segunda-feira, 31 de outubro de 2016

19 anos!


Fotografias das obras de construção da nossa escola cedidas pelo José Manuel Santos

Parece que foi ontem, e já lá vão quase duas décadas, completadas na passada quinta feira! Grande, novinha em folha, bem apetrechada e cheia de crianças.


Atualmente já não são tantas, mas ainda foi preciso um bolo bem grande para chegar para todas.


Que venham mais dezanove! Foram os nossos votos. E quem sabe? O Adelino Costa diz que ultimamente a irmã tem tido muito trabalho na maternidade do Amato Lusitano: em média dois partos por turno. A manter-se assim, talvez a Escola não acabe tão cedo por cá…


M. L. Ferreira

sábado, 29 de outubro de 2016

A azenha dos meus sonhos

Há muitos anos, a ribeira entre o Violeiro e Almaceda era um meio gerador de economia e subsistência para a população. Ao longo da ribeira havia azenhas, lagares e hortas. No entanto, com a emigração nos anos 60, foi ficando tudo ao abandono. E mais tarde os incêndios destruíram o pouco que ainda se mantinha, agora o que resta são as ruínas e a beleza da paisagem que se renova sempre.

No entanto, uma filha da terra (Violeiro), Ester Grohe, emigrante na Suíça, e o seu marido reconstruíram a azenha da família, sendo esta a última a ter ficado inativa. Viveram muitos percalços para recuperar tradição e o ofício do seu pai moleiro. Mas realizou o seu sonho!

E nos dias 22 e 23 de Outubro, organizou um convívio aberto a toda a população, para mostrar todo o processo, desde a moagem dos cereais até à cozedura do pão. Estiveram presentes os presidentes das juntas de freguesia de Almaceda e São Vicente da Beira e ainda o presidente da Câmara de Castelo Branco.

Era bom que houvesse mais iniciativas destas, para trazer vida às nossas aldeias e preservar costumes e tradições.








 Célia Francisco

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Pedintes

Naquele tempo a vida diária na vila era muito vagarosa, medieval. As três classes da sociedade medieva ainda imperavam. O clero estava acima na pirâmide social, o senhor vigário era uma pessoa respeitada ou temida, à hora da catequese mesmo os mais arredios tinham que deixar as brincadeiras, as rotinas diárias e entrar na igreja para aprender a doutrina.
As catequistas pacientemente ensinavam o pai-nosso, acto de contrição, confissão, credo, salve-rainha… Senhoras Matilde, Resgate, irmãs passaraças, Estela e Maria, menina Maria de Jesus;  as irmãs professoras, Susana e Teresinha…  Mestras do catecismo boas e pacientes. Se por ventura algum catraio não entrasse na igreja à hora marcada, o padre Tomaz ralhava, ameaçava que diria ao pai.
Naquela época ainda se viam homens, mulheres, crianças descalças; as mulheres do Casal da Serra trocavam o calçado atrás da capela de São Sebastião. As que viviam na charneca trocavam as chinelas debaixo da sobreira que ainda hoje existe no Casal, à entrada da quelha que dá acesso à ribeira; quando regressavam às suas casas, os sapatinhos eram guardados e voltavam a calçar umas alpergatas ou faziam o percurso descalças.
Os senhores eram os donos de quase tudo, as melhores terras pertenciam-lhes, as melhores casas eram deles e situavam-se nos locais mais nobres da vila. A praça atesta aquilo que estou explanando: o clero com duas igrejas, a nobreza com seus solares e o mais nobre de todos, ao menos isso, a domus municipalis, símbolo do povo.
Para os senhores trabalhava o povo de sol a sol, a troco de uma escudela… No tempo da azeitona, aos colhedores por cada oito ou nove litros de azeite cabia-lhes um; os rendeiros, para além de pagarem uma determinada quantia em dinheiro, tinham que levar ao senhor uma cesta com os melhores frutos; as uvas, a azeitona eram para os senhores, o desgraçado estrumava, cavava e só arrecadava o que a terra produzia com muito trabalho e suor:- batatas, cebolas, couves, figos, maçãs…
Se isto não eram tempos medievos!
Aos “nobres” não lhes interessava nada que alguém quisesse progredir, um exemplo flagrante foi a construção da serração, a fábrica, que empregava no primeiro quartel do século umas duas dezenas de pessoas. Quanto tempo durou?
Há um dito que diz: "Os espanhóis foram conquistando… quando encontraram pedras deixaram aos portugueses." Quem passar por Salamanca, Ciudad Rodrigo e por aí fora, em redor da estrada a paisagem, apesar de seca, não é pedregosa. Assim que entramos em Vilar Formoso, começam as serranias graníticas, pedregosas, giestais, matorrais…
Na vila acontecia a mesma coisa: Casa Conde, Casa Cunha, Casa Visconde de Tinalhas e por aí fora. O pobre tinha as serras, courelas pobres difíceis de arrotear, caminhos mal andamosos, estreitos e tortuosos, onde só passava o homem e o burro.
Parece que tudo isto se passou há uma porradoria de lustros, mas não.
As coisas só começaram a mudar com a partida dos homens para as Franças… as guerras de África, as saídas para Lisboa… Todos tinham um objectivo comum, a melhoria das condições de vida, melhores ordenados, menos horas de labor diário. Os que ficavam, os senhores não tinham outro remédio senão acompanhar a evolução dos tempos.
A prosa já vai longa e ainda não escrevi nada sobre a ideia que me fez escrevinhar todas estas palavras.
           
Naquela época, estávamos ainda nos anos cinquenta do passado século, de vez em quando os tambores rufavam pelas ruas basálticas da vila, comediantes anunciavam a sua chegada. Na praça montavam o trapézio, à noite comediavam e o povo encantava-se com as momices que se iam desenrolando.
Os porcos eram criados paredes meias com as pessoas, as furdas situavam-se nas lojas rés-do- chão das habitações. Não eram só os porcos que lá viviam; burros, galinhas, vacas… As ruas eram “enfeitadas” com bostas, galinhas esgravatavam à procura do milho rei. Os ganhões transportavam nos seus carros toda a espécie de géneros, os rodados iam desgastando os granitos que se encontravam nos caminhos, deixando sulcos por onde escorriam as águas na estação invernal. A miséria campeava, era rainha em muitos lares, de vez em quando apareciam pessoas que andavam de porta em porta a pedir, eram os pedintes.
Um deles era o Mudo da Torre, pessoa simples, andrajosamente vestido, bonacheirão, risonho, não fazia mal a uma mosca. Quando o víamos, não o largávamos e clamávamos: "Mudo da Torre… Mudo da Torre." Voltava-se para nós com um brilhozinho nos olhos e um sorriso nos lábios, tirava a gorra levantava-a no ar e dizia "É! É! É! É…" e nós voltávamos ao princípio "Mudo da Torre…"
Havia um que era o oposto do Mudo da Torre, chamava-se Diamantino. Timantino um homem alto, bem-posto, fato coçado, andar meio torcido, na cabeça usava uma boina. Parece que era natural da Lardosa. Até certa altura tinha tido uma vida estável, uma desavença e foi parar à cadeia onde passou alguns anos. Quando saiu, transtornado com a vida, passou-se. Andava de terra em terra a pedir, Mudo da Torre aceitava tudo que lhe davam, Timantino só pedia nas casas ricas. Nós, os catraios, um pouco afastados, atanazavamo-lo gritando: "Ó Timantino… Ó Timantino, Tino, Tino…". Com cara de mau, corria atrás de nós com uma faca na mão…
Havia um pedinte discreto, natural de Niza. Uma vez por ano visitava a casa do senhor José Lourenço que lhe dava uma esmola.  José Lourenço era o senhor todo-poderoso da Casa Conde, punha e dispunha, ia às feiras ver os gados, comprava, vendia… Este pedinte, quando saía, dizia-lhe: "Senhor José, se algum dia passar por Nisa, terei muito gosto em o receber na minha casa."
O feitor sorria amareladamente. Certo dia, resolveu ir a Nisa a uma feira e lembrou-se de o procurar. Dirigindo-se a um transeunte, perguntou onde morava o tal pedinte, este só faltou pôr-se em sentido. "Vá por esta rua abaixo, a sua casa fica ao fundo da rua."
Seguiu as instruções do transeunte e quando chegou ao local indicado disse para o criado que tinha ido com ele: "Não pode ser esta a casa, isto é um palácio."~
Em todo o caso, bateu à porta e imediatamente aparece um criado. "Diga ao seu patrão que está aqui o José Lourenço de São Vicente da Beira…" Subiu as escadas do casarão e aparece à sua frente o pedinte. O pobre era mais rico que ele. "Olhe senhor José, foi a pedir que consegui o que tenho."
A partir dessa altura nunca mais voltou à vila.
Naquela época ainda havia usos, costumes e preconceitos muito arreigados entre as populações, as sociedades viviam em espaços rurais muito fechados, o espírito comunitário imperava, assim como a miséria grassava e campeava. Havia uma coisa nos nossos dias cada vez mais rara: alegria. As pessoas mesmo com a barriga vazia mourejando de sol a sol, cantavam, ajudavam-se e à noite, ao toque das ave-marias, viam-se ranchos que regressavam às suas casas rezando ou galhofando.
Hoje não falta nada, mas falta o principal que se chama alegria e amor solidário.
Fiquem-se com mais esta: A ambição cerra o coração; mas o amigo conhece-se na adversidade; em contrapartida, o amigo fingido conhece-se no arruído.


J.M.S

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Na escola de São Vicente


As professoras Rosa Caetano e Idalina Oliveira, respetivamente diretora do agrupamento e professora responsável pela ilustração do livro, 
em equipa com a professora Luísa Nave, ao seu lado na mesa.

No passado dia 20 o livro “Dos Enxidros aos Casais Histórias e Gentes de São Vicente da Beira” foi apresentado na escola de São Vicente.
A sala da biblioteca encontrava-se cheia de alunos; o livro também é deles, os alunos do segundo ciclo do agrupamento José Sanches de Alcains e São Vicente, com a ajuda das professoras, ilustraram muito bem com desenhos algumas das histórias.
À medida que ouviam as histórias que cada autor contava, parecia que queriam mastigar as palavras, tal a atenção, nomeadamente os mais novinhos.
A certa altura, um aluno perguntou se o livro trazia alguma história que falasse do Louriçal do Campo; o José Teodoro respondeu que sim, ficou contente.
Coube-me ler a lenda da Pedra da Sobreposta; finda a leitura, alunos do Louriçal fizeram perguntas.
Tão perto se encontra da vila e quase ninguém a conhece, vale a pena ir ao local, é enorme…
O envolvimento entre autores, professores e alunos foi notório; incentivaram-se os alunos a escreverem histórias que ouçam contar aos avós, pais...
A hora passou depressa, a campainha chamava-os para outra aula, os alunos partiram mais enriquecidos e nós também.
À directora do agrupamento, aos professores e funcionários que tão bem nos acolheram, bem hajam.

José Manuel dos Santos


Entrei neste projeto com muito entusiasmo e cheia de confiança, principalmente porque sabia que tinha a proteger-me, a mim e aos mais inexperientes, alguém com algum traquejo nesta andanças. Era um caminho que tinha tudo para dar certo.
Mas como em qualquer projeto, sabemos de onde partimos e não sabemos onde vamos parar. É assim quase como que um tiro no escuro; neste caso, penso que foi mais como um papagaio que lançámos e voou mais alto do que supúnhamos.
Há dias, à saída do Lar onde tínhamos ido retribuir aos nossos “Crescidos” algumas das histórias que eles nos tinham contado, o José Teodoro desabafava: «Só por este bocadinho já valeu a pena todo o trabalho que tive com o livro». Estou completamente de acordo com ele, e a prová-lo também está o comentário da Luzita Candeias sobre o assunto.
E a experiência repetiu-se nas escolas de Alcains e São Vicente. Foi muito gratificante ver o interesse com que os alunos nos receberam, a atenção com que ouviram as histórias que levámos para eles e a participação curiosa no final, com perguntas sobre o que tinham ouvido.
A nós (escritores, como eles já nos chamavam) faltou-nos tempo para falar de tudo o que tínhamos para dizer e ouvi-los com mais atenção. Mas esperamos que, para além do prazer que tivemos em estar todos juntos, lhes tenhamos deixado uma sementinha e dentro de algum tempo sejam eles a convidarem-nos para a leitura das histórias que eles mesmo tenham escrito.


M.ª Libânia Ferreira


Já se escreveu acima quase tudo o que eu poderia escrever. De entre os autores, nós os três tivemos a sorte de viver os melhores momentos no contacto com o público.
Este projeto ultrapassou todas as minhas melhores expetativas, quer em número de livros vendidos neste primeiros três meses, quer em contactos com o público, seja ele infantil, idoso ou diversificado.
Por outro lado, este êxito junto do público é também a prova de que juntos valemos muito mais cada um em separado. Só o trabalho em equipa permitiu o sucesso das apresentações, tal como já se provara na feitura do livro, quer pela equipa de autores, quer pela colaboração dos alunos do agrupamento de escolas de Alcains e São Vicente.
E por último, a valorização do nosso património. Temos sido muito bem recebidos, porque falamos às pessoas nas coisas que são suas, que fazem parte da sua cultura.
Proximamente, voltaremos a Alcains, para contar as nossas histórias aos alunos do 1.º ciclo. E no dia 5 de novembro, estaremos na Partida.


José Teodoro Prata

Os desenhos dos alunos do 1.º ciclo, após a nossa apresentação.




José Teodoro Prata
Colaboração da professora Maria da Luz Teodoro e da funcionária Célia Francisco

domingo, 23 de outubro de 2016

O pai

A minha infância foi passada no aconchego daquele cantinho da Gardunha. À frente da nossa casa típica de granito, os leirões estendiam-se pela encosta a baixo, verdejantes e férteis, regados com as águas das várias nascentes das Barrocas. A água era solta das presas, encaminhada através das regueiras até às fazendas e saciava os terrenos cultivados, que eram tão importantes para a nossa alimentação. Por baixo da casa, alojavam-se os animais domésticos; as galinhas com os seus pintos deambulavam pelo campo, à vontade, depenicando aqui e ali. A norte, ficavam os imensos pinhais; do lado nascente as barreiras cobertas de mato que na primavera se pintavam de todas as cores; a poente, os casais e ao sul a vila. No caminho por detrás da casa, era um corropio de gente todo o dia a passar. Vinham da vila, por vezes acompanhados dos seus burritos, cabras e ovelhas, em direcção às Barrocas, para amanho das terras e sustento dos animais. Às vezes, já no regresso, carregavam às costas molhos de lenha ou de comida para o gado. Nós, sempre atentos, corríamos para a quelha e eles cumprimentavam-nos e sorriam quando passavam.
Fui criada num mundo predominantemente feminino: com as minhas irmãs e mais tarde na escola. O meu irmão estava presente só algumas vezes.
A mãe cuidava de todos nós, da horta e dos animais e delegava também tarefas que já podíamos executar.
Lembro-me da primeira vez que tive consciência de ter um pai, que se encontrava ausente desde que eu nascera. As minhas irmãs e irmão andavam agitados e diziam “Hoje vem o pai!” Eu não fazia ideia quem seria e quem viria alterar a rotina e o aconchego dos nossos dias. Eu dizia que não queria, que tinha vergonha. Riam-se de mim e diziam “Esfrega a testa na parede que isso passa.” E eu cheguei a fazê-lo! Deixava-me ficar por casa, apreensiva. Os meus irmãos andavam numa correria, sempre a espreitar na esquina da casa para a quelha, até que por fim, correram pela escada de granito acima a gritar “Já lá vem o pai, já lá vem o pai!” Eu, cheia de vergonha, escondi-me atrás da porta da cozinha.
Ouvi a sua voz de homem, alegre a falar e a rir com eles. Passado algum tempo, perguntou “Então e a mais pequenita aonde é que ela está?” Eles correram à minha procura e descobriram-me. Então vi o meu pai: era alto, forte e bonito e estava muito contente por me ver. Pegou-me ao colo e beijou-me e eu gostei.
Trazia presentes: duas bonecas, tão lindas, uma tinha o cabelo preto e a outra, louro e tinham roupas vestidas muito bonitas. Também trouxe um comboio com carris e tudo, para o meu irmão e um pacote grande cheio de caramelos, que maravilha!
O pai ficou algum tempo connosco e a rotina mudou. Por vezes levava-me com ele à vila, ao lagar, quando era a altura de ir medir o azeite, ou a casa das minhas avós e das tias do Casal. Tínhamos que atravessar a ribeira que por vezes ia tão cheia que a água chegava ao cimo das passadouras. Era assustador e então ele tinha que me pegar ao colo.
Quando à noite nos sentávamos todos ao lume, ele pegava-me ao colo e contava-me histórias inventadas por ele, para me fazer rir.
Depois veio o dia da partida e ele abalou, quelha abaixo. Ficámos todos tristes e a mãe chorou muito, durante muito tempo. Ela diz que eu era muito lareta e que a remedava, talvez fosse por estar farta de a ouvir chorar, pois o meu mundo de criança ainda não alcançava a dor da perda dos que se amam.
E a vida voltou à rotina, até ao seu longínquo regresso.

TT

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Vicissitudes de uma comunidade

Naquela época, na diocese, existiam muitos padres; como a oferta era muita, o bispo colocava-os nos mais recônditos lugares; era o que acontecia na paróquia vicentina; o coadjutor raras vezes vivia na vila, a aldeia da Partida, a maior da freguesia, sempre soube receber de braços abertos o senhor padre, por esse motivo construíram uma residência paroquial, nos nossos dias muito degradada. Naquele tempo o padre residente chamava-se Manuel, o povo gostava muito dele, fazia actividades com as crianças, adolescentes…; a igreja aos domingos enchia-se para escutarem a Palavra, o padre Manuel era estimado por todos.
Certo dia recebe uma comunicação superior, tinha que deixar o rebanho de pessoas simples, humildes, trabalhadoras, com muita fé nos evangelhos. O padre Manuel dava voltas à cabeça, não sabia como havia de transmitir ao seu povo aquela decisão diocesana.
Os mais expeditos notavam que não andava bem, até que alguém lhe perguntou:
- O senhor padre sente-se bem?
Na missa dominical, à hora da homilia, anunciou aos fiéis o teor daquele documento; viam-se lágrimas nas faces enrugadas das mulheres, iam ficar novamente sem padre, não podia estar a acontecer. O bom padre Manuel partiu.
Corações contritos, alguns homens bons imploraram ao senhor bispo a ida de outro prior para a aldeia, mas a partir daquela altura as funções religiosas passaram a ser exercidas pelo pároco da freguesia, o padre Branco.
Sacerdote na flor da idade, cheio de garra, possuía um jeep que o levava aos locais mais esconsos da paróquia. O povo da Partida não o aceitou e durante algum tempo boicotaram a ida à missa, os funerais eram feitos sem o acompanhamento do vigário, o templo ficava vazio durante as celebrações. Totalmente? Não.
Havia uma senhora, sem o povo se aperceber assistia à santa eucaristia. Maria dos Prazeres Fernandes, assim se chamava, escondia-se por detrás das talhas que guardavam a água benta; nem o senhor vigário sabia. Cumpria o preceito dominical conforme manda a santa madre igreja.
A mãe do senhor Augusto Carvalho, já velhinha, faleceu; este contactou o senhor vigário, o povo que não… insistiu, teimou e a mulherzinha “avó do Hermínio” foi acompanhada pelo pároco até à sua última morada. Para que não acontecessem cenas desagradáveis, certamente o senhor vigário ou a família requisitaram uma patrulha da GNR
Aos poucos as coisas voltaram à normalidade, o templo voltou a encher-se de fiéis e o padre Branco, que ainda está entre nós; deixou saudades entre todos os paroquianos.
Nos nossos dias, um padre tem a seu cargo duas, três ou mais paróquias, a seara é grande, os segadores, poucos…
Eram muitos os chamados e poucos os escolhidos, actualmente são poucos os chamados, e muito menos os escolhidos.
Sinais dos tempos.

JMS                                                

domingo, 16 de outubro de 2016

Nas férias grandes

As férias são um tempo extraordinário na vida dos trabalhadores, amarrados semana a semana, mês a mês, a um horário de trabalho de que não há escapatória. Bem, nos trabalhadores dos nossos tempos, que o direito a férias é coisa recente, legalmente consagrado em 1937, em Portugal. E o que foi preciso lutar para o alcançar!
A dimensão que trago aqui hoje à baila é a da disponibilização do trabalhador com vista à sua participação social e cultural (palavreado legal), que quer dizer, ao reencontro e socialização com familiares e amigos que, devido a distâncias e outras circunstâncias, só na altura das férias (grandes) podem com vagar matar saudades, trocar experiências, passear juntos e sonhar.

O grupo dos amigos da Praça, como invariavelmente acontece todos os agostos, lá voltou a reunir, só que em vez de se por a sonhar com projetos incapazes de ganhar quaisquer simpatias, como dar uma demão de tinta à Casa Paroquial, coisa que ela nunca viu desde que nasceu, ajardinar o Quintalinho que lhe serve de logradouro (com plantas e flores oferecidas pelos Vicentinos), manter as fachadas que dão para a Fonte Velha apresentáveis, este ano repensou a estratégia e virou-se para outros lados. Cultura e desporto.

Vai daí, organizou um passeio pedestre às antenas, onde seria comida uma bela merenda, com a reconstituição da batalha da Oles, pelo meio, embora deslocada para um sítio em que a vitória nos fosse garantida, tendo-se apresentado como sítio ideal a fraga escarpada sobre o Louriçal.

Armámo-nos de varapaus e cachaporras e, à medida que as cabeças dos infiéis apareciam por trás das pedras, era cacetada no toutiço até o diabo dizer bonda. Eram seguramente dez vezes mais que nós, mas os apedrejadores dizimavam-nos lá do alto, a rolar penedos enormes para cima deles, com a ajuda imprescindível do bom gigante, que veio da Terra dos Francos fazer a cobertura do evento e mesmo com pedradas certeiras que eram como balas. Os que fugiram iam tão acagaçados que só se atreveram a olhar para trás depois de passar a Soalheira.

A vitória esmagadora foi efusivamente festejada, como testemunha o retrato com os vencedores ufanos, de armas no ar. Admiravelmente poucos, para tão enorme tarefa. Descontando o narrador, temos o repórter vindo da Terra dos Francos com o seu irmão e outro combatente. Assim: João e Tó Passaraço; Chico Pinheiro e o cunhado Tó, que é como irmão, nunca o deixando combater sozinho, dadas as mazelas da coluna; o Zé Barroso e o Daniel, aguerrido combatente das serranias.


Para nos recompormos do esforço da luta, fomos presenteados pelo Chico Pinheiro com uns belos quadrados de chocolate preto do bom, 80% de cacau, no final da bucha, devorada no miradouro sobre Castelo Novo. Depois, uma pequena pausa onde se fizeram os necessários curativos e se retemperaram as forças. A batalha passou à história, como sabem.

O grupo seguiu animadíssimo, serra acima. Aliás, viajar com o Zé Barroso é sempre um prazer incalculável, quer seja a pé, quer tenha sido naquele calhambeque, em que há muitos anos atrás se faziam os arraiais das redondezas, que qual jumento adorava ir à berma da estrada abocanhar um bocado de carqueja ou giesta tenra e que ele sistematicamente repreendia, com demasiada altivez, dizendo: mato, mas tu queres mato?

O Daniel, meu sobrinho, teve como companheiro privilegiado o Tó Passaraço que lhe foi mostrando a vastidão do território calcorreado vezes imensas com 12, 13, 14 anos, a colher resina no Rolão Preto, com o avô Joaquim Barroso e, no próprio local da batalha, com o ti Zé Candeias, numa das voltas mais difíceis da região. Explicou-lhe as voltas, área geográfica correspondente a um dia de trabalho, a colha, que consistia em retirar a resina das tijelas para o caldeiro, que depois de cheio era despejado no barril. O caldeiro de chapa de zinco, com uma cinta no fundo, que tinham de encher de madeira ou cortiça para não se enterrar nos tenros ombros da sua adolescência. A merenda invariavelmente de pão e conduto. Os acidentes do território, fragas ruins de escalar. A sede em certos dias abrasadores sem fontes por perto. Uma lição de vida.

E assim fomos subindo, subindo, parando por vezes para que o João mantivesse o batimento cardíaco dentro da guide line, fixada pelo seu cardiologista. Ao chegarmos ao planalto que antecede a última e mais agressiva subida às antenas, aconteceu algo deveras surpreendente.
Avistámos um ancião de cabelo branco, que não veria tesoura há anos, junto a uma charca a admirar um bando de perdizes que ali matava a sede e que se tentou enfiar numas giestas mal  nos pressentiu. Como o chamámos, parou e caminhou ao nosso encontro.

Alguém perguntou – É muito parecido com o Gandalf, da Terra Média, o nome diz-lhe alguma coisa? Ao que respondeu – Desconheço tal personagem.

- Afinal quem é o Senhor e o que faz aqui? - Perguntámos impressionados pelo seu ar altivo e olhar perturbador.

- O nome não importa, mas a minha função é a de guardião do Portal da Senhora da Penha, - virou-se para nascente e apontou com o indicador direito - além naquela fraga, milenar local de culto, que alguns querem que caia no esquecimento. E perguntou de seguida – E vocês quem são e que procuram?

- Um grupo de amigos com laços familiares, que vivendo separados, se junta em agosto para matar saudades e por a conversa em dia, que decidiu dar um passeio ao cume da Serra. – Dissemos.

- Sinto que estão ligados por uma energia positiva e que são pessoas de bem. - Fez uma pausa e pediu para que nos sentássemos um pouco, que os anos dele e o nosso cansaço o mereciam e continuou – Não sei se já ouviram falar de mim, porque raramente sou visto e peço sempre para omitirem estes encontros. É que, infelizmente, não há muita gente preparada para eles. E eu como guardião dum local privilegiado de comunicação entre o Profano e o Sagrado sei isso muito bem.

Olhámos uns para outros a tentar perceber o impacto daquelas palavras e pergunta o Zé Barroso, com uma desenvoltura que me impressionou, mas habitual nele – Mas afinal que conversa é essa, onde é que o Senhor quer chegar?

Ele olhou-nos com o seu olhar profundo e, com voz que irradiava uma paz absoluta, continuou – A humanidade parece andar distraída, mas há milhares de anos que alguns homens sabem que o alto das montanhas são locais ideais de comunicação com a Divindade. Aliás, um dos pilares da vossa cultura, o Livro, refere-o imensas vezes. Todos já ouvistes falar que foi numa montanha como esta, bastante longe daqui, chamada Sinai, que a Divindade entregou a Moisés um código de conduta, bem pequeno, comparado com os de hoje, claro, unicamente com 10 artigos, mas que raros homens são capazes de cumprir.

Fez uma longa pausa e diz – Quando toda a humanidade agir segundo aquelas normas, que não são para católicos, como pensais, mas servem toda a humanidade, a terra fundir-se-á com o Céu e a humanidade passará a viver uma paz e felicidade permanente. Então, eu e outros guardiães deixaremos de ser necessários. - Calou-se e argumentámos, - Mas isso são balelas, não passa de um mito!

Encarou-nos um a um e disse serenamente – O ser humano é conhecido pela sua tradicional falta de fé. É velh,a mas bem significativa a frase do Homem Divino que por cá passou há dois mil anos «se tiveres fé como um grão de mostarda, poderás mover montanhas». O caminho é longo e difícil, mas homens santos e sábios conhecem os desígnios do Alto. Os Mais já o sabiam há séculos e eram chamados primitivos pelos espanhóis. Sabem que eles já tinham conhecimento que em 2012, se iniciaria uma nova era cósmica em que a materialidade começaria a ceder terreno à espiritualidade e ao sentimento geral de fraternidade?

Aqui não me contive e argumentei – Como é que acha isso se o planeta continua a viver tragédias terríveis por todo o lado? A guerra da Síria, as mortes de refugiados no Mediterrâneo… Não sabe o que se passa, certamente!

Olhou-me tranquilo e disse – A evolução é demasiado lenta para o vosso tempo de vida, mas os sinais são animadores e visíveis aos mais atentos. Reparem na quantidade de grupos que têm surgido para defesa ambiental, preocupados com a saúde do planeta, grupos pacifistas que arriscam a própria vida pela segurança dos outros e as ondas de solidariedade que surgem, cada vez com maior frequência, para salvar um ser humano, vítima de um terrível infortúnio.

Olhámos uns para os outros com ar de assentimento. Ele olhou-nos, sorriu pele primeira vez e continuou – A mudança mais profunda começa no interior de cada um de nós. A conquista de nós próprios é a chave. Continuem a cultivar a amizade que se sente em cada um de vós, a alegria e a paz, e atendendo ao lugar santo a que vão subir, recolham-se por um momento no vosso íntimo e ofereçam à Divindade a graça da saúde que tem recebido e vos permite ainda subir a este lugar, do amor que respiram nas vossas famílias e da amizade que vos une. São valores muito importantes, mas ao mesmo tempo tão frágeis.

Subitamente sentiu-se uma ligeira brisa, a luz pareceu vibrar com mais intensidade, talvez pelo calor que começava a apertar, e o velho desapareceu sem darmos por ela.

Subimos o resto que faltava para o cume, em silêncio, sem percebermos bem o que se passara. Teria sido uma alucinação colectiva, devida à conjugação do cansaço e calor ou apenas um sonho interior ocasionado pelo ar rarefeito da montanha?

No alto comemos a merenda, admirámos a paisagem e tiramos outro retrato a comprovar a felicidade de termos chegado juntos à meta.


No regresso o calor era abrasador e, enquanto nos refrescávamos, um pouco, à sombra do mais majestoso castanheiro das redondezas, à chegada ao Casal pelo lado de Nordeste, o Zé Barroso vai de soltar uns valentes assobios, «à pastor» e eis a revelação. O encontro com o guardião não fora irreal e as coisas estão a acontecer. Pois jamais fora visto noutros tempos e não foi ilusão: três cabras aparecerem a espreitar, no primeiro andar duma casa, ao balcão.

De maneiras que foi assim…

F. Barroso
Fotos do João Craveiro (Passaraço)

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Conferência das andorinhas


Fim de tarde de verão.

Depois de um dia de imenso calor, procuro o fresco do jardim.
Entre as flores e a beleza encontro a serenidade e a paz no infinito azul do céu.
Voam abelhas de flor em flor. Atarefadas nas suas missões, nem dão pela minha presença.
Enlaçam-se as flores para chegarem mais alto e mais longe e saudarem o sol a cada manhã (Bons dias).

Olho o céu.
Voam andorinhas, pardais, carriças, labrandeiras e sei lá que mais.
Inquietos os voos de hoje. Nervosos e barulhentos. Porque será?
Vou investigar, talvez descubra porquê.
Sigo-as.
Oiço o barulho que fazem, cada vez mais e mais perto.
Fios de telefone, eletricidade e beirais cheios de andorinhas inquietas.
Algumas fogem com a minha presença mas regressam novamente, outras vão chegando.
Intensifica-se o som e olho mais além e mais alto.
Não há poiso para tantas patinhas de andorinha.
Reunidas em conferência na mais alta e abandonada antena de TV. Qual “sala” mais improvisada, arejada e pequena para poiso de tantas outras que reclamavam nos fios e beirais.

Que discutiam? Que reclamavam?
Estariam só algumas em conferência, (as da antena) e as outras, (dos fios e beirais), protestando?
Que dirão de sua justiça?
Que regras terão de mudar, pela instabilidade do tempo e pela destruição humana?
De que leis terão de abdicar para continuar a seguir os seus instintos naturais e os seus voos livres?
Que liberdade terá o futuro?

Subitamente fez-se silêncio.
As andorinhas abandonaram os seus poisos e regressaram aos seus ninhos.
O sol já finda no horizonte e a noite não tarda a chegar.

É hora de regressar a casa e no aconchego dos seus ninhos, adormecerem entre penas e sonhos de liberdade.

Luzita

21/Julho/2010

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

O livro em Castelo Branco



A apresentação iniciou-se com o José Teodoro a falar do processo que levou à concretização deste projeto.


E continuou com a leitura de algumas das histórias que selecionámos…


…acompanhadas pelo coro do nosso rancho, na parte das cantigas.


Dois dos alunos do Agrupamento de Escolas José Sanches e São Vicente da Beira explicaram o processo de ilustração de algumas das histórias do livro. 
Fizeram-no lindamente!


Finalmente, as individualidades convidadas (representante da RVJ editores, Presidente da Junta de S. Vicente da Beira, Vereador da Cultura da C. M. Castelo Branco e Diretora do A.E. José Sanches e S. Vicente da Beira) falaram da participação de cada uma destas instituições neste projecto. 
Salientaram sobretudo a importância que iniciativas como esta têm na preservação da nossa identidade cultural e na passagem de testemunho às gerações que nos sucederem.


A plateia não estava cheia, mas estavam certamente os melhores!
Para a semana iremos às escolas de Alcains e São Vicente e, no dia cinco de novembro, ao Pequeno Lugar, na Partida.

Até lá!

M. L. Ferreira

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Estivemos no Lar

Fomos ao nosso Lar conviver com as pessoas que ali vivem. E levámos o coro do Rancho Folclórico Vicentino para cantar alguns poemas integrados em histórias do livro. Cantaram a nossa Paixão, é lindíssima!
Foi muito bom. Faço minhas as palavras que a Luzita Candeias me enviou:

Gostei da tarde de sábado, entre Crescidos com tantas histórias vividas e por contar.
Gostei de ver os sorrisos deles, os olhos a brilhar a quererem que as histórias e canções se prolongassem pela tarde.

Têm de voltar outra vez, ouvir e contar novas histórias e cantar outras cantigas.
Pode ser?
E como é que aparece uma burra assim? ["...forte como uma mula, elegante como uma égua e muito mansa."] É isso que vamos ver. Há 60 anos havia uma família cigana no Cimo de Vila, que morava numa casa hoje em ruínas, que era do Tonho Russo e portanto vizinhos do meu avô Bernardo.
Num inverso particularmente agreste, a vida não estaria a correr muito bem ao Chico Cigano que, com a casa cheia de filhos a chiar de fome, lá se encheu de coragem e foi pedir ao meu avô um conto de réis para relançar o negócio. Que lhe pagaria pelo São Miguel.
Dos Enxidros aos casais: histórias e gentes de São Vicente da Beira, "A Preta", 
de Francisco Barroso, pp. 64 e 65.
Ilustração dos alunos do 2.º ciclo do Agrupamento de Escolas de José Sanches e São Vicente da Beira

Amanhã estaremos na Biblioteca Municipal de Castelo Branco...

José Teodoro Prata

domingo, 9 de outubro de 2016

O Jareto

Uma cortina enegrecida dividia a cozinha da enxerga. O ganhão levantava-se mais cedo que as galinhas. Era uma casita pequena, o reboco há muito tinha desaparecido, grossos pregos de caibro espetados na parede seguravam os poucos utensílios existentes. Um tacho esmaltado, a candeia, um púcaro, panela de barro, trempes… a panela de ferro ficava junto ao borralho, assim como um púcaro onde havia sempre café.
Ao levantar-se do catre, o ganhão vestiu as calças de burel, calçou as botas cardadas, tirou do bolso do colete a onça de tabaco, e o livro de papel; sacou uma mortalha, nela colocou um pouco de tabaco. Com os lábios humedeceu-a, enrolou-a e acendeu o cigarro. Deu uma fumaça, pigarreou, “para sair o catarro”; de seguida pegou na garrafa da aguardente e matou o bicho.
Tirou uma malga da cantareira onde migou pão e encheu-a de café que estava dentro do púcaro de barro. Sentou-se no tropeço, mastigava e fumava ao mesmo tempo.
O galo cantou no galinheiro da dona Cidália, a alva sonolenta dormitava ainda.
Foi à gaveta da mesa, cortou uma fatia de broa e um naco de queijo das ovelhas da Casa Conde e embrulhou-o numa folha de couve; do bolso do casaco de burel tirou uma bolsa onde meteu a pitança.
Nova fungadela, desceu as escadas com algum cuidado, algumas já acusam o peso dos anos. Tirou a tranca à porta, levantou a cravelha e saiu para a rua.
Elevou os olhos para o céu estrelado, não bulia uma palha. Àquela hora da manhã, o ar já era quente. Dirigiu-se ao cabanão onde se situava a abegoaria.
Ao passar em frente à igreja da Misericórdia, tirou o chapéu e cumprimentou o Senhor Santo Cristo:
-Bons dias, Senhor Santo Cristo, já cá vou.
Homem rude, simples, trabalhador, aquela era a sua reza, não recitava o pai-nosso; se calhar nem o sabia. Com a sua rusticidade e humildade, rezava mais que muito boa gente que passava o dia a debitar pai-nossos e ave-marias. Era a sua jaculatória.
-Bom dia, Senhor Santo Cristo.
No cabanão, subiu as escadas, trouxe uma faixa de caneirões, abriu a cancela e espalhou-os na manjedoura; fez umas festas à Amarela e à Malhada.
Enquanto comiam a ração, o ganhão preparou o carro, foi buscar o aguilhão, atou a lanterna a um fugueiro, enrolou um cigarro, colocou a canga às vacas, atrelou-as e saiu. A camisa fraldejava. Desceu a rua da Igreja, a jeira ficava longe, ia preparar a terra para semear milho basto.
A aurora tinha acabado de se levantar, aos poucos o sol inundava com sua luz toda a terra, em cima do carro ia a charrua e um calabre. À noite tinha que passar pelo corte e carregar uma carrada de pernadas para o forno.
Quando chegou, desatrelou as vacas do carro, engatou a charrua e começou a lavrar. As leivas faziam-se com uma certa dificuldade, o terreno tinha muita erva, com o aguilhão destorroava os montes de terra que se iam agarrando à charrua.
Entardecia, tirou a charrua às vacas, voltou a atrelar o carro, o corte ainda ficava longe; era noite quando chegou à porta do forno.
No cabanão, desatrelou o carro, acendeu a lanterna e levou as vacas ao chafariz; enquanto bebiam, matou a sede numa das bicas da fonte velha.
Àquela hora havia mais de uma dúzia de mulheres à espera de vez para encherem os cântaros.
Os animais continuavam bebendo. De repente, duas vacas engalfinharam-se e começaram a marrar, os ganhões aflitos tentavam com seus aguilhões separá-las, parecia que tinham o diabo no corpo. A certa altura, o chavelho de uma das vacas partiu-se, os ganhões finalmente conseguiram acalmar as alimárias. O sangue escorria, as pessoas que estavam sentadas nos cais e a encher seus cântaros fugiram, não ganharam para o susto.
O dono da vaca que tinha ficado sem o chifre, no outro dia de manhã foi ao posto fazer queixa. O ganhão foi notificado para se dirigir ao tribunal de Castelo Branco. Antes de entrar na sala de audiências, alguém lhe disse o que devia dizer quando estivesse a ser interrogado.
À hora marcada, apresentou-se rubicundo e a tremer, perante o magistrado:
-Conte lá o que se passou. - pediu o juiz.
-Senhor doutor juiz, as vacas estavam a beber água no chafariz, de repente começaram a marrar. Faz de conta que eu sou um boi, o senhor é outro boi, vamos os dois a marrar, eu parto-lhe um corno, que culpa tem o ganhão?
-Tirem este homem daqui!
E assim ganhou a contenda.
- Bom dia, Senhor Santo Cristo…


JMS