trabalhava como forneira, mais o marido, o Albertino Henriques. Todos os dias cozia o forno, menos ao domingo. Quem lá ia deixava a poia: um pão por cada tabuleiro e dois ou três bolos por cada lata. Como coziam várias pessoas ao mesmo tempo, cada uma punha um sinal nos seus pães, para os conhecer. À noite, a forneira pegava no cesto do pão da poia e ia à Casa Conde fazer a divisão, metade para cada um. Como nós não conseguíamos comer o pão todo, nas quartas-feiras de manhã dava-se o pão aos pobres. Cortava-se cada pão em dois ou três pedaços e oferecia-se a quem viesse à porta.
Pelo São Martinho, a malta nova juntava-se em grupo e ia cantar e pedir o vinho novo aos ricos. No ano em que eu lá trabalhei, vieram à Casa Conde. No fim de cantarem, o Sr. José Lourenço veio à porta e respondeu-lhes:

Cantam muito bem e muito lindo
Mas este ano o vinho já está findo

Os rapazes insistiram e, como não lhes davam nada, cantaram o trinta martelos:

Trinca martelos
E torna a trincar
Este barba de farelos
Não tem nada para nos dar

O Sr. José Lourenço e a Dona Palmira foram dormir para a casa do convento, mas os rapazes não largaram a porta. Então a Menina Belinha e o Menino Antoninho regaram-nos com um regador, da varanda, e eles abalaram a fugir, todos molhados.
Nos Santos, as crianças vinham pedir um santorinho. Havia um cesto cheio de nozes e cada um só podia meter uma vez a mão e levar as que conseguisse tirar. Alguns ficavam muito tempo com a mão lá dentro, a esticar os dedos para apanharem mais nozes.
Os diospiros vendiam-se a um tostão cada um. No fim da escola, as crianças vinham comprá-los. Aliás, toda a fruta era para vender, o pessoal da casa só podia comer a fruta caída.
Uma noite, o Sr. José Lourenço estava em casa e viu pela janela os ramos do diospireiro a abanar. Mandou um sobrinho ver o que era, porque a viúva do irmão dele trabalhava lá com os dois filhos. O rapaz voltou e disse que era o irmão dele. “E quem mais, não era só uma pessoa!” O rapaz respondeu a custo: “Mais o Mudo.” O senhor José Lourenço chamou a cunhada e disse-lhe que o filho estava despedido e só ficava se ele lhe pedisse perdão de joelhos. A senhora chorava, pois não tinha para onde ir, mas o filho não queria pedir perdão. Andaram nisto quinze dias, mas nesse tempo havia poucos trabalhos e o rapaz acabou por vergar. Foi uma coisa que me fez muita impressão. Na vereda, com a mãe e o filho a chorarem muito, o rapaz pôs-se de joelhos no chão, em frente ao tio José Lourenço, e pediu-lhe perdão.
Ele era muito rigoroso, mas também era bom homem. Dava trabalho a muita gente, sobretudo aos mais velhos que já não podiam andar ao dia. Devia pagar-lhes um pouco menos, mas para eles era bom.
Eu vim-me embora por causa de uma coisa que se passou com a Dona Palmira. No fim de servirmos as refeições, se a comida que sobrava era para guardar para outra refeição, ela mandava-me guardá-la num certo armário e dizia-nos o que devíamos comer. Um dia, a comida foram lulas e no fim a Dona Palmira não me mandou guardar o resto. Eu trouxe para a cozinha e foi dividido pelas três criadas: uma colher para cada uma. À hora de preparar o jantar, a Dona Palmira destinou a comida para cada um e disse que o senhor José comia o resto das lulas. A cozinheira respondeu-lhe que já as tínhamos comido, porque ela não mas tinha mandado guardar. A Dona Palmira ficou muito exaltada e ralhou comigo aos gritos, porque eu é que as tinha trazido para a cozinha.
Nos dias seguintes, ela ficou na casa do convento e eu mandei dizer à minha mãe que me despedia. A minha mãe veio à Casa Conde e disseram-lhe que eu podia ficar se fosse pedir desculpa à Dona Palmira. A minha mãe disse que eu é que decidia, mas que a colher que eu tinha deixado em casa ainda lá estava, por isso a decisão era minha. E eu não quis ficar, pois não ia pedir desculpa por uma coisa que não era só eu que tinha feito.


José Teodoro Prata
com colaboração de Luzita Candeias

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Fomos à taberna do Raposo





Por volta das 21 horas, a taberna já estava cheia. Os homens, ao balcão, conversavam e bebiam o seu copito; as mulheres, mais recuadas, divertiam-se a cantar. E como cantavam bem! Ou não estivesse no grupo a Zulmira fadista…
Foi precisamente a ela que coube iniciar a apresentação dos testemunhos sobre a Quaresma. Falou da Ladainha.

Coube aos irmãos Zé Manel e João Maria Mosca, através de dois textos carregados de memórias e bom humor, fazer o percurso das muitas tabernas que existiram na nossa terra: a da Viúva, mesmo ao pé da Praça; a do João Cocho, no largo da Fonte Velha; A do Arrebotes, na rua da Igreja; a do Mosca, substituído pelo Marcelino, um pouco mais acima; a do Zé Canhoto, mesmo em frente da igreja e que era a última ou a primeira capelinha visitada antes ou logo a seguir à missa. Claro que não foram esquecidas as do Marcelino e a do Francisco Eurico, no Casal.
Como eram importantes estes locais para a vida da nossa Vila! Para além de outros aspetos, eles definiam bem o extrato social da população assim como o papel da mulher, do homem e da criança na família e na sociedade. As pessoas mais abastadas não as frequentavam e também não ficava bem às mulheres lá entrar. A única exceção era a Maria Quefuma que ia comprar o macito de tabaco e aproveitava para beber o seu copinho… Quanto às crianças, só lá entravam quando, a mando da mãe, tinham que ir chamar o pai se já se fazia tarde para o jantar ou para a ceia. Mas ai deles se o pai já estivesse tocado; era tareia ou descompostura certa!
E as bulhas ao final das tardes de domingo? Começavam dentro da taberna, mas acabavam arrastadas para a rua. Eram uma aflição para as famílias dos envolvidos, mas eram também um espetáculo para as outras pessoas que se juntavam à volta para ver quem levava a melhor. Felizmente que era apenas o vinho a falar mais alto e, no dia seguinte, já não restavam sinais de zanga e as amizades eram facilmente restabelecidas com mais um copito…
E os jogos da malha, do nocho ou do burro que se organizavam à volta das tabernas?
Tanta coisa que fica por dizer…, mas com a chegada da televisão, e mais tarde a electricidade, as tabernas foram dando lugar aos cafés: o da Tomásia, o da Ti Janja, o do Cagarola, o do Ventura, e outros que se lhes seguiram. Enchiam-se todos, principalmente ao domingo, para ver as matinés a comer tremoços ou amendoins, ou a sorver até à última gota os gelados que não eram mais do que um cubo de água misturada com um xarope qualquer, mas sabiam melhor do que os mais cremosos gelados da Olá atuais!

A propósito da cerimónia do Lava-Pés, o Zé Pasteleiro contou-nos uma história que nos fez rir a todos: num ano, faltou um apóstolo e o coveiro do Casal da Serra foi-se oferecer ao Sr. António Maria que o mandou ir lavar os pés. Ele foi ao chafariz e lavou apenas um. Mas na missa mandaram-lhe descalçar o outro. No final, o sacristão, muito zangado, perguntou-lhe se não lhe mandara lavar os pés. O coveiro respondeu: “Então, eu lavei um e agora Sr. Vigário lavou-me o outro!”
Também a propósito da Semana Santa, o Zé Teodoro contou-nos uma história passada com ele. Numa Sexta-feira Santa foi ajudar a irmã Fátima a semear as batatas, pois o Joaquim emigrara para França. Acontece que, segundo ele, daquela sementeira nem uma batata nasceu! Terá sido por ser dia santo? Alguém dos presentes sussurrou que foi falta de jeito do agricultor, mas sabe-se lá…

A seguir, ouviu-se o fado pela voz da Zulmira e a guitarra (ou seria viola) do Fernando Pereira (Padrimúsico). Mesmo sem ensaios, foi um momento bonito e contagiante. Viu-se bem como ambos gostam e percebem do que fazem e tiveram a generosidade de o partilhar connosco.
Por fim, acabámos todos a cantar. Primeiro cantigas do Zeca Afonso, em homenagem pelos 26 anos da sua morte (como o tempo passa depressa, apesar das saudades!). Depois, cantigas da nossa terra. Cantámos a Senhora da Orada, quadras que dantes se começavam a ouvir ainda o dia da romaria vinha longe, mas que infelizmente agora já raramente se cantam.

Foram quase três horas de boa disposição e convívio entre todos os participantes. Foram também o relembrar e reviver de muitas memórias que marcaram a nossa infância e juventude.
Penso que a organização está de parabéns. O Presidente João Prata e principalmente a Cila, a Ana, a Catarina, o Pedro Noco, o Zé Pasteleiro e todos os outros que ajudaram.
De louvar também a disponibilização, por parte da família Hipólito Raposo, do espaço para a realização deste encontro. Trata-se de uma casa da qual guardo muitas memórias, sobretudo do seu jardim e da figura da governanta, a ti Antonha que andava sempre com as chaves da despensa e da adega pregadas à cintura, numa tentativa de evitar a ida das criadas à despensa. Coitada, acho que nem sempre o conseguia…
Uma palavra ainda para os “atores” que ao longo da noite simularam as brigas habituais das tabernas.
Destaco sobretudo o papel do Zé Taleta que entrava e saía com o seu ar gingão, depois de ter emborcado mais um copo. O que é que o avô dele, que elogiou de forma tão generosa o padre há anos por fazer sozinho a Semana Santa, não diria sobre este seu neto que corre que nem uma lebre, dança como poucos, toca os pratos de forma magistral e agora ainda é ator! É uma honra tê-lo como primo!
Pelos comentários que fui ouvindo das pessoas que estavam perto de mim, este evento tocou bastante nas memórias de todos os presentes. A mim, comoveu-me muito!
 E agora só resta a pergunta: para quando o próximo encontro? Ficamos à espera!

M. L. Ferreira





Fotografias de José Teodoro Prata

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A nossa Quaresma na USALBI

Ontem, 21 de fevereiro, um grupo de vicentinos trouxe à aula do Professor Américo André, na Universidade Sénior, algumas das nossas tradições quaresmais.
Foi em Castelo Branco, no Auditório do Biblioteca Municipal. Aqui deixo algumas fotos, enviadas pela Ana Isabel Jerónimo Inês, a quem agradeço.








quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A nossa banda

As notícias da nova sede têm-me trazido à memória os ensaios da nossa banda quando ainda se faziam numa sala ao lado da porta principal da Igreja da Misericórdia e o maestro era o primo Joaquim dos Santos, como lhe chamávamos em família.
Lembro-me bem dele, com a sua batuta cujo funcionamento me maravilhava, mas constituía um mistério para mim, quase como se fosse a varinha mágica dos contos de fadas.
Lembro-me bem dos acordes que saíam daquela sala de ensaios e que eram uma antecipação do calendário religioso ou das festas que iam acontecer a seguir: a Semana Santa, a Senhora da Orada, as Festa do Verão, um ou outro concerto na praça, e pouco mais.
De todo o reportório, a música que mais me impressionava, pelo peso dramático que tinha, era a da Procissão do Enterro. Através dela, nós fazíamos a penitência de todos os pecados que tínhamos (pelo que nos faziam crer, já eram muitos, mesmo quando ainda éramos crianças…).
Estive muito tempo sem assistir a alguma atuação da banda. Há três ou quatro anos, na festa do Casal, tive oportunidade de assistir a um concerto que me deixou maravilhada e emocionada por vários motivos: a maior parte dos elementos que constituíam a banda eram muito jovens, mas estavam perfeitamente integrados com outros um pouco mais velhos; o reportório era muito variado, abarcando temas de música popular, música moderna, adaptação de clássicos, etc; o maestro era um rapaz muito jovem, com aspecto muito moderno e que contagiava todos os outros elementos da banda e do público com a sua alegria. Mas o que mais me emocionou foi ver o Zé Taleta a tocar os pratos, num lugar que foi durante muitos anos do seu avô (que era também o meu) e que durante alguns segundos me fez imaginar que era ainda ele que ali estava, com o seu ar altivo, olhos lindos e marotos, mas sobretudo transmitindo através da expressão corporal, o enorme prazer que a música lhe dava.
Entretanto algumas coisas foram mudando: os maestros, os músicos, o reportório, mas tem-se mantido o grande mobilizador: o Comissário João Barroso. O seu trabalho não deve ser fácil, mas ele tem mantido com grande entusiasmo esta instituição que é um elemento importante do nosso património e faz parte do imaginário de todos nós.
Força e que a nova sede seja um incentivo para voos ainda mais altos!

M.L. Ferreira


Banda Filarmónica Vicentina, 2009

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Sede da banda


A estrutura do edifício está pronta. A telha é castanho escuro a intervalar com castanho avermelhado, a imitar o telhado das casas velhas que ali existiam. Em Julho, aquando da festa da banda, a sede estará concluída.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O nosso falar: acompanhar

Mandara lavrar a terra, no Ribeiro D. Bento, e hoje andei a acompanhar. Peguei tarde e larguei cedo, mas venho todo partido, cansado como uma raposa. Acompanhar é cavar. E, como se costuma dizer, cavar só à frente da polícia.
 Acompanhar é cavar, em volta das árvores, o pedacinho que fica por lavrar junto aos troncos. Diz-se acompanhar, porque o cavador acompanhava a lavra. Normalmente, no final do dia, estava tudo feito (lavra e cava) e por vezes até semeado.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Património religioso

José Teodoro Prata Nas Jornadas do Património, realizadas em S. Vicente da Beira, a 11 de novembro de 2012, esteve presente um técnico multimédia que filmou e depois colocou na internet. Este é um dos vídeos. Não está completo e faltam-lhe legendas de identificação e de localização, mas é bonito! O logotipo é das Aldeias Históricas de Portugal, a associação que promoveu as nossas jornadas.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

À nossa ribeira

A .   dos Santos

RIBEIRA DA MINHA TERRA

Ah! Ribeira de São Vicente,
Como te percorri o ventre,
Púbere,
Serrano,
Da nascente.
Era eu ainda uma criança!

Como te calcorreei as fráguas,
Da montanha escarpada,
Úbere,
De onde brotas todo o ano,
Na Senhora da Orada.
Era ainda a vida uma esperança!

Como sei dos sobressaltos,
Das tuas águas,
Que descem,
Por entre as rochas, ali,
No teu leito,
Beijando os salgueiros altos,  
Que crescem,
Nas orlas da tua amurada,
Debruçados sobre ti,
A espreitar-te o peito.
                                                                        
Quando te ouço e vejo,
                        Bruxuleando, reluzente,
Num saltitar de sonoridade,
A caminho do longínquo Tejo,
Como quem te contempla à distância,
À luz do sol poente,
De carmim,
Invejo-te a juventude e a idade,
Porque renasces incessantemente,
E és sempre nova.

Ao passo que, a mim,
Já se me foi a infância,      
E a vida não se me renova.

Brinquei no teu seio,
Descalço, calça arregaçada,
Na intimidade da tua frescura,
P’lo meio dos feixes
De juncos,
Procurando em ti, de uma assentada,
Inexoravelmente,
Entre os espinhos das silvas, como facas,
A tua ternura,
E os teus peixes,
Ambos escondidos, secretamente,
No secretismo das tuas lapas.

Carregado de candura,
Despreocupada, imensa,
Andei, na minha meninice,  
A apanhar-te as borboletas e as libelinhas,
Que ziguezagueavam, entre as tuas flores,
E verdura,
Asinhas,
Que vi, como se ainda agora as visse,
Em recortes de luz intensa,
De mil cores.

E também os gafanhotos, que punha, como isco,
No anzol de alfinete dobrado,
Atado na ponta da linha de coser branca,
Que, arisco,
Surripiava do açafate de costura de minha mãe.

Artimanha desusada,
(Que ninguém,
Com juízo, atamanca),
Procurando pescar-te o fruto prateado,
Nessa armadilha caseira, improvisada,

Ingeri-te o corpo e a alma,
Nas tuas correntes puras,
Bebendo-te, sôfrego,
Em dias de grande calma.

Feri nas arestas das tuas pedras duras,
A pele nua.

Por isso,
Parte da tua água, é também o meu sangue.
Sobre uma laje tua,
Cheia de limo e musgo, escorregadia,
Que a sombra de alguma figueira,
Às vezes já com um laivo outoniço,
Plantada na tua fímbria,
Protegia,
Me deitava, cansado de andar, exangue,
E adormecia.

Como vi e ouvi as bravas mulheres da Vila,
A vida cheia de fé, 
A lavar a roupa nos açudes das tuas claras águas,  
Que a areia térrea da tua profundeza filtrava,
A cantar, para sufocar as mágoas,
Ou para embalar,
O seu menino dentro da trouxa,
Na relva, ali ao pé.

E estendê-la, a corar,
Na erva, sempre verde, da tua margem,
Onde a água não chegava.

E ainda distingo, na memória,
As pequenas figuras,
Como quando de longe as avistava,
Na refração da luz,
Violeta de ametista,
A diluírem-se nas lonjuras,
Como num quadro, uma paisagem,
De um pintor impressionista.

Como me regalava, no verão,
Banhando-me na forte torrente, 
Das tuas cachoeiras refrescantes,
Em completa comunhão,
Contigo!

Ricos instantes,
Que guardo num registo antigo,
Quase da idade,
Do meu coração.
  
Como eu te amo, Ribeira de S. Vicente!
Mas dessa afetividade,
Desse amor,
Apenas me dei conta recentemente.
Amava-te sem saber,
Como quem possui um objeto e não lhe dá valor.

Mas, agora, vou amar-te,
Incondicionalmente,
Até morrer.

E tu, atraindo outros universos,
De outras gerações,
De vicentinos,
Como um feitiço,
Inspirando outros versos,
Outras canções,
Prosseguirás bela, impassivelmente,
Decerto, marcando os seus destinos,
Como musa, já se vê, não como enguiço, 
Até sempre, perenemente.

Amar-te,
Incondicionalmente,
Sim,
Até morrer.

Mas, eu morro,
E tu, Ribeira, 

Ah! Tu continuarás a correr!

sábado, 9 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Parabéns avó


Margarida Gramunha

Vejo-a através da porta, sentada em frente à janela a costurar na sua máquina muito antiga, enquanto conversa com a minha mãe. Fazia belas almofadas e pegas de restos de tecidos. Tenho-as aqui em casa a uso, pois foram religiosamente guardadas no meu enxoval.
Ouço as pancadas do cabo da vassoura a decretar a alvorada, ainda de noite, quando os trabalhos agrícolas assim o exigiam. Ao chegarmos à cozinha, terrivelmente ensonados e maldizendo a nossa sorte, já o pequeno-almoço esperava por nós e dele fazia sempre parte o delicioso pão amassado por tão sábias mãos.
Durante alguns anos, ainda nos acompanhava à serra, onde orientava os trabalhos e cozia tabuleiros de bolos e de pão de trigo. Quando já não nos acompanhava, prometia-nos um soldo a fim de que não esmorecêssemos sob a dureza do sol escaldante na apanha da batata e na vindima ou sob o rigoroso inverno, aquando da campanha da azeitona.
Tive o privilégio de assistir à matança do porco e à forma frenética como andava de um lado para o outro a trabalhar sem parar. Recordo os enchidos pendurados na cozinha e o chá de orégãos que bebíamos à lareira para combater a tosse.
As suas batatas cortadas grosseiramente e fritas em azeite, os seus ovos estrelados numa frigideira de ferro muito pequenina e o seu molho de tomate bem doce eram divinais.
Assim como as filhoses, as bicas, os borrachos e os esquecidos feitos pelas suas mãos.
A máquina está parada no quarto há pelo menos uma década e há já muitos anos que não consegue cozinhar como dantes. Mas o seu saber está já salvaguardado na minha mãe e no meu tio.
A minha avó Maria dos Anjos Alves completa 90 anos, no dia 9 de Fevereiro. É uma idade muito bonita e ainda mais para alguém que diz que está quase a morrer há tantos anos. Embora já quase não se consiga deslocar, o que faz com que não saia de casa, está muito lúcida e muito viva.
Ela tem tantas histórias para contar, sabe orações tão longas que parecem mantras e foi com ela que aprendi a bicha coca, o santo António e a Margarida vai à fonte.
Com todos os seus defeitos e virtudes, ela é maravilhosa.
Deus a conserve cá mais algum tempo para que eu possa recolher mais alguma da sua sabedoria e memória.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

A Preta

Francisco Barroso

O ser humano pertence a uma espécie prodigiosa, disso não tenham dúvidas. A capacidade do seu cérebro para criar associações de ideias e guardar memórias não se compara, nem de perto nem de longe, com a de qualquer outra espécie à face da terra.

Vem a isto propósito de um dia destes andar a dar uma vista de olhos neste nosso blog, que o Zé Teodoro tem a bondade de manter e de reler o poema Gardunha, de um tal A. dos Santos, que me leva sempre a pensar no Tó Mosca. Isto, talvez por saber que o irmão Zé Manel, é um fazedor de versos de que alto lá com ele. Versos esses que ainda não decidiu partilhar connosco, neste blog, por exemplo, o que é de todo lamentável.

Ele que me perdoe a revelação, (eu sei disto, porque ele é meu primo por afinidade) mas acho que nós, que tanto tempo passamos a cortar na casaca uns dos outros, devíamos inverter a tendência e dizer antes aquilo que as pessoas têm de bom, de realçar os seus talentos (aqui para nós, que ninguém nos ouve: estou apenas a candidatar-me a escrever os sermões do Pe. Manel, não acham?).

O certo é que nesse poema se fala:.. da preta, a burra, presa pele trela…e este simples trecho trouxe-me logo à ideia, a Preta, a burra fantástica do meu avô Bernardo, que eu conheci em criança. Aliás, era mesmo fantástica, porque forte como uma mula, elegante como uma égua e muito mansa.

E como é que aparece uma burra assim? É isso que vamos ver. Há mais de 60 anos, havia uma família cigana no Cimo de Vila, que morava numa casa que está hoje em ruínas, que era a casa do Tonho Russo e portanto vizinhos do meu avô Bernardo.

Num Inverno particularmente agreste, a vida não estaria a correr muito bem ao Chico Cigano que, com a casa cheia de filhos a chiar de fome, lá se encheu de coragem e foi ao meu avô pedir um conto de réis para relançar o negócio. Que lhe pagaria pelo S. Miguel. A minha avó Santa, a entesar os olhos ao marido, para não ir na cantiga, mas o meu avô, que era um homem mais de coração do que de razão, lá empresta o dinheiro ao Chico Cigano, pensando que pior que perder o dinheiro seria ouvir os responsos da mulher.

Acontece que, chegado o S. Miguel, o Chico bate à porta do meu avô, devolve o dinheiro e diz-lhe: Ti Bernardo, para lhe agradecer o favor, vou arranjar-lhe uma burrinha como o senhor nunca viu. E o certo é que, algum tempo depois, a formidável burra aparece. Selecionada por um especialista de burros (como qualquer cigano da altura), com critérios mais rigorosos do que os utilizados na inspecção, aquando da guerra no Ultramar, a Preta tornou-se a burra mais prestigiada do cimo de Vila. O Zé e o Tó Passaraço que me desmintam, se não é verdade.

E a gratidão da família cigana não ficou por aqui. No Natal seguinte, a mulher do Chico bate à porta da minha avó e diz-lhe: vizinha, tenho aqui um presentinho para si. E dito isto, entrega-lhe uma filhó do tamanho da caldeira, onde as fritava, que era a única maneira de ela as saber fazer.

Recordo. Devia ter os meus seis ou sete anos, quem é que aparece lá na Vila para passar uns dias com os avós? Um primo meu e do Zé Barroso: o Bernardo, filho do “Ti 25” que morava em Azeitão. Sei que passámos os três um dia de fim de Verão abrasador debaixo duma figueira de lisboa branca (pingo mel) lá na serra e ao pardejar, quando o calor começava a ceder, o meu avô aparelhou a Preta e com o Zé Barroso à frente, a comandar as operações, por ser o mais velho, o Bernardo ao meio e eu atrás, começámos a nossa aventura de viajar até à Vila, pela Cascalheira, que sempre era um caminho melhor.

A técnica, por causa do forte declive, era inclinarmo-nos todos para trás. Só relaxámos quando chegámos aos Aldeões onde o caminho é mais plano. Lá vínhamos nós felizes, como só as crianças o sabem ser, eis se não quando, a Preta, que na altura já não era nada nova, tropeça numa pedra e ajoelha subitamente ali ao pé dos Canavéis do Pe. Tomás.

O meu primo Zé, apanhado desprevenido, voa-lhe por cima da cabeça e o Bernardo e eu, sem o seu apoio, voámos logo atrás dele. Tirando umas esfoladelas, nada de grave. O resto do caminho a pé. Que já estávamos perto. Fomos jantar à Ti Rosa, que já estava em consultas com a demora.

Agora vejam como tudo isto começou. Com um poema de alguém que nem sei quem é, que refere uma burra preta e, só por isso, me fez reviver esta história que aqui partilhei convosco.

O nosso cérebro é fantástico. É ou não é?

Janeiro de 2013.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A propósito da pneumónica

Recebi um comentário à publicação "A pneumónica de 1918", o qual, pela sua extensão e diversidade de conteúdos, fica melhor aqui.

Ontem, já tarde, numa visita ao “dos enxidros”deparei-me com a publicação do estudo “ Medicina na Beira Interior, da Pré-história ao Século XXI” na revista Cadernos de Cultura nº XXI, no qual participaste, em colaboração com o teu filho, com a investigação sobre a gripe pneumónica em S. Vicente da Beira.
Entre outras informações interessantes/inquietantes, houve três que me despertaram mais a atenção por poderem reportar-nos para fenómenos atuais que confirmam a característica cíclica da História (infelizmente com predomínio dos maus momentos). 
A primeira foi a tabela da página 78, relativa ao número de internamentos no Hospital da Misericórdia, entre 1917 e 1919, sendo que a gripe pneumónica ocorreu em 1918. De acordo com os dados da referida tabela, o número de internamentos diminuiu ao longo desses anos, o que, segundo constatam, aconteceu não porque as pessoas tivessem deixado de necessitar deles, mas porque o preço dos cuidados hospitalares prestados aumentou, mesmo para as pessoas mais pobres (que na nossa terra devia ser a maior parte da população). Creio que podemos estabelecer um paralelismo com o que está a acontecer atualmente em Portugal. De facto, numa altura em que a população está mais envelhecida, necessitando de cuidados médicos mais frequentes e especializados, e a maior parte das pessoas perdeu poder de compra ou perdeu mesmo o emprego, vemo-nos confrontados com alterações no SNS que vêm dificultar cada vez mais o acesso aos cuidados básicos de saúde: aumento das taxas moderadoras, fim de algumas isenções, extinção de serviços de saúde de proximidade, diminuição do número de camas para internamento, etc. A continuar assim, esta situação pode significar um retrocesso significativo na qualidade de vida de todos os portugueses.
O segundo dado, que merece ser salientado e que decorre ainda da explicação que fazem da tabela dos doentes internados, é o facto de se registarem poucos internamentos de bebés e crianças até aos nove anos. Este facto só pode ser explicado pelas razões que referem: um fraco desenvolvimento da psicologia infantil e razões de ordem demográfica como a elevada taxa de natalidade e simultaneamente um alto índice de mortalidade infantil. Estes fenómenos motivavam um fraco investimento afectivo e na prestação de outros cuidados por parte das famílias relativamente aos seus filhos menores.
Os avanços que se têm vindo a verificar na medicina permitiram alterações muito significativas nos cuidados de saúde prestados às crianças desde muito cedo: o incremento dos cuidados pré, neo e pós-natais; o desenvolvimento de exames de diagnóstico precoce das mais variadas patologias; a descoberta e implementação de planos de vacinação para as doenças que mais contribuíam para mortalidade infantil, etc. O desenvolvimento de métodos contracetivos facilitou às famílias ter apenas os filhos que desejam ou podem ter. Os avanços na área da psicologia permitiram saber como se processa o desenvolvimento infantil e o que fazer para o potenciar.
Paradoxalmente, num tempo em que pareciam estar reunidas as condições ideais para o nascimento e desenvolvimento de crianças felizes e saudáveis, as famílias deixaram de ter condições económicas para ter os filhos que desejam. Este fenómeno está a criar desequilíbrios demográficos consideráveis e poderá ter consequências inimagináveis num futuro próximo.
Finalmente, no estudo Medicina e Republicanismo na Beira Interior, publicado na mesma revista, chamou-me a atenção o quadro da página 85 que analisa os dados sobre o analfabetismo em Portugal. Como podemos ver, é já grande a discrepância entre os números relativos à média nacional e os da média do distrito de Castelo Branco (75.13 e 84.42). A diferença acentua-se ainda mais quando comparamos o distrito de Castelo Branco e os distritos de Lisboa e Setúbal cuja média é de 59.65. Estes dados, não sendo uma novidade, reportam-nos mais uma vez para o problema da interioridade, muito acentuado na altura, mas que continua a existir, apesar das promessas dos sucessivos governos e demais responsáveis, para o atenuar.
É verdade que se verificaram muitas melhorias em termos sócio económicos e culturais em muitas regiões do interior do país, nomeadamente no nosso distrito. Penso que Castelo Branco foi mesmo considerada uma das cidades portuguesas com melhor qualidade de vida para os seus habitantes. Contudo, mais uma vez, penso que não podemos ter estes dados como adquiridos já que, de um momento para o outro, tudo pode mudar. De facto, a notícia do encerramento de todas as salas de cinema do distrito constitui um retrocesso enorme no conceito que hoje temos do que é a boa qualidade de vida de uma cidade ou região.
Ontem à tarde desloquei-me a Castelo Branco para ver o filme Django Libertado que, nas minhas contas, estaria em fim de exibição no Fórum. Quase entrei em estado de choque quando, ao comprar os bilhetes, fui informada de que todas as salas do grupo Castelo Lopes do distrito iam fechar a partir desse dia. Não consigo imaginar como é que uma cidade pode viver sem cinema, muito menos um distrito inteiro. Agora para vermos um filme temos que ir até à Guarda ou talvez Abrantes ou Portalegre (caso os cinemas dessas cidades não tenham encerrado também…). Claro que isso muito dificilmente deverá acontecer pelos custos em combustível, portagens e tempo perdido. Resta-nos ver alguns filmes, já requentados, na televisão, mas nunca será a mesma coisa.
O motivo para esta tomada de decisão, dizem, foi a falta de espetadores. De facto, na maior parte das sessões a que assisti, não estariam na sala mais de uma dúzia de pessoas. Em algumas estávamos apenas duas. Bem sei que não é animador, mas não é com medidas como esta que se melhora a situação. Pela minha parte, sinto-me mais pobre e muito indignada, mas ainda tenho esperança de que encontrem uma solução que concilie os interesses económicos das empresas e a necessidade/direito das pessoas no acesso à cultura. 
M. L. Ferreira

P.S. A propósito do filme, acho que é imperdível (para quem ainda tenha possibilidade de o ver) pelo argumento, interpretação, banda sonora, fotografia e por nos transportar muitas vezes para outros filmes que marcaram a adolescência e juventude de muitos de nós. Outra coisa não era de esperar de Quentin Tarantino!