sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A propósito da pneumónica

Recebi um comentário à publicação "A pneumónica de 1918", o qual, pela sua extensão e diversidade de conteúdos, fica melhor aqui.

Ontem, já tarde, numa visita ao “dos enxidros”deparei-me com a publicação do estudo “ Medicina na Beira Interior, da Pré-história ao Século XXI” na revista Cadernos de Cultura nº XXI, no qual participaste, em colaboração com o teu filho, com a investigação sobre a gripe pneumónica em S. Vicente da Beira.
Entre outras informações interessantes/inquietantes, houve três que me despertaram mais a atenção por poderem reportar-nos para fenómenos atuais que confirmam a característica cíclica da História (infelizmente com predomínio dos maus momentos). 
A primeira foi a tabela da página 78, relativa ao número de internamentos no Hospital da Misericórdia, entre 1917 e 1919, sendo que a gripe pneumónica ocorreu em 1918. De acordo com os dados da referida tabela, o número de internamentos diminuiu ao longo desses anos, o que, segundo constatam, aconteceu não porque as pessoas tivessem deixado de necessitar deles, mas porque o preço dos cuidados hospitalares prestados aumentou, mesmo para as pessoas mais pobres (que na nossa terra devia ser a maior parte da população). Creio que podemos estabelecer um paralelismo com o que está a acontecer atualmente em Portugal. De facto, numa altura em que a população está mais envelhecida, necessitando de cuidados médicos mais frequentes e especializados, e a maior parte das pessoas perdeu poder de compra ou perdeu mesmo o emprego, vemo-nos confrontados com alterações no SNS que vêm dificultar cada vez mais o acesso aos cuidados básicos de saúde: aumento das taxas moderadoras, fim de algumas isenções, extinção de serviços de saúde de proximidade, diminuição do número de camas para internamento, etc. A continuar assim, esta situação pode significar um retrocesso significativo na qualidade de vida de todos os portugueses.
O segundo dado, que merece ser salientado e que decorre ainda da explicação que fazem da tabela dos doentes internados, é o facto de se registarem poucos internamentos de bebés e crianças até aos nove anos. Este facto só pode ser explicado pelas razões que referem: um fraco desenvolvimento da psicologia infantil e razões de ordem demográfica como a elevada taxa de natalidade e simultaneamente um alto índice de mortalidade infantil. Estes fenómenos motivavam um fraco investimento afectivo e na prestação de outros cuidados por parte das famílias relativamente aos seus filhos menores.
Os avanços que se têm vindo a verificar na medicina permitiram alterações muito significativas nos cuidados de saúde prestados às crianças desde muito cedo: o incremento dos cuidados pré, neo e pós-natais; o desenvolvimento de exames de diagnóstico precoce das mais variadas patologias; a descoberta e implementação de planos de vacinação para as doenças que mais contribuíam para mortalidade infantil, etc. O desenvolvimento de métodos contracetivos facilitou às famílias ter apenas os filhos que desejam ou podem ter. Os avanços na área da psicologia permitiram saber como se processa o desenvolvimento infantil e o que fazer para o potenciar.
Paradoxalmente, num tempo em que pareciam estar reunidas as condições ideais para o nascimento e desenvolvimento de crianças felizes e saudáveis, as famílias deixaram de ter condições económicas para ter os filhos que desejam. Este fenómeno está a criar desequilíbrios demográficos consideráveis e poderá ter consequências inimagináveis num futuro próximo.
Finalmente, no estudo Medicina e Republicanismo na Beira Interior, publicado na mesma revista, chamou-me a atenção o quadro da página 85 que analisa os dados sobre o analfabetismo em Portugal. Como podemos ver, é já grande a discrepância entre os números relativos à média nacional e os da média do distrito de Castelo Branco (75.13 e 84.42). A diferença acentua-se ainda mais quando comparamos o distrito de Castelo Branco e os distritos de Lisboa e Setúbal cuja média é de 59.65. Estes dados, não sendo uma novidade, reportam-nos mais uma vez para o problema da interioridade, muito acentuado na altura, mas que continua a existir, apesar das promessas dos sucessivos governos e demais responsáveis, para o atenuar.
É verdade que se verificaram muitas melhorias em termos sócio económicos e culturais em muitas regiões do interior do país, nomeadamente no nosso distrito. Penso que Castelo Branco foi mesmo considerada uma das cidades portuguesas com melhor qualidade de vida para os seus habitantes. Contudo, mais uma vez, penso que não podemos ter estes dados como adquiridos já que, de um momento para o outro, tudo pode mudar. De facto, a notícia do encerramento de todas as salas de cinema do distrito constitui um retrocesso enorme no conceito que hoje temos do que é a boa qualidade de vida de uma cidade ou região.
Ontem à tarde desloquei-me a Castelo Branco para ver o filme Django Libertado que, nas minhas contas, estaria em fim de exibição no Fórum. Quase entrei em estado de choque quando, ao comprar os bilhetes, fui informada de que todas as salas do grupo Castelo Lopes do distrito iam fechar a partir desse dia. Não consigo imaginar como é que uma cidade pode viver sem cinema, muito menos um distrito inteiro. Agora para vermos um filme temos que ir até à Guarda ou talvez Abrantes ou Portalegre (caso os cinemas dessas cidades não tenham encerrado também…). Claro que isso muito dificilmente deverá acontecer pelos custos em combustível, portagens e tempo perdido. Resta-nos ver alguns filmes, já requentados, na televisão, mas nunca será a mesma coisa.
O motivo para esta tomada de decisão, dizem, foi a falta de espetadores. De facto, na maior parte das sessões a que assisti, não estariam na sala mais de uma dúzia de pessoas. Em algumas estávamos apenas duas. Bem sei que não é animador, mas não é com medidas como esta que se melhora a situação. Pela minha parte, sinto-me mais pobre e muito indignada, mas ainda tenho esperança de que encontrem uma solução que concilie os interesses económicos das empresas e a necessidade/direito das pessoas no acesso à cultura. 
M. L. Ferreira

P.S. A propósito do filme, acho que é imperdível (para quem ainda tenha possibilidade de o ver) pelo argumento, interpretação, banda sonora, fotografia e por nos transportar muitas vezes para outros filmes que marcaram a adolescência e juventude de muitos de nós. Outra coisa não era de esperar de Quentin Tarantino! 

2 comentários:

Anônimo disse...

Concordo com as conclusões da Libânea. Mostra estar bem informada sobre a realidade portuguesa e estou solidário com ela na tristeza que foi o encerramento das salas de cinema, para já não falar de teatro na beira interior. Uma atividade cultural tão importante ao ser humano e tão menosprezada.
Quanto à televisão, consta que gastam milhões a comprar filmes e não consigo perceber porque repetem constantemente os mesmos.
Assistimos nitidamente a um regresso à savana. Estamos a regressar ao reino da selvejaria. Basta ver o sofrimento infligido a tantas familias só pela ganância de mais uns milhões.
F. Barroso

Anônimo disse...

O que mais me impressionou, durante a fase de investigação, foi a constatação de que todos os doentes das anexas e a esmagadora maioria dos doentes da Vila sofreram a gripe pneumónica em casa, sem qualquer assistência médica, pelo menos no caso das anexas.
Em 1918, a medicina já evoluíra bastante e havia médico em São Vicente, mas poucos terão beneficiado de assistência médica.
A diária do hospital custava o ordenado de um dia de trabalho e poucos tinham recursos para ficar internados. Por outro lado, o número de camas era reduzido para uma epidemia (10) e as deslocações eram desaconselhadas.
Sofreram e morreram abandonados, como se não estivessem no século XX.
José Teodoro