sexta-feira, 30 de março de 2012

FORAL MANUELINO: Vicentinos na Expansão

A obra "A BEIRA BAIXA NA EXPANSÃO ULTRAMARINA" dá a conhecer alguns vicentinos que participaram na expansão portuguesa dos séculos XV e XVI, a época do foral manuelino. Os autores são dois investigadores, ambos naturais da Orca.
(Joaquim Candeias Silva e Manuel da Silva Castelo Branco, A BEIRA BAIXA NA EXPANSÃO ULTRAMARINA, Edição da Câmara Municipal de Belmonte, 1999)

Lopo Martins
Era natural de S. Vicente da Beira e participou em importantes expedições militares, na primeira metade do século XV: Ceuta, 1415; Canárias, 1424…
Foi acusado de adultério, em São Vicente da Beira, por um marido enganado chamado João Anes Boiro (Boeiro?). Condenado a degredo para Ceuta, por dois anos, cumpriu a pena em Marvão, como homiziado, pelos seus bons serviços prestados ao reino.

Duarte de Azevedo
Natural de S. Vicente da Beira, era filho de Lopo de Azevedo, fidalgo da Casa Real que, proveniente da quinta de Azevedo na Terra da Feira, passou a viver na dita vila, onde casou com D. Joana, “senhora de grande qualidade”.
Partiu para a Índia em finais do reinado de D. Manuel I. Em 1528, participou na tomada de Baçaim com o Capitão Martim Afonso de Mulo Jusarte, a quem acompanhou depois ao reino de Bengala. Ali voltou de novo no ano de 1533, com a armada de que ia por capitão-mor o mesmo Martim Afonso, a fim de estabelecer comércio e negociar a libertação de um mercador mouro chamado Coje Xabadim. Fundeadas as naus no porto de Chetigão, foi o nosso Duarte de Azevedo, presumivelmente bom conhecedor da língua nativa, enviado com 10 homens por embaixador de Bengala, levando-lhe presentes que valeriam mais de 3.000 pardaus. Foram apanhados por fogo cruzado, entre lutas rivais, e acabaram presos, só sendo libertados em 1538.
Duarte de Azevedo regressou então ao reino. Passou depois ao Norte de África e esteve no cerco de Safim, servindo aí muito bem, pelo que era “merecedor de honra e mercê”. Voltou à sua terra natal e depois fixou-se em Évora, já casado e com geração.

D. Álvaro da Costa
Natural de S. Vicente da Beira, era filho de Martim Rodrigues de Lemos e Isabel Gonçalves da Costa. Segundo alguns, a sua mãe era parente do cardeal D. Jorge da Costa (de Alpedrinha) e por ele se tornou escudeiro-fidalgo da Casa Real. Depois foi guarda-roupa e camareiro-mor de D. Manuel, recebendo dele muitas mercês: conselheiro de Estado e o tratamento de Dom para si e seus descendentes; o hábito da Ordem de Cristo, com 20.000 réis de tença e os honrosos cargos de armeiro e armeiro-mor que já exercitava, em 1515.
Foi embaixador do rei a Espanha e a Roma. Teve a comenda de S. Vicente da Beira da Ordem de Cristo, foi vedor da Casa da rainha D. Leonor e primeiro provedor da Misericórdia de Lisboa.


Vista geral da ermida da Senhora da Orada.


Pia de água benta de estilo manuelino, com o brasão dos Costa, na ermida da Senhora da Orada.


Pormenor do cruzeiro manuelino, com o brazão dos Costa, na entrada do adro da Senhora da Orada.
É possível que a atual capela da Senhora da Orada seja uma reconstrução do século XVI, promovida por D. Álvaro da Costa, pelo seu filho ou pelo neto, que se seguem. Quem a mandou reconstruir deixou a sua assinatura: o brazão de família Costa.


D. Duarte da Costa
Filho segundo de D. Álvaro da Costa e de D. Brites de Paiva, sucedeu ao pai no cargo de armeiro-mor do reino. Teve a comenda de São Vicente da Beira, na Ordem de Avis, que renunciaria a favor de seu filho D. Francisco da Costa, em 1560.
D. João III mandou-o por embaixador a Carlos V e, em 1553, designou-o para suceder a Tomé de Sousa, no governo e capitania-mor do Brasil, cargos que desempenharia até 1557.
Partiu de Lisboa a 8.5.1553, levando consigo o Padre José de Anchieta. Voltou à corte, em 1557, onde retomou o cargo de armeiro-mor. Havia, entretanto, casado com D. Maria de Mendonça, da qual houve descendência.

D. Francisco da Costa
Filho segundo de D. Duarte da Costa e de Maria de Mendonça, nasceu em Lisboa, no ano de 1533, e teve o hábito de Avis e a comenda de S. Vicente da Beira, desta Ordem, por cartas de 1558 e 1560.
Ainda jovem, partiu para o Oriente, na armada de D. Afonso de Noronha, em 1550. Participou em lutas no Mar Vermelho e no Golfo Pérsico. Regressou ao reino e, de 1556 a 1559, serviu a frota que defendeu a costa portuguesa dos corsários franceses. D. Sebastião entregou-lhe a capitania de Malaca, para onde partiu em 1568. Regressou a Portugal, em 1575, e o rei nomeou-o capitão-mor e governador do Algarve, com o encargo de abastecer o exército que se deslocava para Alcácer-Quibir. Após o desastre, o Cardeal D. Henrique enviou-o como embaixador a Marrocos, para resgatar o duque de Barcelos e mais 80 fidalgos cativos pelos mouros. Chegou a Mazagão, em 1579. Como não levava dinheiro suficiente, ficou como fiador dos cativos libertados. Foi já D. Filipe I quem lhe mandou o dinheiro suficiente, mas o Xerife Mulei Ahmede exigiu então o pagamento em pérolas. Faleceu antes da libertação, em Marraquexe, no ano de 1591.
Casara com D. Joana Henriques, dama da infanta Isabel. Era poeta.

Jerónimo Corte-Real
Descenderia dos Costa Corte-Real de Alpedrinha. Nasceu nos Açores, em 1530 e faleceu em 1590. Pessoa de grande engenho, guerreiro, poeta, músico e pintor, casou com D. Luísa da Silva, dama da rainha D. Catarina.
D. Sebastião fez-lhe mercê da capitania-mor de uma nau da Índia, em 1571. Teve também a comenda de S. Vicente da Beira na Ordem de Cristo e licença para a arrendar, por alvará de 1561.

Padre Leonardo Nunes
Era filho de Simão Álvares e de Isabel Fernandes e nasceu em S. Vicente da Beira, possivelmente em 1518. Entrou no colégio da Companhia de Jesus, de Coimbra, em 1548, e no ano seguinte partiu para o Brasil, na armada de Tomé de Sousa, fazendo parte de um pequeno grupo de missionários chefiados pelo Padre Manuel da Nóbrega.
Foi enviado para Ilhéus e depois para a capitania de S. Vicente, onde não havia missionários. Exerceu uma intensa e profícua atividade, mostrando-se sempre incansável e zeloso. Dominava a língua nativa.
Criou uma escola para crianças índias e portuguesas, o chamado Colégio dos Meninos de Jesus, inaugurado em 1553. Por isso é considerado fundador da instrução no Estado de S. Paulo.
Enviado a Roma para dar conta da obra da Companhia de Jesus, no Brasil, faleceu num naufrágio ainda à vista de São Vicente, em 1554.

Sebastião Falcão
Era natural de São Vicente da Beira, filho de Fernão Falcão e de Maria Teresa (irmã de Xisto Tavares, cónego da Sé de Lisboa).
Partiu para a Índia, em 1533, incorporado na armada capitaneada por D. Pedro de Castelo Branco.

Irmão Domingos Vaz
Entrou para a Companhia de Jesus em 1588, com 29 anos. Nos finais de 1594, achava-se no Colégio de Cochim (Índia), sendo então coadjutor.

Simão de Sousa de Refóios
Foi o primogénito de Jácome de Sousa de Refóios, 9.º senhor do morgado de Santa Eulália, que viveu nas suas casas nobres de S. Vicente da Beira, com a mulher e prima Maria de Refóios.
Sucedeu na casa paterna e foi o 10.º senhor do dito morgado. Acompanhou D. Sebastião a África, onde morreu na batalha de Alcácer-Quibir (1578). Morreu sem geração, pelo que o morgado passou a sua irmã D. Leonor de Sousa. Esta casou com Nuno da Cunha, neto do grande governador do mesmo nome e deles foi 2.º neto João Nunes da Cunha que chegou a vice-rei da Índia e a quem D. Afonso VI concedeu o título de 1.º conde de São Vicente, sem embargo da oposição dos seus moradores.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Os caseiros do Monte do Surdo

O Casal do Monte do Surdo era a propriedade mais valiosa que o Conde de São Vicente possuía na nossa freguesia, recebendo de foro 26$666 réis e 24 arráteis de linho, anualmente. Ocupava todo o vale do ribeirito, afluente da Ribeirinha, que separa o Casal da Fraga do Casal do Baraçal. Penso que a residência dos caseiros era a última casa do vale, junto ao cruzamento da estrada para os Pereiros e Partida.

Em 1768, apenas duas famílias viviam no Casal da Fraga e uma outra neste casal do Monte do Surdo. Eram os caseiros Manoel Leytaõ e Izabel Duarte.
Dois anos depois, é já o seu filho que aparece na documentação, como herdeiro do aforamento: Joze Leytam Paradanta, casado com Maria Pires do Casal da Serra. Como o nome indica, o pai de Joze Leytam Paradanta seria natural da Paradanta e o filho herdou o apelido. Este Joze Leytam costumava ajustar os malhadis da Devesa, para alqueivação de cereais.

O casal teve duas filhas, ambas bem casadas. Maria Pires Leitão casou com João Rodrigues Lourenço Caio, natural da Torre, filho de Francisco Rodrigues Lourenço Caio da Torre e de Maria Jordão de Castelo Branco, mas filha de pai do Louriçal. João Rodrigues Lourenço Caio era sobrinho do cura do Louriçal, em 1776, o Padre Joam Rodrigues Lourenço Cayo.
A outra filha de Joze Leytam e Maria Pires, chamada Francisca Pires, casou com João Ribeiro Garrido, do Sobral do Campo.

João Rodrigues Lourenço Caio veio viver para casa do sogro e dele herdou o aforamento do casal. Foi Capitão da Ordenanças da Vila. Durante a Guerra Peninsular (1807-1812), a sua casa agrícola deu alimentos para os franceses e fez serviços de transporte com o carro de bois para os exércitos francês, português e inglês.
Um filho de João Rodrigues Lourenço Caio e Maria Pires Leitão, também chamado João Rodrigues Lourenço Caio, casou no Sobral do Campo, em 1811, com Helena Maria Duarte, filha de Sotério Duarte e de Josefa Margaridas, ambos do Sobral. Este João Roiz Cayo ainda vivia no Sobral, em 1828 e era lavrador.

O outro filho, António Rodrigues Caio, integrou o Regimento de Milícias, na Guerra Peninsular (1807-1812). Casou, no dia 17 de Junho de 1824, com Francisca Maria, filha de Manuel de Andrade e Maria Josefa, ambos dos Pereiros. No dia 15 de Novembro do mesmo ano de 1824, nasceu-lhes uma filha chamada Maria.
Esta Maria José casou, no Sobral do Campo, em 1844, com Manuel Ramos Preto, filho de António Ramos Preto e de Inês Duarte.

Em 1829, o casal do Monte do Surdo era dirigido por José Roiz Cáyo, certamente filho de Antonio e portanto neto de Joaõ Roiz Lourenço Cayo. Mas dele não encontrámos mais informações.

Notas:
- Roiz é a escrita antiga de Rodrigues.
- Estas informações chegaram-me por duas vias: a documentação da época e a obra Famílias da Beira Baixa, Volumes I, II e III, Lisboa, Edição do autor, 2007, de Manuel Estevam Martinho da Silva (esta sobretudo na parte referente à família Rodrigues Lourenço Caio).

sábado, 24 de março de 2012

O nosso falar: chabaçado

Fui a São vicente e vim de lá chabaçado, cansado que nem uma raposa.
Ambas as expressões significam muito cansado. Na segunda, podemos imaginar uma batida à raposa e ela, perseguida sem descanso, já mal se arrasta de cansaço.
Chabaçado vem de chabaçar ou achabaçar, que significa despedaçar, fazer em cacos. Nós temos outra expressão com este sentido: estar todo partido!, com dores no corpo, provocadas pelo trabalho.
Usamos chabaçado mais no sentido de estar tão cansado que nem se pode com uma gata pelo rabo. Ora uma gata pesa pouco, logo o cansaço terá de ser mesmo muito!

Este ano plantei umas árvores e todas as semanas tenho de as regar ao balde, devido à seca. Cá está uma das razões de vir chabaçado.
O ribeiro já secou há um mês e o charco onde ia buscar a água também secará nos próximos dias. Isto costuma acontecer no início de agosto.
Chuva, nem vê-la. Ainda está prevista para amanhã, mas não me parece...
Valha-nos as cerejeiras em flor!

terça-feira, 20 de março de 2012

Apresentação do livro


Em Janeiro, na resposta a um comentário do Francisco (do México), anunciei a apresentação do meu livro, num futuro próximo.
Estava prevista para a sexta-feira, 23 de Março, mas teve de ser adiada, devido a doença de um familiar dos apresentadores. Anunciarei a nova data logo que seja marcada.

domingo, 18 de março de 2012

Balanço metereológico

Caiu um carujo, mas só assentou o pó.
A seca continua. No próximo fim de semana, está prevista mais chuva. Esperemos que desta vez nos calhe alguma!

sexta-feira, 16 de março de 2012

FORAL MANUELINO - A colheita régia

O foral manuelino de S. Vicente da Beira (1512) estipulava que «Outrossim se pagará na dita vila um jantar e colheita a que chamam soldo d´água. E por ele pagam em cada um ano mil seiscentos reais repartidos por todos os moradores da dita vila e termo segunda tem a fazenda. Sem nenhuma pessoa ser escuso da dita paga por privilégio nem liberdade que tenha. Posto que seja clérigo, segundo os bens que raiz que tiver.»

Desde o início da nossa nacionalidade que era obrigatório, por parte das populações, o fornecimento de víveres para a mesa das autoridades visitantes. Fosse o rei, o bispo, o senhor da terra ou os oficiais da comarca, todos tinham direito a ser hospedados e alimentados pelos povos. Ao conjunto de alimentos que as populações deviam entregar chamava-se colheita.
A historiadora Iria Gonçalves (Souto da Casa) estudou a colheita devida ao rei D. Afonso III, no século XIII, pelos concelhos de Sarzedas e S. Vicente da Beira.
Eis a nossa colheita régia:

Carnes: 1 vaca, 2 porcos, 5 carneiros e 15 galinhas
Temperos para as carnes: 1 almude (20 litros) de manteiga, alhos, cebolas e 1 almude de vinagre
Ovos: 100
Mel: 1 almude
Sal: 1 almude
Pão: 300
Vinho: 1 moio e 6 almudes (360 litros + 6x20 litros = 480 litros)


A carne dava para alimentar cerca de 340 pessoas e o vinho para 250 pessoas (as damas bebiam pouco). Os reis deslocavam-se acompanhados por um grande séquito!
Se o rei não vinha ao concelho (nunca terá vindo à nossa vila), mandavam-se os animais para o local onde residisse habitualmente. Mais tarde, a colheita régia em géneros foi convertida em dinheiro, devido anualmente ao rei. É a esse imposto que se refere o nosso foral acima citado. Em 1512, andava pelos 1600 réis (1$600 réis).

(Iria Gonçalves, A colheita régia medieval, um padrão alimentar de qualidade (um contributo beirão), Comunicações das I Jornadas de História Regional do Distrito de Castelo Branco, 1994, Castelo Branco)


Janela manuelina ao fundo da Rua Manuel Lopes, na casa n.º 55.
A data inscrita na pedra (MCCLXXI - 1271) é muito anterior à ornamentação manuelina (pouco depois de 1500).

quarta-feira, 14 de março de 2012

O nosso falar: capela

Uma capela é um templo religioso cristão, mais pequeno que uma igreja e dedicado a um santo ou a Nossa Senhora, enquanto a igreja é, digamos assim, a casa de Deus e de todos os santos, mesmo quando é dedicada a um deles.
Também usamos capela com o sentido de uma divisão da igreja devotada especialmente a um santo, a Nossa Senhora, ao Espírito Santo, ao Santíssimo Sacramento... Não conheço na nossa freguesia esta situação, mas a igreja de Tinalhas tem uma capela virada a sul, que lhe foi acrescentada depois da construção do edifício principal.
No passado, abundava outro tipo de capela. Era um conjunto de bens (terras, casas, rendas, árvores...) deixados em testamento a uma pessoa, com a missão de usar o rendimento desses bens para mandar dizer missas por alma de quem instituíra a capela ou para uma obra pia.
Também se diz cantar à capela, que significa cantar sem acompanhamento musical. O termo vem da maneira de cantar nas igrejas/capelas, só com a voz, sem instrumentos musicais a acompanhar.
Já conhecia estas capelas, mas há uns tempos a minha mãe surpreendeu-me com mais uma. Foi ver um forno que o meu pai fizera há dezenas de anos e disse-me que estava muito bem feito, pois tinha uma capela alta para conservar o calor. Fiquei a saber que esta capela era a cúpula do forno, que deve ser alta para guardar calor suficiente para cozer o pão e os bolos. Se o forno tiver uma capela baixa, depois de gastar o calor do chão e das paredes, não tem calor de reserva e o pão fica mal cozido.
Tantas capelas, todas derivadas da primeira, um pequeno templo religioso. Esta última tem origem no teto redondo (em cúpula) de algumas capelas antigas.

sábado, 10 de março de 2012

Na Estrela, até aos limites…

O autocarro parou na entrada do bosque de bétulas, aos pés do Cântaro Magro. Metemos as mãos na água fresca do Zêzere ainda menino e fomos caminhando para o interior, extasiados com a paisagem.
No final do parque, o terreno começava a subir e o passeio tornou-se mais difícil, por entre matos altos e pedras aguçadas. O Pe. Jerónimo parou e disse:
“Quem quiser, vem comigo a pé até à estrada que passa além, no alto. O autocarro espera lá por nós.”
A provocação era irrecusável. Embora ele fosse filho e irmão de quem era, não lhe conhecia pergaminhos que não fossem livros e missas, tirando talvez umas investidas semanais contra as balizas adversárias. E ainda uma paixão total pelo Benfica que, em todo o caso, não exigia a ele destreza física.
Habituado às andanças na serra, fui logo atrás dele, eu e umas duas dezenas de colegas. Subimos por uma passagem estreita entre encostas rochosas a pique e chegámos a uma zona plana, parecia o fundo de uma malga partida na borda, por onde tínhamos entrado.
Em lado nenhum estrada ou autocarro, isso ficava lá num cimo ainda invisível! Continuámos, pois o nosso guia mal parara e já nos ganhava dianteira. Subimos, subimos, agachados, avançando com o impulso da força que fazíamos agarrados nos matos e nas pedras. Mal nos atrevíamos a endireitar o corpo, pois parecia que caíamos para o precipício lá no fundo.
Não parávamos, pois temíamos ficar para trás, o Pe. Jerónimo já lá ia à frente. Arfávamos de boca aberta, uma sede atroz! Mas um fio de água descia por entre tufos de ervas: deitei-me no chão, fiz uma covinha, esperei que a água aclarasse e bebi sofregamente. Depois continuei, agora de gatas, pois o meu medo de cair para trás aumentava na razão directa do aumento do declive.
Mais umas braçadas e já se viam as guardas da estrada e depois os nossos colegas. Chegámos, meio embriagados pelo cansaço e pelo entusiasmo de termos conseguido. Penso que foi no meu 5.º ano (9.º ano) e tenho esta subida a parte do Cântaro Magro no quadro de honra dos melhores momentos da minha adolescência.
Depois do almoço, natação na Lagoa Comprida. Novo desafio do Pe. Jerónimo: nadar até ao paredão da barragem. Alguns acompanharam-no e conseguiram, outros voltaram para trás, mas eu nem passei das margens. Sou terra, nada de água, nem ar.
No final, comentámos a pujança do nosso prefeito. O velhote tinha garra!

No final da crónica, fiz as contas à idade do Pe. Jerónimo, na época: cerca de 30 anos! É curiosa a perceção que os mais novos têm dos mais velhos.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Chuva

Nada. Uns barrufos que nem o pó assentaram!

domingo, 4 de março de 2012

O nosso falar: estercar

A chamada zona do pinhal, que começa nos Pereiros e acaba nas proximidades de Tomar, é uma região cheia de particularidades.
Região de boa gente, a melhor que conheço, conserva tradições que nas áreas circundantes há muito foram devoradas pela modernidade.
Têm os maranhos (um manjar do Olimpo), ainda fazem a torna (um vizinho ajuda os outros na azeitona e eles vêm ajudá-lo a ele, tudo sem dinheiros) e dizem estercar quando andam a espalhar o estrume (esterco) numa terra de sementeira ou as cabras pastam num terreno de cultivo e aproveitam para se aliviarem.
Na Vila, sede do poder e por isso mais sujeita às novidades, só raramente se usa estercar, pois todos dizemos estrumar.
Mas, em 1769, a palavra ainda tinha dignidade para entrar numa ata camarária.
O Capitão João Duarte Ribeiro do Casal da Serra, aparentado com os Duarte Ribeiro de Tinalhas e Freixial, também tinha casa e terras na Vila. Era um dos homens mais rico e poderoso do concelho.
Trazia arrendada a tapada das Poldras ao Desembargador João Cardoso de Azevedo e, diariamente, as suas ovelhas e cabras desciam do Casal da Serra, atravessavam os Enxidros, passavam por dentro da Vila e vinham pernoitar nas fazendas, para as estercarem.
Foi multado, apresentou reclamação, mas recusaram-lha, por virem as ovelhas serranas misturadas com um cento de cabras. Todos conhecemos o carácter predador das cabras, além de que o gado ignorava que as ruas da Vila não eram sítio para estercar.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A vila da infância

FLUIDA ESPIRAL

Naquele tempo a aldeia era povoada.
Antigas canções de roda ecoavam na praça:
Quantos peixes há no mar? Eu nunca lá fui ao fundo…
Mais antigos, contudo, eram os cânticos da fonte
segredos de milénios guardados em novelos de eternas águas.
Escondida atrás do coreto, olhos fechados
voltada para as heras das paredes
Muitas vezes perguntei: É hora?
Vozes de outras crianças, trazidas pelo vento, respondiam, dolentes
ainda não, ainda não, ainda não…

Enquanto isso, velhos paravam à sombra das árvores
enrolando cigarros, ritual para melhor desenrolarem histórias
memórias de outros tempos, fluida espiral
fio azulado de fumaça, onde recuperavam o fio do passado.
Carros-de-bois chiavam pelas ruas
burrinhos trotavam, pachorrentos
transportando figuras negras
mulheres sentadas de lado, sob a sombrinha aberta
fizesse chuva ou sol
umas vezes indo, outras regressando dos campos.
E baliam cabras, vigiadas pelo pastor
entre toques de sino – alvorada ou crepúsculo.
Na ribeira, misturava-se o canto das águas viajantes
e o canto das lavadeiras, intervalo de linho e espuma
enquanto os maridos andavam nos montes e nas searas
estrelas que partem, estrelas que retornam
dia vai, dia vem, verões e invernos
flores que nascem e se esfolham.

(Maria de Lourdes Hortas, Cantochão de Todavia, Gega, 2005, São Vicente da Beira)