segunda-feira, 30 de maio de 2016

Fonte Velha

Altar dourado ao sol do infinito,
Robustecido pelo açoite
Flagelador do tempo,
É por milagre que, de dentro desse granito, 
Pedra constante, firme e dura,
Quer de dia, quer de noite,
E a todo e qualquer momento,
Brota água tão fresca e pura?!

Suave no inverno, fresco no estio,
Cristal líquido que ali vamos beber,
Caudal de inextinguível rio,
Que não se inventa,
Que mágico algum pode prever,
Que não pode imaginar-se,
O que és tu, ventre desta fonte?
Choro de moura encantada que te alimenta,
Mais forte que uma catarse,
Mais infindo que o horizonte?!

Ou és, por acaso, o pranto dos deuses,
Que corre do Olimpo, no firmamento,
Inesgotável e intemporal,
Elixir balsâmico que a dor alivia, 
Que à terra dás sustento, 
Que reconforta e que sacia,
A sede ao corpo e o âmago imortal?!

Se calhar és esse lamento!
Mas foste também lugar de muitos amores,
Ponto de encontros discretos,
Encruzilhada de desejos,
De promessas, futuros secretos,
Bons augúrios e ensejos,
Pelo crepúsculo, à noitinha;
Testemunha das risadas altas e claras
Das raparigas da vila que iam procurar-te
A água perlífera, límpida e fresquinha,
Saída das tuas pedras brutas, ignaras.

Obra da nossa gente, da nossa arte,
Velha fonte quinhentista,
Nos bancos que te ladeiam, os rapazes,
Procurando uma conquista,
Prometiam infinitos amores, sentidos,
Vidas a dois, lares e remansos,
Imáculos, idílicos - não tanto carnais ou mundanos!
Porém, as moças, ariscas, risos furtivos, 
Fugiam – pese embora inebriadas! - a tais avanços,
Muitas vezes temerosas da lisura de tais planos!

Largo térreo de séculos, alindado já a tardar,
- Pelos idos de sessenta –
Das bicas ao chafariz,
Onde os bois presos ao carro, fatigados e contraídos,
Ao peso de uma jeira - um dia inteiro a lavrar! –
Com a canga p’la cerviz,  
Vêm, sôfregos, beber, ronceiros e condoídos.

Átrio que, em tardes de sol, por desfastio,
Tanto convidava à bachica,
Em correria, ao desafio,
Com as roupas encharcadas,
Entre a mocidade irrequieta, louca,
- Momentâneas disputas e emoções! - 
Saias, calças, camisas, blusas ensopadas,
Rapazes e raparigas, na refrega, em êxtase - a voz rouca!
No fim, o afeto tornava aos estouvados corações!

Fonte velha que me precedeste
E, decerto, me hás de suceder,
Como já sobreviveste a tantos vicentinos!
- A vida é tão frágil como a tenra erva do jardim! -
Quem pode prevenir destinos?
E, embora eu não saiba o que irá acontecer,
Vós, pedras desta fonte, sereis sempre para mim, 
- Como para os que a ti se encostaram e beberam da tu’ água -
Quando já não vos puder ver,
Minha saudade, minha mágoa!  


Alcino dos Santos 

domingo, 29 de maio de 2016

Gente da nossa criação

Eu vivi na casa onde apanharam o Pistotira, antes do meu irmão Zé Maria lá morar. Na cozinha, havia um buraco na parede, ao lado do lume, que dava para a cozinha da tua tia Carlota. Quando precisávamos de alguma coisa, lume ou que uns tratassem dos filhos dos outros, era por lá que os dávamos. O buraco era pequeno, só lá cabia um bebé. A tua prima Celeste passou por lá muitas vezes, para a minha mulher tomar conta dela.
Assim me contou o senhor Luís da Tomásia, há anos, quando o entrevistei a propósito da prisão do Pistotira. É curiosa esta expressão Luís da Tomásia, que ouvi desde criança, tratando-se este Luís de um homem com uma personalidade forte, num tempo em que as mulheres ainda riscavam pouco.
Tenho refletido muito sobre esta expressão, por isso a demora. Ele é o Luís Rodrigues, também Luís Prata e ainda o Luís da Tomásia. Mas o que tinha ela para tamanho reconhecimento social? Acho que era um coração enorme, onde todos cabíamos.
A senhora Tomázia fazia parte do meu mundo de criança, prima da minha mãe por afinidade. Nunca fomos muito próximos, talvez por eu ser arredio, mas sentia-se um clima de carinho sempre que nos saudávamos.
Era ao alambique do Chão da Bica que nós da Tapada, a minha mãe e a minha tia Stela, íamos fazer a aguardente. Massa carregada em bacias, à cabeça, e depois longas horas noturnas de pouco trabalho e muita espera. A presença da senhora Tomásia era constante, nos intervalos dos seus afazeres domésticos. Às vezes aparecia-nos já noite dentro para uma conversa ou um conselho sobre a intensidade do fogo debaixo da caldeira e a temperatura da água no tanque.
As minhas irmãs eram muito amigas das filhas mais velhas dela, e praticamente da mesma idade. Num ano do final da minha infância, eu, a Eulália, o meu primo João e não sei se o Tó, fomos ajudar nos trabalhos outonais: vindima, apanha do feijão pequeno… Era um misto de trabalho e brincadeira, a de comer e ainda nos pagavam qualquer coisa. A senhora Tomásia recebia-nos na cozinha, a cada meio-dia. Lembro-me como se fosse hoje de um bacalhau com batatas e muito azeite. Ainda tenho o sabor na boca. Depois, à sobremesa, já na rua, a melancia que coubesse na barriga.
Nós com os olhos no infinito do universo, na esperança de uma ajuda dos santos e eles no meio de nós…


José Teodoro Prata

sexta-feira, 27 de maio de 2016

No choco




O choco da minha cocó já faz segunda-feira duas semanas. Depois, só falta uma semana.
Pôs nove ovos e chocou logo!
O macho anda baralhado, algo triste, sem saber bem o que fazer. 
Passa o tempo a olhar para dentro do púcaro, a ver se ela reage, mas nada.
Há dias levou-lhe até ao bico uma folha de couve, de uma distância de cerca de um metro. 
É bom ter estes animais que ainda conservam os instintos naturais.

José Teodoro Prata

Nota: Há novos comentários, na publicação anterior.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Os nossos professores

Com a Reforma de Rodrigo da Fonseca de 7 de Setembro de 1835, Portugal foi um dos primeiros países europeus a instituir a escolaridade obrigatória. Apesar disso, e porque a legislação nunca foi cumprida, a escolarização das populações permaneceu muito baixa, comparativamente ao que se passava no resto da Europa. Em 1900 cerca de 66% dos homens e 82% das mulheres não sabia ler nem escrever. Esta situação, que se manteve quase inalterada até meados do século vinte, era ainda mais grave nas zonas rurais, como é o caso da nossa terra.
Há tempos, a propósito duma pesquisa que nada tinha a ver com este tema, chamou-me a atenção o facto de na maioria dos registos de batismo de meados do século XIX (1860) constar a assinatura do padrinho da criança (em 76 batizados, apenas 21 não assinaram). Quanto às madrinhas, o número é bem menor: nos 76 registos consta a assinatura de apenas cinco, sendo que, pelos nomes, seriam quase todas da mesma família e pertenceriam a famílias ilustres da terra: D. Antónia Henriqueta Almeida de Brito, Maria Margarida Almeida de Brito, Maria Augusta de Brito Coelho Faria, Ana Balbina de Brito e Teodora Rita Xavier.
Durante a mesma pesquisa deparei com o nome de Manuel Marques Leite, professor do ensino primário. Manuel Marques Leite era casado com Clara Augusta e eram ambos naturais de Castelo Branco. Terão vivido por cá alguns anos, pelo menos entre 1860 e 1867, primeiro na rua Velha onde lhes nasceram três filhos, e depois na rua das Lajes, onde tiveram outra criança. Os padrinhos deste último filho foram dois irmãos mais velhos dos quais não encontrei o registo de batismo, talvez porque não tivessem nascido em S. Vicente (já nessa altura os professores teriam vidas errantes…).
É pouco provável que este Manuel Marques Leite fosse o único professor na terra, porque, mesmo que a escola fosse apenas para os rapazes, havia tantos nessa altura que um professor seria insuficiente. De qualquer forma a situação piorou nos anos seguintes.
Em 1880, dos oitenta e nove registos de batismo, só seis continuavam a ter a assinatura da madrinha. Quanto aos padrinhos, a situação era bem pior que vinte anos antes: cinquenta e três não sabiam assinar.
Em 1900 a situação continuava pouco animadora, mas os números eram mais equilibrados entre homens e mulheres: dos 99 registos de batismo, apenas 23 tinham a assinatura das madrinhas e 33 a dos padrinhos.
Estes números não podem ser lidos de forma simplista, mas são um indicador importante do estado de iliteracia na nossa terra, naqueles tempos.
Não encontrei referência a mais professores, mas deve ter havido outros depois de Manuel Marques Leite. Entre o final do século dezanove e o princípio do século vinte o Padre José Antunes, para além de padre, foi também professor de muitos rapazes durante aquele período. Devia ser pessoa de cultura vasta porque parece que, para além de ensinar a ler e escrever, ensinava também outras disciplinas aos alunos. Morreu em 1940 e está sepultado no nosso cemitério.
Deve ter havido outros antes deles, mas muitos já nos lembramos do professor Couto e da mulher. Ele era professor dos rapazes e ela das raparigas. Sobre este período, moí o juízo a uma das minhas tias para me contar porque é que não tinha andado na escola. A explicação dela:
 «Sabes, isto d’agente querer aprender é uma coisa que já nasce connosco. A tua mãe era muito inteligente, que nunca foi à escola, mas sabia ajuntar as letras e assinar o nome. Eu ainda lá andei aquase um ano, mas era burra e não aprendi uma letra. A professora também não ajudava, que mal entrava na sala, assentava-se na cadeira, amouchava a cabeça em cima da mesa e começava a dormir. Não sei lá o que é que ela andava a fazer de noite… Mandava era a filha do doutor Alves, a mai velha, fazer uns riscos na pedra de cada uma e dizia para a gente copiarmos. Eu sabia lá agora fazer aqueles riscos! De modos que quando chegou a altura, fui mas é a regar e a sachar o milho e os feijões, que era aquilo que nos enchia a barriga, e nunca mais pus os pés na escola».
Depois destes, vieram as nossas professoras: a Dona Susana, a Dona Teresinha, a Dona Natália, a Dona Nazaré, a Dona Maria do Carmo, e outras que já não são do meu tempo, mas a quem, cada um de nós, deve um pouco do que é hoje.
Penso que neste exercício de memória seria injusto esquecer o Padre Branco. Para além de ser o responsável maior pela implementação da Telescola (um marco histórico na democratização do ensino em Portugal) na nossa terra, foi também um professor empenhado e competente para muitos dos alunos que a frequentaram. Incluo-me nesse número.


M. L. Ferreira

domingo, 22 de maio de 2016

Festa na Orada


As encostas da Gardunha estão pintadas de amarelo. 
A serra vestiu-se da cor das giestas para a festa da Senhora.



Os bombos VICENTINOS são um caso muito sério de sucesso!


Ia a escrever que a Senhora está de jaja nova, mas talvez não seja deste ano.
Em todo o caso, está linda!

 

O Rancho VICENTINO foi o sucesso do costume.
Um acumular de sabedoria e experiência.


As autoridades autárquicas, locais e concelhias, estiveram presentes
e inauguraram as instalações de apoio à ermida.
O nosso bem-haja!

Nota: Cheguei tarde e por isso não tenho imagens da parte religiosa. Agradeço a quem puder completar esta informação visual.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Andava o deus Pã apascentando seus rebanhos na campanha de Trans Serre, tocando com sua flauta mágica músicas campestres. Impulsivo, lascivo, sua cabeça cornuda, barbicha hirsuta e patas de bode percorria montes e vales. À medida que guardava o seu rebanho, cantava e tocava. O Eco imitava-o, ele ficava danado e continuava a tocar músicas simples do campo.
De vez em quando, corria em perseguição de uma ninfa ou pastora, pudera; lascivo e folgazão como ele era!
Algumas ninfas não iam na sua conversa, nem se deixavam cativar pelas músicas campestres.
Foi o caso da Siringe que se transformou numa cana por não ter cedido ao seu apetite sexual. Aproveitou-a e fez com ela uma flauta que o passou a acompanhar para todo o lado, desta maneira tinha sempre a sua amada nos lábios.
Certo dia, tendo-se afastado um pouco mais das pastagens habituais “embora andasse por todo o lado”, foi dar a uma pequena aldeia moura, teve sede, dirigiu-se à Fonte da Portela para se saciar.
Quando chegou, estava enchendo sua bilha uma linda moura; faces rosadas, olhos pretos brilhantes como o sol, sorriso arrebatador.
Lascivo, luxurioso como sempre foi, não se conteve e agarrou a linda moura. Ela esbracejou, gritou, por fim conseguiu libertar-se das manápulas de Pã e fugiu em direcção à sua cabana.
Com seus pés de cabra, Pã lançou-se numa correria desenfreada para apanhar a linda moça.
Já não estava muito longe de casa, mas, ao olhar para trás, não teve dúvida nenhuma, estava prestes a ser agarrada. Gritou com todas as forças, mas ninguém apareceu. A solução foi transformar-se numa cobra que por sua vez se metamorfoseou.
Desde essa altura a moura continua enfeitiçada, transformada numa pedra à espera que alguém a desencante.
Cuidado, ela é enganadora. Pela manhã mostra melhor a sua bocarra, nem todos os locais em seu redor servem para a admirar. É preciso saber escolher o sítio para que se deixe ver.
Quem sabe se numa manhã de São João algum príncipe afagando o penedo não a desencante!


J.M.S

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Mineiro, nome José

Era Maio. Seguíamos em grupo, meia centena de pessoas silenciosas e tristes. De vez em quando o cortejo detinha-se: subiam da vereda algumas preces encomendadas pelo cura. Nem um farrapo de nuvem no céu. Nem asa de vento a agitar o horizonte.

Nas terras lavradas, junto ao cemitério, comecei o ver as lavandeiras, saltando de leira em leira. Com elas vieram as rolas e uma que outra cotovia no pinhal em redor. Senti, então, como quem pode sentir distintamente, que o canto dos pássaros crescia para fazer coro, a última vez, com o teu assobio: como naqueles dias em que, na galeria da Mina, com o fôlego derradeiro dos teus pulmões cansados avisavas os companheiros da chegada do capataz.

«Não somos patrões, somos trabalhadores», respondias ao chefe, quando te repreendia por não impores a ordem dele aos companheiros de que te nomeara vigilante. O pico atirado longe, violentamente marcou a tua recusa definitiva, devolveu-te à condição de mineiro, simples mineiro, que sempre foste.

Mas tinhas razão. Não somos patrões, somos trabalhadores. E este livro pretende dizer-te que a voz dos patrões na Panasqueira é hoje menos arrogante. Quero também informar-te  - talvez as novas cheguem a esse mundo distorcidas - que um ano depois daquele Maio, Abril libertou a voz e o gesto dos teus companheiros na Mina.

Fiz com eles esta viagem. É para eles este livro e para ti também, mineiro José, atalhado pela silicose a meio do caminho, antes desse Abril nascer. Fossem estas páginas tão vivas como as papoilas, que juntos colhíamos nas estevas agrestes das nossas terras altas, e eu desfolhá-las-ia, uma a uma, sobre a campa lá em Bogas, mineiro meu pai.

Lisboa, Verão de 78.
DANIEL REIS

In A GUERRA DA MINA e os mineiros da Panasqueira, Daniel Reis e Fernando Paulouro Neves, Regra do Jogo, Edições, 1799

José Teodoro Prata

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Memórias da mina

Eram as maiores minas de volfrâmio de Portugal e diz que no tempo da Guerra eram aos milhares as almas que lá trabalhavam; que até pareciam formigas a entrar por aquelas bocas adentro, de dia e de noite. A maioria era das terras ali à roda, mas chegou a vir pessoal do Alentejo e até doutros sítios mais longe, que naquele tempo a penúria era igual por todo o lado. Da nossa terra também por lá passaram muitos, que aqui o trabalho também era pouco e as pagas nem davam para matar a fome aos filhos. Um homem a cavar de sol a sol não levava para casa mais que doze mil réis por dia; lá pagavam a vinte e cinco, coisa que só os melhores artistas cá ganhavam.
Este gasómetro, nas minas da Panasqueira, é o maior do mundo. Funciona como museu.

Que me lembre, naquela altura andava lá o Patanucho, o Taladinho, o Zé Nó, o Zé Tota e o irmão, o Luís Lérias, o homem da Emília Sardinheira e o da Maria do Carmo Reinoca, o Zé Rolo, o meu pai, e outros que agora não me alembro. Mas estavam sempre a mudar, que alguns aguentavam lá pouco, e os que ficavam mais tempo vinham de lá quase todos com os pulmões apanhados pela doença da mina e já nem porte tinham para pegar numa enxada ou ir a roçar um molho de mato. Acabavam os dias sentados à soleira da porta ou a arrastar-se nos bancos da Praça, à espera que a morte os levasse.
Mesmo assim, todos queriam para lá ir. Eu, ainda não tinha os dezoito anos feitos, também pedi ao meu pai para ver se me lá metiam, mas disseram-lhe logo que enquanto não tivesse idade não me aceitavam. Quando foi em primeiro metiam lá toda a gente; diz que até cachopitos abaixo dos dez anos lá andavam, mas no meu tempo já eram mais finos e, para trabalhar dentro da mina, só se podia entrar com os dezoito já feitos. De modos que não tive outro remédio senão esperar mais uns tempos, mas, mal fiz os anos, pedi logo à minha mãe que avultasse a merenda do meu pai porque, nessa semana, já ia com ele.
Abalei na segunda-feira, à sorte, com a saca da merenda às costas e um santinho da Santa Bárbara que a minha mãe me meteu no bolso. Assujeitava-me a ter que voltar para trás se não me dessem lá trabalho, mas não me importei. Saímos de madrugada e fomos a pé daqui até ao Castelejo, e lá é que apanhámos a carreira. Assim que chegámos à Panasqueira, o meu pai levou-me a falar com o capataz e quando que ele me disse que podia começar ainda nesse dia, até cresci um palmo. Já tinha passado por tanto, que julgava que dali para a frente é que ia ter uma vida regalada. Trabalhinho certo, à sombra, e a uma féria que era uma categoria.  
Mas estava mal enganado! O meu pai já me tinha avisado que aquilo era ruim, mas uma coisa é aquilo que nos dizem, outra é aquilo que a gente vê: um bafo que parecia que andávamos dentro dum forno, e às vezes até assovacavamos com tanta poeirada e o cheiro da pólvora. Mal entrávamos, ficávamos logo com a roupa colada ao corpo, e muitas vezes tínhamos que nos despir da cintura para cima, mas mesmo assim andávamos sempre lavados em suor; as calças sempre encharcadas e cheias de lama, porque a água era tanta que às vezes nos dava pelo meio da perna. Ainda por cima havia sítios em que a galeria nem a altura de um homem tinha e era preciso andarmos quase de rastos. Havia alturas que, de andarmos um dia inteiro sem ver a luz do sol, quando chegávamos cá fora mal podíamos abrir os olhos.

Gasómetro utilizado pelos mineiros. A parte de baixo era enchida com carboreto e a de cima com água. A mistura produzia o gás que alumiava o interior da mina. Cada mineiro tinha que comprar o seu próprio gasómetro e a empresa só fornecia o combustível.

Ao fim dum mês, já andava tão desacorçoado que me virei para o meu pai e disse-lhe que ia pedir para me fazerem as contas, que me vinha embora.
- Tu resolve lá como entenderes, mas não penses que se abalares torno a pedir para te cá meterem.
Aguentei-me até me chamarem para a tropa.
O serviço em si nem era muito duro e, se não fossem as condições, até se levava bem. Hoje em dia deve estar tudo demudado, mas naquele tempo andavam os marteleiros à frente a abrir os buracos para meterem a pólvora e rebentar com a rocha; ao outro dia, quando aquela poeirada toda abatia, iam os entevadores a ver se havia pedras soltas: batiam com um ferro comprido, chamávamos-lhe nós lá uma ponteirola, e consoante o barulho que fazia viam logo se as pedras estavam seguras ou não. Se estivessem em risco de abater, tinham que acabar das derrubar, não fosse algum calhau soltar-se e cair por cima d’alguém. Só depois de tudo bem escorado com barrotes é que íamos nós a apartar o minério da rocha. Aquele que estava limpo era logo metido em sacas e levado nas zorras para fora da mina; o mais sujo ia para um depósito e depois era levado nas correias para as lavarias para ser tratado e ensacado. Com o cascalho que ficava lá dentro, andavam outros a fazer parede ao comprido da galeria para a suster.
Todos os dias saíam dali carradas de minério. Diz que era pago a um conto de réis o quilo; a fortuna que ali havia! Por isso é que ali à roda era só guarda, uns à paisana, outros armados; até se constava que havia uns que eram da Pide. Não saía ninguém lá de dentro que não fosse revistado, que aquilo era uma tentação. Umas gramas que fossem, vendidas na candonga, já era uma grande ajuda ao fim do mês! Por isso alguns ainda arriscavam a trazer umas migalhas escondidas em sítios que nem lembravam ao diabo; mas, se calhava a serem apanhados, o menos que lhes podia acontecer era ficarem com o nome riscado a encarnado nas folhas de pessoal e nunca mais lá punham os pés. Por modos ainda houve alguns que até chegaram a ir parar à cadeia.

Máquina de arrasto. Servia para trazer as zorras do interior da mina. Chegava a trazer mais de vinte de cada vez.

Não foi no meu tempo, mas diz que uma vez houve dois ou três gabirus que se meteram dentro da mina disfarçados e, quando foi à saída, conseguiram desarmar os guardas que estavam a fazer a revista. Amarraram-nos a um pinheiro e levaram o carrego de uma zorra que vinha cheia lá de dentro. Fizeram aquilo tão bem feito que nunca foram apanhados nem se soube quem eles eram, mas havia quem dissesse que tinha sido tudo combinado. E não m’admira nada, que naquele tempo andava muita gente no contrabando do minério e encobriam-se uns aos outros.
Quando lá andei ainda era solteiro, mas vinha quase todas as semanas à terra pra ver a família e os amigos, e sempre se levava alguma coisa de comer. Não que tivéssemos precisão, que tínhamos lá cantina e tudo, mas o que ia de casa sempre estava mais certo. Ao princípio fazia o caminho metade a pé e a outra metade na camioneta da carreira; mas aos poucos fui ajuntando algum do dinheiro que o meu pai me dava ao fim da semana e comprei uma bicicleta em segunda mão. A partir daí já vinha o caminho todo a cavalo. De inverno era duro, mas no verão fazia-se bem. Ainda por cima éramos uns poucos e íamos parando pra matar a sede em cada terra por onde passávamos. Uma vez pagava um, outra vez pagava outro e quando cá chegávamos já vínhamos todos contentes. Mas uma vez, chovia se Deus a dava e já era noite de todo, um companheiro não viu a curva da estrada e foi a rebolar pelo aterro abaixo. Vimo-nos perdidos para o trazer pra cima e depois tivemos que ir a ver duma camioneta para o levar para o hospital, que ele não se calava com dores. Partiu três costelas e esteve pra cima dum mês sem poder trabalhar; mas não lhe serviu de emenda, que a gente quando é novo não tem juízo nem um.
Quando não vínhamos à terra passávamos o domingo no Clube a beber e a jogar matraquilhos e às cartas; outras vezes íamos a ver o jogo da bola entre os da Panasqueira e os da Barroca, mas aquilo acabava quase sempre à pancada entre os dum lado e os do outro. Era o nosso entretém, que, a não ser no verão, que faziam lá uma grande festa à Santa Bárbara, não tínhamos mais nada com que nos advertir.
Também lá havia muito homem já casado. Esses, se quisessem, podiam levar a família, que fizeram lá um grande bairro e davam-lhes casa, escola e abono para os filhos. Às vezes até lhes arranjavam um bocado de terra para fazerem a horta. Naquele tempo, por cá, mais ninguém tinha regalias daquelas. Não duravam era muito tempo, que ninguém aguentava muitos anos enterrado debaixo da terra como se fosse um bicho. Mas, ao menos enquanto lá andavam, tinham a certeza de não lhes faltar o pão em casa; que aquilo era o pão que o diabo amassou, porque muitos morriam cedo e deixavam a mulher e os filhos à míngua.  
Ao pé de mim nunca vi morrer ninguém, mas de vez em quando já se ouvia dizer que tinha ido mais um. Uma vez, já eu me tinha vindo embora há que tempos, chegou a notícia que tinha lá morrido o Jaquim Paulino. Era dos que andavam à frente com a ponteirola, mas daquela vez não deve ter medido bem o perigo e caiu-lhe uma pedra em cima. Diz que era cá uma filha da mãe que tiveram de a rebentar para tirar o homem debaixo dela. Cá na terra toda a gente teve muita pena porque era ainda novo e bom homem. Ainda por cima deixava a mulher viúva com três filhos pequenos nos braços.
Nesse dia jurei que, nem que morresse de fome, nunca mais para lá tornava. Se calhar foi o que me valeu, que, dos que lá andaram naquele tempo comigo, já sou o único que ainda cá está.


Depoimentos de uma das filhas de Joaquim Paulino:
«Quando o meu pai morreu tinha eu sete anos, mas era ainda muito acriançada, que a gente naquele tempo não era como agora, por isso nem tive consciência da desgraça que tinha acontecido. Lembro-me de vir para a terra numa camioneta cheia de gente. E eu toda contente, como se viéssemos para as Festas de Verão, que era a altura em que costumávamos vir à terra de camioneta da carreira. Quando chegámos ao Casal estava a estrada toda enfeitada com bandeiras e a aparelhagem a tocar. Fiquei ainda mais contente, como se a festa fosse também para nós. Ouvi depois dizer que era o dia da festa da Santa Bárbara.
Só comecei a tomar consciência do que tinha acontecido quando voltámos para casa, passados uns dias, e o meu pai nunca mais chegou; e a minha mãe toda vestida de luto pesado e com um lenço atado à cabeça; e na escola via as outras cachopitas apontarem para mim e para a minha irmã a dizerem que o nosso pai tinha morrido. A minha mãe teve que começar a andar por dia para nos dar de comer. Éramos três, todos a seguir uns aos outros e o meu irmão mais novo ainda só tinha três anos.
Isto foi nos princípios de maio, e tivemos que ficar nas Minas até junho, por causa da escola. Quando demos férias voltámos para a terra e a pouco e pouco a nossa vida foi-se recompondo, mas nunca mais foi a mesma coisa.
Uma vez a minha mãe contou-nos que foi o Padre Leal que fez um peditório junto dos mineiros para alugar a camioneta que trouxe o meu pai e as pessoas que quiseram vir ao enterro. Também contou que um dia foi ter com ele a perguntar quanto era do funeral; que naquela altura não tinha dinheiro, mas que lhe ia pagando a pouco e pouco. A resposta dele foi que não era nada; que comprasse comer para os filhos e não os deixasse passar fome. Diz que quando foi perguntar a mesma coisa ao senhor Vigário a resposta foi que se arranjasse como quisesse, mas que queria o dinheiro quanto antes, que também tinha precisão de se governar…».

Depoimento de uma das filhas de José Pereira:
«O meu pai já trabalhava nas Minas há algum tempo, mas depois começaram a dar casas aos trabalhadores para poderem levar as famílias, e nós também fomos para lá. Naquela altura já éramos cinco irmãos; eu era a mais nova, mas depois ainda lá nasceram mais três.
Deram-nos uma casa muito jeitosa, com três quartos grandes, uma sala e a cozinha. E tínhamos uma horta onde o meu pai, nas horas vagas, cultivava de tudo. Nunca passámos fome, graças a Deus.
Foi lá que fiz a escola. Tínhamos uma professora muito boa, que era a dona Otília. Depois das aulas levava-nos para casa dela para nos dar explicações. Eu gostava muito de fazer desenhos e uma vez ela apanhou-me distraída a copiar a cara do Salazar que estava pendurada ao lado do quadro e deu-me duas reguadas, mas foi a única vez que apanhei.
Naquele tempo estava lá o Padre Leal. Era uma jóia de pessoa, que ajudava muito toda a gente que precisava. Foi com ele que fiz a Primeira Comunhão.
No verão íamos de férias para a Nazaré pela Companhia. Ficávamos numa casa de Irmãs, perto do mar. Era muito bom! De manhã íamos à missa e depois abalávamos logo para a praia. Havia lá um banheiro que nos levava à água, duas a duas agarradas por um cinto, e fazia-nos dar três mergulhos. Depois apanhávamos um bocadinho de sol e brincávamos na areia, e íamos almoçar. A seguir à sesta tornávamos para a praia e levávamos uma merenda para lá comer. Era sempre um papo-seco com manteiga ou doce e uma peça de fruta. Eram vinte e dois dias tão bem passados que no terceiro ao em que para lá fui, como já sabia que não voltava, no último dia ajoelhei-me na areia a chorar.
Foram tempos maravilhosos, aqueles!»

Memórias da ti Felicidade:
«Naquele tempo ia muita gente de cá a trabalhar prás Minas e a mim também me pra lá levaram; tinha uns dezasseis ou dezassete anos. Fui pra casa da minha tia Luzia que morava no Rio. O meu serviço era coser as sacas do minério.
Lá onde eu andava, todos dias via passar um homem que ficava muito tempo parado a olhar pra mim. Até parecia que nunca tinha visto uma cachopa. Tantas vezes fez aquilo que comecei a ficar com medo, não quisesse ele fazer-me mal, e um dia contei-o à minha tia. Ela só me disse assim:
- Quando ele tornar a olhar para ti pergunta-lhe o que é que ele te quer.
E foi isso que eu fiz quando o tornei a ver:
- Olhe lá, vossemecê o que é que me quer? Nunca viu uma cachopa com uma agulha na mão?
Ele só me respondeu assim:
- O que é que eu quero? Gostava de falar pra si…
         - Ainda mai essa! Eu conheço-o lá dalgum lado pra falar pra si, assim sem mai nem menos!
- Olhe que é coisa séria! E quero casar quanto antes. Há de ser ainda este ano.
- E o que é que eu tenho a ver com isso? Case-se lá quando achar, mas comigo é que não há de ser!
A verdade é que ele veio cá à terra a falar com os meus pais. Não sei lá o que é que lhe disseram, que ele foi logo ao Fundão comprar um corte de fazenda pra me mandar fazer um fato de saia e casaco, e passado pouco tempo fez-se o casamento.
Ficámos a viver uns tempos na casa dos pais dele, num sítio que lhe chamavam lá a Parada. Ele continuou a trabalhar na mina e eu a coser sacas. Mas depois viéramos a morar cá pá terra até que ele abalou pá França.
            Foi um grande trabalhador e tratou-me sempre muito bem; lá isso tratou, graças a Deus. Que Deus o lá tenha em descanso!».

M. L. Ferreira

domingo, 15 de maio de 2016

Pintassilgos, melros...

Que sorte, viver na cidade e poder ter galinhas, mesmo que cocós! A mim, mesmo com um quintal grande, dizem-me que não as posso ter por causa dos vizinhos… Mas não me falta cá criação!
Esta primavera, apesar de pouco amiga das cerejas e da horta, não afetou os amores da passarada. Para além de dezenas de ninhos de melros, pardais e outras espécies que por aqui vivem, um casal de pintassilgos fez o ninho mesmo por baixo da varanda. Foi vê-los, numa fona, a fazer o ninho, a chocar os ovos e depois a acartar comida para os quatro comilões, sempre de bico escancarado.


Mas o pior era quando se apercebiam dos gatos por perto e piavam, aflitos, a avisar os filhotes do perigo. Fazia doer o coração, mas eles percebiam e faziam-se de mortos.
Hoje de manhã, quando me levantei, estranhei o silêncio e fui espreitar. Tinham abalado! Bem vi nos últimos dias os pais a esvoaçar diante do ninho, como que a ensiná-los a ganhar asas, mas gostava de ter assistido ao primeiro voo…

M. L. Ferreira

quinta-feira, 12 de maio de 2016

A mãe e o filho

Os nascimentos são porventura os nossos momentos de maior encantamento. Quando era criança, esses momentos mágicos não eram tanto os nascimentos das minhas irmãs, cheios de silêncios e segredos, mas os dos pintainhos, porquinhos e chibinhos, só os gatos não nos davam a liberdade de partilhar com eles o milagre da vida, eles lá sabiam porquê.
Como desisti de refazer a minha colónia de periquitos, lembrei-me das ninhadas de pintos que anualmente a minha mãe tirava das galinhas. A meio do choco, costumávamos ir de noite à loja, ver a galinha choca que estava num cesto com palha. Colocávamos cada ovo entre o nosso olho e a luz do candeeiro a petróleo, para ver se cada ovo estava escuro e por isso com um novo ser ou se continuava claro e não vingara. Tirávamos estes, para que os outros tivessem mais espaço para receber o calor da mãe galinha. Depois, no nascimento, ajudávamos os pintainhos a nascer, tirando pedacinhos da casca dos ovos que já estavam picados ou até parcialmente abertos. É que às vezes os pintainhos não conseguiam quebrar as cascas tão duras. Ou seria a nossa vontade de participar.
Decidi criar galináceos, pois a gaiola é suficientemente grande para isso. Mas não para galinhas, só cocós. A minha mãe tinha na Tapada um casal e pedi-lho emprestado, só para tirar uma ninhada. Ela disse-me que não eram dela, mas da São.
No dia em que os fui buscar, a minha mãe estava de molho, em casa. Ficámos a conversar.
Esta noite, como sabia que vinhas cá, fartei-me de pensar nos cocós. Quem mos deu foi a tia Maria José. Pedi-lhe para me vender a cocó, mas ela respondeu que “Quem levar a mãe, leva o filho.” E contou-me uma história com este dito.
Um dia, um homem encontrou uma galinha de ouro e a seguir o filho dela, também de ouro. Foi oferecê-los ao rei que morava em Monsanto. Ele ficou tão contente que disse ao homem que lhe pedisse o que ele quisesse, como paga. Então o homem indicou todos os campos que se avistavam do alto do monte e disse ao rei que queira todas aquelas terras e ele deu-lhas. O homem ficou a viver das rendas dos camponeses que trabalhavam nessas terras.
A tia Maria José deu-me o casal de cocós. Tiraram a primeira ninhada na altura em que a burra me partiu o nariz com um coice. Quando soube que ficava internada no hospital, mandei recado à tua irmã Fátima, para ir à Tapada buscar a cocó e os ovos, pois estavam quase para nascer. Depois dei um casal à tia Stela. E vê lá tu: nós acabámos com eles, mas os teus tios não. Por isso o João deu agora um casal à São. Ainda são dos mesmos que a tia Maria José me deu!
A minha casa anda num desassossego. O macho é imperial, de cores avermelhadas, com esporas nas patas que parecem dentes de javali! Canta todo o dia, sobretudo de manhã, e não sai de junto da fêmea, sempre que ela passa pela penosa tarefa de pôr o ovo quase diário. Ela é fraca ave, mas os ovos são enormes, parecem de galinha. Não os tiro do ninho, para lhe despertar o instinto da maternidade.
Muito me engano ou qualquer dia dou-vos notícias, e imagens, do choco e da ninhada de cocós pequeninos.


José Teodoro Prata

terça-feira, 10 de maio de 2016

Lugares aonde se torna - 9

Faltou-nos um projecto desafiante
Já conhecia ambas, a primeira, de ter ouvido falar; a segunda, de uma visita anterior. São sítios onde se vai aos livros, para ver e comprar. Como eu fiz. O Miguel Ferreira levou-me lá, a Hay-on-Wye, num sábado de manhã; a ida a Óbidos, num fim-de-semana, este Inverno, foi prenda da namorada.
Hay-on-Wye (na língua da terra o nome da localidade é muito mais complicado, mas aqui não vale a pena entrar em pormenores) é na fronteira entre o País de Gales e a Inglaterra. Chega-se lá de carro, atravessando campos de carneiros a pastar; também há cavalos. A vontade de empreender a viagem começara numa anterior estada na capital do Reino Unido, que incluiu deambulações pelos alfarrabistas de Charing Cross Road e a frequência de uma feira de profissionais livreiros na cave de um hotel, na Russel Square, ao lado do Museu Britânico. Ali comprei uma biografia de Dom João de Castro, em língua portuguesa, escrita por Jacinto Freire de Andrade, uma bonita edição in octavo da Typographia Rolandiana, 1786. Nunca tinha pago um valor tão alto por um livro, 75 libras, e durante algum tempo duvidei que tivesse feito uma boa compra; percebi que tinha feito bem quando li, bastante mais tarde Rubens Barbosa de Moraes: «nunca se arrependa por não ter comprado…». Enquanto me aliviava daquela verba, o livreiro ficou mais familiar – foi ele quem sugeriu que colocasse Hay na agenda: «a cidade dos livros, não conheces? Vem gente de todo o mundo, bibliófilos e curiosos. Tens de ir lá!»
Estava frio, na ida a Hay-on-Wye, alguma neblina; enquanto por lá andámos, uma cacimba desagradável estabilizou-nos a temperatura corporal em níveis para o baixo. Um tempo de excepção foi o que tivemos – bom tempo, quero dizer, que o mais comum, lá, é chuva a sério e mais frio. Os locais pareceram-me deslocados para tais geografias: nós perfeitamente ambientados, roupinha quente, um impermeável, eles de roupa ligeira, muitos em t-shirt de meia manga. Com aquelas temperaturas, em tais preparos?! Duvidei que cheguem a velhos.  
Esta história de Hay-on-Wye resultou do voluntarismo de Richard Booth, ao declarar a independência de Hay, proclamando-se rei do lugar, nomeando o seu cavalo como primeiro-ministro. Estava-se no “dia das mentiras”, 1 de Abril, em 1977, o ano da fundação do reino dos livros. A ideia de base parece ter sido a criação, a nível local, de uma indústria de turismo centrada no comércio do livro, que Sua Majestade projectava como remédio para a continuada decadência da localidade, atolada na inércia, e sem motores de desenvolvimento económico. O próprio rei Ricardo Coração de Livro (Richard Booth) abriu a sua primeira livraria em 1961, ainda lá está, em Hay. O livro em segunda mão é a alma de Hay-on-Wye, numa filosofia de que todo o livro é valioso e para cada livro existe um cliente. Ao todo, são uns 25 pequenos negócios de venda de livros, a que se juntaram mais recentemente lojas de outros tipos de artigos; uma velha fábrica, uma capela e mesmo o castelo são locais onde se vendem alfarrábios e outros manuseados, vulgaridades e raridades, a bons preços. Há-as especializadas (infantil/juvenil, viagens, comics, crime e mistério, etc.) e as generalistas; e também vendas ao ar livre, como vem nas fotografias do lugar. De todas, preferi a Addyman Annexe e a (não podia ser outra) Richard Booth, que se ufana de ser a maior loja, em todo o mundo, de livros em segunda mão. Trouxe de lá um Humours of History, verdadeiro manual de interpretação humorística de 160 episódios da História de Inglaterra – a colheita possível, que nas primeiras visitas, se me deslumbro, a compra me é sempre penosa, pelo muito que tenho de rejeitar. De todo o modo, um dia de papinho cheio.
A Óbidos era uso ir-se pela ginja, o passeio na muralha, a paisagem envolvente e para lhe percorrer as ruas; os mais afortunados ficavam de um dia para o outro. Há uns anos, conheço eu quem fosse lá ao Festival do Chocolate, passando meio dia a tentar estacionar, para sete minutos de degustação do santo cacau tratado com competência e imaginação – a quê mais podia aspirar um justo?
O homem dos livros em Óbidos foi – é – um senhor chamado José Pinho. Tinha fundado a Ler Devagar, um espaço livreiro que se dá a frequentar em Alcântara, numas antigas instalações industriais, que agora levam o nome de LX Factory. Em Óbidos, o projecto (já completo?) é de 12 livrarias, incluindo duas infantis. Querendo, pode-se conferir a filosofia do conceito, numa entrevista de Pinho, na revista Ler, de Setembro de 2013, e a sua aplicação, in loco, em Óbidos.
Desfrutei, especialmente, de três livrarias de Óbidos: primeira, a Santiago, instalada numa antiga igreja, desactivada, generalista, cheia de luz e de livros, um prodígio de design interior ao serviço da nova função, operada (a livraria de Óbidos) pela editora/livraria Letra Livre (conhecem, ali na calçada do Combro, um pouco abaixo da Liga dos Amigos de São Vicente da Beira, que ainda lá está, na Marechal Saldanha); segunda, a Livraria alfarrabista generalista da Adega, no Espaço Ó, à entrada da localidade, e, terceira, a Livraria do Mercado, aquela onde mais me demorei e enfeirei com critério, Urbano, Régio, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, coisas velhas, um de cada. Outra surpresa, da oferta estalajadeira da Vila Literária foi a estadia, pernoita incluída, literalmente no meio de livros – assim é, agora, o antigo convento (concluído, afinal, fora de tempo, em 1830, tempo de secularização, pelo que não chegou a receber religiosas), que virou hotel literário, as paredes forradas de estantes, livros nos espaços de estar, de comer, de dormir. Também vendem livros – foi de lá que a namorada trouxe uma velha edição inglesa de Mulherzinhas, da avó Louisa May Alcott.
Tivessem Booth ou Pinho, num momento de alucinação, agulhado para a N352 e a vila dos livros nacional podia ter nascido ao quilómetro 16 da estrada que liga Castelejo a Escalos de Baixo! Que nós (quero dizer, na nossa modesta apreciação) para fazer uma coisa assim, em São Vicente, nem precisávamos de gente que tal; era querermos! Mas, aí, só se o projecto valesse a pena – tivesse alguma vez havido um projecto desse género, à altura das nossas ambições, e haviam de ver, minha gente, uma verdadeira vila dos livros, a sério e em grande! Com a enorme vantagem, na versão indígena, de não termos de aturar o mau feitio do José Pinho, nem, cruzes!, de ser governados pelo cavalo do galês. Valeu-nos a Providência, como sempre.


Sebastião Baldaque

domingo, 8 de maio de 2016

As casas

As casas, os castelos, os palácios têm alma, guardam histórias, alegrias, tristezas, emoções de quem as habita ou habitou, são sacras as casas.
Verdadeiros alfobres, sejam ricas ou pobres, são beléns, ninhos de amor; carnal, filial, locais de união familiar, recordações que nos trazem à memória a nossa meninice, nossos pais e avós.
Todas as casas são lugares sagrados, refúgio para os seus.
Quando terminam o ciclo de darem guarida aos legítimos proprietários, outros as deviam utilizar:- associações de carácter lúdico ou social.
Preferível será “vende-las ou cede-las” a quem delas cuide e mantenha que deixá-las apodrecer, cair. Porque não as autarquias criarem mecanismos que incentivem à recuperação das casas degradadas através de regulamentação, apoiando no material: “areias, cimentos, tintas”…
As casas têm alma, fazem parte da paisagem urbana ou rural onde se situam, representam uma determinada época mais ou menos longa, se as pedras falassem, quantas confidências, quantas histórias, aventuras, não contariam as casas.
Cada vez que deixamos cair uma, o lugar fica amputado, pode nascer outra mais moderna, funcional, mas a história da anterior caiu com ela. É um ciclo novo que nasce, a alma daquelas pedras sagradas no momento da demolição desapareceu.
Há por aí tanta gente a necessitar de uma habitação condigna, vivem nas ruas, em casebres, sem qualquer conforto, sujeitos às intempéries.
Antes de caírem, reconstruam-se, mantendo a fachada original, depois; aluguem-se por um preço justo. É preferível, que abandoná-las como quem abandona um animal.
As casas têm alma, ao olharmos para elas imediatamente nos vem à memória pessoas da nossa geração que nelas habitaram, nossos pais e avós contavam-nos também nomes de vizinhos que nunca vimos mas ficámos a saber que para além dos Antónios, Josés, Marias… nossos e nossas contemporâneas outras e outros as habitaram.
Nesta existiu um sapateiro; naquela, um latoeiro; mais acima um barbeiro; naquele portão vendia-se vinho a copo, era uma taberna; um pouco mais abaixo nos baixios de um solar havia grandes tonéis onde os taberneiros se abasteciam, era uma adega; na mesma rua, comerciantes mercadejavam toda a espécie de mercadoria…
As casas têm alma enquanto estão de pé, quando caem; adeus.
Não são gente, mas deram e continuam a dar guarida às pessoas, a ser a pátria de cada um de nós; por isso e por cada casa que desaparece do mapa digo:
- Réquiem.

J.M.S.

Fotos de José Teodoro Prata