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domingo, 8 de abril de 2018

Tira água à burra



A burra é um dos engenhos mais antigos e mais simples de tirar água dos poços.
Ainda não há muitos anos, havia muitas por todo o lado, principalmente se houvesse uma horta para regar. Atualmente ainda se vêem algumas, mas a maior parte já é pouco utilizada.
Eram de fácil construção: bastavam duas varas cujo comprimento variava de acordo com a fundura do poço, unidas uma à outra de forma a poderem articular-se. Uma delas era apoiada num poste de madeira que terminava em V (na da fotografia, o poste de madeira foi substituído por um de granito), e na ponta da qual, rente ao chão, era presa uma pedra que servia de contrapeso. Na ponta da outra vara pendurava-se um caldeiro que se fazia descer dentro do poço, até à água, puxando a vara para baixo com as duas mãos. Fazia-se depois o movimento contrário e despejava-se a água do caldeiro num tanque ou diretamente na regueira.  
Este trabalho, aparentemente simples, era feito muitas vezes por mulheres e até por crianças. Fi-lo algumas vezes, e gostava. O pior era quando a água era muita e as costas começavam a doer. Mas nem me queixava porque sabia que a resposta era sempre a mesma: «Ainda bem que há muita aguinha, filha, que sem ela havia de haver muita fome no mundo!».

M. L. Ferreira

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A Matilha dos Nove

«Minério na Paradanta? Ná… Por modos passou por lá muito, que no tempo da guerra havia muita candonga e contam-se algumas histórias. Esta foi logo no ano a seguir a eu ter saído da escola; vai lá um bom par d’anos. Já andava na resina e um dia cheguei a casa, já noite, e era um reboliço tão grande na terra que só visto: tinha vindo a Guarda e levado nove homens, todos algemados, para Castelo Branco. Só depois é que se soube o que tinha sucedido:
Na véspera, à tardinha, tinham chegado à entrada da Paradanta quatro homens, cada um com sua saca às costas. Chegaram lá a um certo sítio, apousaram as sacas e esconderam-nas debaixo dum aqueduto, tapadas com mato. Lá terão feito as contas e dois dos homens abalaram pelo mesmo caminho d’onde tinham vindo, os outros dois ficaram assentados ali ao pé, a fumar um cigarro. Passado um bocado também se meteram ao caminho, p’ros lados do Vale D’Urso. Por modos foram a comer a uma casa de pasto que por lá havia naquele tempo.    
Tiveram azar porque uma mulher que morava numa casa lá mais adiante tinha visto chegar aqueles estranhos e ficou à espreita, desconfiada, a ver o que é que eles faziam. Quando os viu abalar saiu porta fora e foi ver o que é que as sacas tinham. Assim que viu como é que elas estavam cosidas e o peso que tinham, desconfiou logo do que é que se tratava. Ainda quis pegar numa, mas não foi capaz de poder com ela. Foi então chamar um dos filhos que já tinha vindo da escola, e os dois lá conseguiram carregar uma das sacas até casa.
Puseram-se a fazer contas: não seriam menos de 50 quilos de minério, a um conto de réis cada um, dava cinquenta contos. Estavam ricos!
O cachopito ficou tão contente que, apesar da mãe lhe ter dito que não dissesse nada a ninguém, foi para a rua e contou logo ao primeiro que encontrou, o achado que tinham feito. E que no mesmo lugar ainda lá tinham ficado mais três sacas.
A notícia chegou depressa aos ouvidos do taberneiro que esfregou as mãos de contente e, juntamente com mais oito que àquela hora estavam a fazer sociedade na taberna, foram logo a correr para o sítio onde diziam que estavam as sacas.
Quando lá chegaram já lá estavam os outros dois homens, sentados à entrada do viaduto, ao pé da mercadoria. O taberneiro pegou na arma que trazia à cintura, deu dois tiros para o ar e berrou:
- Mãos ao ar e ala daqui p’ra fora!
Os outros nem se mexeram.
- Mas que mal é que tem estarmos aqui um pouco a descansar? Os caminhos não são públicos?
- Já disse o que tinha a dizer! Os primeiros foram p’ro ar, mas os próximos vão-vos direitos aos cornos!
Ao ouvirem isto, os dois homens levantaram-se e desataram a fugir estrada fora. Só devem ter parado já longe dali.
Por modos eram do Juncal, e eram contrabandistas de minério, mas deviam ter as costas bem quentes que ao outro dia apareceram na Paradanta uns poucos de guardas da GNR e, quem foi, quem não foi, conseguiram levar para Castelo Branco a matilha completa.
Passaram a noite nos calaboiços da prisão à espera de serem levados ao juiz no dia a seguir. Mas o taberneiro que é quem tinha sido o cabecilha daquilo, durante a noite começou com falinhas mansas para os outros: que podiam dizer ao juiz que ele não tinha tido culpa nenhuma; que só tinha ido apartar porque senão armava-se ali uma grande zaragata; que uma pessoa da categoria dele era uma vergonha se fosse presa e ficava com a vida desgraçada para sempre; e mais isto, e mais aquilo…
- Então vossemecê é que nos meteu nesta alhada toda e é que deu os tiros, e agora quer pôr-se de fora?! Não senhora; ou vamos todos p´ra cadeia ou não vai nem um!
- Se me safarem, prometo que dou um conto de réis a cada um de vós.
Olharam uns para os outros e concordaram.
- Assim é que é falar! Esteja descansado que a gente faz como vossemecê diz.
Naquele tempo um conto de reis era muito dinheiro, que um homem por dia não ganhava mais que sete e quinhentos; e não eram todos…
Foi solto o taberneiro e os outros ficaram presos durante um mês. Quando saíram vinham todos contentes e foram logo a ver se recebiam a paga pela mentira que tinham dito ao juiz, mas o outro negou-se. E que remédio tiveram senão calar-se, com medo, que ele era o Cabo d’Ordens e se os tomava de ponta, estavam desgraçados…
Ficaram conhecidos pela “Matilha dos Nove” para o resto da vida. E o Cabo d’Ordens não escapou da fama, mas nunca se provou…».

Nota: Esta história foi-me contada pelo Ti Chico quando, a propósito da história “As Mulheres da Paradanta” do Joaquim Bispo, lhe perguntei se era verdade que havia volfrâmio na terra dele. 

M. L. Ferreira

domingo, 23 de julho de 2017

O lobisomem da Partida

Bem a avisaram que não casasse com ele, que havia ali coisa do diabo. Mas, já diziam os antigos, o amor é cego e ela não acreditava numa palavra do que ouvia. Onde lhe punham defeitos, ela só via qualidades: bom rapaz, trabalhador, não faltava ao respeito a ninguém. Ainda por cima bem parecido e com alguma coisa de seu. E casaram.

Apesar de não lhe terem agoirado nada de bom, era feliz e achava-se uma mulher com sorte. Cumpridor de todos os deveres conjugais assumidos no dia do casamento, o homem estimava-a, enchia-lhe a casa de tudo quanto era bom que trazia da horta e depressa a encheu também de filhos. Que mais podia ela querer?

Às vezes ainda se ria das más-línguas que lhe quiseram estragar o namoro e, mesmo já depois de casada, continuavam a encher-lhe a cabeça com patranhas: que era ele, transformado em lobo, que atacava os homens e animais que apareciam mordidos ou mortos em certos dias da semana; ou então, feito cavalo, andava por lá à solta em noites de lua cheia, atormentando quem se demorava nas hortas ou tinha que madrugar. Mas ela não dava ouvidos a ninguém, que havia muita gente assim, sem escrúpulos, capaz de dar cabo duma casa por tudo e por nada. Tudo invejas!

Nem mesmo quando ele se lhe escapava da cama, julgando-a a dormir, e voltava de madrugada, tão cansado que ela lhe ouvia o bater do coração, desconfiava de nada. Ficava numa inquietação, mas encontrava sempre uma explicação para aquelas saídas noturnas: ou era a presa que tinha que ser despejada; alguma vaca que estaria para parir ou uma encomenda de lenha de última hora. Confiava nele e não fazia perguntas. Já lhe bondava a lida da casa e os filhos, sempre tão asseados que era um regalo olhar para eles.

Uma vez, era inverno, e até parece que tinha parido a galega no forno da Barroca. Não que nos outros dias a forneira tivesse uma hora de descanso, que naquele tempo as casas estavam cheias de filhos e às vezes um tabuleiro de pão por semana não chegava para acalmar a fome a tanta boca. Mas naquele dia foi uma coisa por demais. De tal maneira que a vez dela ficou para tão tarde que já era noite alta quando o pão lhe saiu do forno e pôde voltar para casa. O que vale é que a lua estava tão grande que alumiava como se fosse dia.

Começou a subir a rua, com o tabuleiro à cabeça, e nisto ouviu um barulho que até parecia um tremor de terra; primeiro ao longe, depois cada vez mais perto, até que sentiu que estava mesmo encostadinho a ela. Só teve tempo de se atirar para a valeta para não ser levada à frente do que quer que aquilo fosse. Viu então que era um cavalo enorme que abrandou junto a ela, lhe abocanhou um bocado do xaile e continuou a galopar rua fora.

Um pouco mais acima era a casa de um dos cunhados, irmão do homem. Também deve ter ouvido o galope do cavalo e, mais que sabia ele do que se tratava, saiu da cama a correr e galgou as escadas até à loja das vacas que era mesmo por baixo da casa. Pegou no agulhão e espetou com ele no lombo do cavalo que se transformou logo ali no homem que era.

Quando a mulher chegou a casa, toda a tremer, encontrou o homem sentado ao cimo das escadas, a arfar, e ainda a tirar restos das franjas do xaile da boca. Nem quis crer no que os olhos dela estavam a ver, mas foi aí que o homem lhe confessou o mal que o atormentava desde novo e que tinha sido a ferroada do agulhão que o tinha feito perder a perneta.

M. L. Ferreira

terça-feira, 6 de junho de 2017

Histórias do meu pai

Quando o meu pai era pequeno o meu avô trabalhava na casa de uma das famílias mais ricas cá da terra e por isso era onde a professora ficava hospedada. Nessa altura o meu pai ainda não tinha idade para entrar para a escola, mas a mãe foi pedir à filha do patrão que falasse à professora a ver se o deixava entrar, só para o tirar da rua. A professora disse que sim, que podia ir, mas que levasse um banquinho de casa, que não tinha onde o sentar. E assim foi. Arranjaram um banco e o menino passava o dia sentado ao lado da secretária da professora, com a pedra no colo, e lá ia fazendo uns riscos com o ponteiro, a imitar as letras e os números que a professora fazia no quadro para os outros copiarem.
Mas aquilo era um inferno para o cachopinho, avesado a andar a correr pelas ruas ou a apanhar peixes na ribeira. Sempre que ouvia os chocalhos dos rebanhos a passar no caminho, ao pé da escola, e os pastores atrás, a assobiar, ficava numa tristeza tão grande que só visto. Mas ficava calado e assobiava baixinho, só para ele, a sonhar com o dia em que também pudesse ter um rebanho de cabras e andar por lá o dia todo com elas. Uma vez chegou a casa a chorar e voltou-se para a mãe:
            - Também não sei porque é que eu nasci tão desgraçadinho e os outros cachopos são tão felizes!
            - Porque é que dizes uma coisa dessas, filho?
            - Então não vejo os outros atrás das cabras, e eu ali o dia todo, assentado num banco a olhar p’ó cu da professora?

Mal fez o exame da 4ª classe começou logo a trabalhar como os da idade dele: à frente das vacas, atrás das cabras, a colher azeitona ou aos molhos de mato e de lenha. Era o que havia para fazer, e às vezes nem havia domingos nem dias santos. Havia alturas que já andava tão farto daquela vida que até sentia saudades dos tempos que passou sentado no banquinho ao lado da professora. Um dia, ainda bem cedo, chegou a casa todo derreado debaixo de um molho de mato que tinha ido roçar lá para uma lonjura que só visto. Antes de o traçar e fazer a cama ao porco foi beber o café, que ainda estava em jejum. Nisto, a mãe ouve-o a lamuriar-se:
            - Sou um desgraçadinho! Os meus primos ceguinhos é que são felizes, que nem têm que ir ao mato nem à lenha. Quem me dera ser com’ a eles!
A mãe nem queria crer no que estava a ouvir:
- Benza-te Deus, filho! Tu nem digas ma coisa dessas que o Nosso Senhor ainda te castiga!
- Digo pois, que s’ eu fosse ceguinho com’ a eles ainda estava na cama a estas horas…

Sempre gostou muito de cagarrapos. O dia em que enchiam as farinheiras, por alturas da matação, era uma festa. À ceia eram sempre dois ou três, ainda quentinhos, com um naco de pão por cima da sopa.
Uma vez, quando se levantou da cama, no dia a seguir, foi a correr chamar a mãe:
 - Eh mãe, venha cá aqui à cozinha, que está uma farinheira caída no meio do chão!
 - Deixa lá! É da maneira que já temos conduto p’rá noite!
O pior é que, durante quase uma semana, todas a manhãs aparecia uma farinheira caída por baixo do fumeiro.
- Rais parta o diabo, qu’inté parece que m’ imbruxaram as farinheiras! - Lamentava-se já a mãe.
- Anda pr’aí mistério; ai anda, anda… - Respondia o filho, ansioso que chegasse a ceia.
Mas um dia a mãe, estranhando que se andasse a levantar da cama primeiro que todos, foi espreitá-lo e descobriu que era ele que andava a afrouxar os nós das baraças das farinheiras.  


Um ano, já era pastor sozinho, começaram a usar-se as camisas de meia manga. Havia cá na terra uns rapazes do ano dele que tinham uma tia em Lisboa e que, pela festa do Santiago, trouxe uma dessas camisas da moda para cada um deles.
            No dia da festa, quando viu os amigos com as camisas novas, não tirava os olhos delas, de tão lindas que as achava. À noite moeu o juízo à mãe:  
            - Sou um desgraçadinho que nem tenho uma camisa de manga curta, com’os outros cachopos! Corte-me lá as mangas a esta aqui.
            - Tu vê se tomas tino e não m’atentes o juízo! E depois no inverno, com’ é que fazes? Apegas outra vez as mangas à camisa?
            Calou-se. Quando foi ao outro dia, que saiu com as cabras, levou um podão bem afiado e, mal chegou lá a um certo sítio, despiu a camisa, pôs as mangas em cima dum cepo e cortou-as pelo meio. Passou o dia numa ânsia, a ver quando é que o Sol descia para arrecadar o gado na corte. Mal entrou em casa e a mãe encarou com ele, ia caindo o Carmo e a Trindade; mas ele, bem ralado! Engoliu a ceia à pressa e saiu porta fora com as mãos nos bolsos, a assobiar, todo inchado, para que todos lhe pudessem ver bem a camisa de manga curta.

Era assim, o meu pai! E o que a gente se divertia a ouvi-lo contar estas histórias à roda do lume…

M. L. Ferreira

terça-feira, 4 de abril de 2017

O tesouro da Partida

Há muitos anos vivia na Partida uma família a que chamavam “As Mari’ Joanas”. Eram duas irmãs solteiras que viviam com o pai, e já naquele tempo eram consideradas das pessoas mais abastadas da terra.
Um dia, já rente à noite, bateram-lhes à porta. Estranharam a hora, mas foram assomar à janela e viram dois homens, cada um com sua mula pela mão, que disseram ser almocreves. Pediram que lhes dessem alguma coisa que cear e os deixassem dormir por uma noite, que vinham com fome e cansados do muito caminho que tinham andado. E que não tivessem medo, que tinham com que pagar o comer e a dormida.
Fazendo justiça à fama da hospitalidade das gentes da terra, as duas irmãs prepararam logo ali num instante uma bela sopa de couves temperada com um bom naco de presunto. Os viajantes comeram-na tão sôfregos e calados que até parecia que não comiam há uma semana. Entretanto foram fazer as camas com os melhores lençóis de linho que havia na casa.
Depois de comerem, os viajantes levantaram-se da mesa e disseram que queriam fazer contas. O dono da casa bem disse que não senhor, que as contas se faziam de manhã, e que ficassem mais um pouco para dois dedos de conversa e a reza do terço. Disseram que não, que tinham que abalar de manhã cedo, antes do nascer do Sol, mas antes agradeciam muito que lhes indicassem para que lados era um sítio, ali nas redondezas, que dava pelo nome de Porto, e qual era o melhor caminho para lá chegarem.
O dono da casa achou estranha a pressa dos dois homens em abalar, mas desconfiou ainda mais da curiosidade deles em saberem onde era o tal lugar. Não pregou olho em toda a noite, a pensar no caso e à escuta de qualquer barulho, não fossem eles abalar sem ele dar conta. Já agora não queria perder a partida de tão estranhos hóspedes e ver se tirava a limpo as intenções que os trazia a vaguear por aquelas bandas.
Ainda o dia vinha longe, sentiu o ranger das tábuas. Deviam ser eles a levantarem-se, e ficou à escuta. Mal ouviu a porta da rua a ranger, pôs-se a pé e foi espreitar. Viu-os a descer a rua, cada um montado na sua mula. Nem se preocupou de estar em camisa de dormir e barrete na cabeça; enfiou só as botas nos pés e foi atrás deles. Quando chegaram lá ao sítio, viu-os parar e pôs-se à espreita, um pouco mais longe, a ver o que é que eles faziam. Nem queria acreditar quando os viu a encherem umas sacas e a carregarem uma das mulas com elas. Aproximou-se mais e viu que eram moedas de ouro o que estavam a ensacar. Assim que o viram, os dois homens voltaram-se para ele, zangados:
            - Se não tivéssemos comido ontem à sua mesa e dormido nos seus lençóis, era hoje aqui o fim da sua vida. Mas, assim sendo, nós já cá levamos o nosso quinhão; ainda aí fica esse pote, acabe vossemecê de o rapar.
O homem não perdeu tempo e, tão depressa quanto pôde, apanhou as moedas que restavam no fundo do pote e encheu o barrete com elas. Correu depois para casa o mais depressa que as pernas deixaram, não fosse alguém dar por ele, e foi contar às filhas o sucedido.
Se já eram abastadas, as Mari’Joanas ficaram ainda mais ricas. Quando morreram, como eram solteiras e nem sobrinhos tinham, quem herdou tudo foram os primos Fernandes. Vem desses tempos a fama, e só eles sabem se o proveito, de serem das famílias mais ricas da terra.


M. L. Ferreira

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Cantos de cegos

Vinham quase sempre pelas festas, feiras e romarias, mas também apareciam muitas vezes aos domingos, depois da missa. Um de chapéu estendido à generosidade do povo; o outro, ceguinho, a tocar e a cantar. E era uma animação, com a Praça ainda mais cheia a escutar aquelas cantigas que falavam de amores e desamores, traições, infidelidades e tantas outras situações costumeiras daqueles tempos. Eram muitas vezes relatos violentos que acabavam quase sempre com a morte de um, senão dos dois protagonistas da história.
Um dia compraram-me um folheto que falava de um rapaz que, por ciúmes, matou a namorada e foi preso. Já só me lembro do final:
                  
Ó Laurida, ó Laurinda
Ó Laurinda dum ladrão,
Se não fosses tão bonita
Não estava eu na prisão.

Naquele tempo, ainda uma criança, achava que o amor era assim, capaz de matar ou de querer morrer por alguém, qual Romeu e Julieta. E sonhava que era eu a heroína daquela história…

Há dias, estive no concerto de apresentação do disco “Cantos de cego da Galiza e Portugal” de Ariel Ninas e César Prata. Partilho a letra duma cantiga que acho das mais bonitas, mas também das mais “levezinhas”:

Florinda, vem à janela
Que eu quero falar contigo,
Se tu não vens à janela
Dou um tiro no ouvido.

Dou um tiro no ouvido
Dou um tiro no coração,
Ó minha mãe venha ver
O Mário morto no chão.

Que fizeste tu Florinda
Para se o Mário matar?
Eu pedi-lhe as minhas cartas
Para o namoro acabar.

No dia do funeral
Tudo foi a acompanhar,
Só a mãe da Florindinha
Ficou em casa a chorar.

Tira o luto, ó Florinda,
Que o luto não te diz bem,
Se quisesses bem ao Mário
Matavas-te a ti também.

Da janela do meu quarto
Vejo a pedra ensanguentada
Onde o Mário se matou
Por causa da namorada.

Da janela do meu quarto
Vejo as portas do cemitério
Onde o Mário está dormindo
O seu soninho eterno.


M. L. Ferreira

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Os nossos professores

Com a Reforma de Rodrigo da Fonseca de 7 de Setembro de 1835, Portugal foi um dos primeiros países europeus a instituir a escolaridade obrigatória. Apesar disso, e porque a legislação nunca foi cumprida, a escolarização das populações permaneceu muito baixa, comparativamente ao que se passava no resto da Europa. Em 1900 cerca de 66% dos homens e 82% das mulheres não sabia ler nem escrever. Esta situação, que se manteve quase inalterada até meados do século vinte, era ainda mais grave nas zonas rurais, como é o caso da nossa terra.
Há tempos, a propósito duma pesquisa que nada tinha a ver com este tema, chamou-me a atenção o facto de na maioria dos registos de batismo de meados do século XIX (1860) constar a assinatura do padrinho da criança (em 76 batizados, apenas 21 não assinaram). Quanto às madrinhas, o número é bem menor: nos 76 registos consta a assinatura de apenas cinco, sendo que, pelos nomes, seriam quase todas da mesma família e pertenceriam a famílias ilustres da terra: D. Antónia Henriqueta Almeida de Brito, Maria Margarida Almeida de Brito, Maria Augusta de Brito Coelho Faria, Ana Balbina de Brito e Teodora Rita Xavier.
Durante a mesma pesquisa deparei com o nome de Manuel Marques Leite, professor do ensino primário. Manuel Marques Leite era casado com Clara Augusta e eram ambos naturais de Castelo Branco. Terão vivido por cá alguns anos, pelo menos entre 1860 e 1867, primeiro na rua Velha onde lhes nasceram três filhos, e depois na rua das Lajes, onde tiveram outra criança. Os padrinhos deste último filho foram dois irmãos mais velhos dos quais não encontrei o registo de batismo, talvez porque não tivessem nascido em S. Vicente (já nessa altura os professores teriam vidas errantes…).
É pouco provável que este Manuel Marques Leite fosse o único professor na terra, porque, mesmo que a escola fosse apenas para os rapazes, havia tantos nessa altura que um professor seria insuficiente. De qualquer forma a situação piorou nos anos seguintes.
Em 1880, dos oitenta e nove registos de batismo, só seis continuavam a ter a assinatura da madrinha. Quanto aos padrinhos, a situação era bem pior que vinte anos antes: cinquenta e três não sabiam assinar.
Em 1900 a situação continuava pouco animadora, mas os números eram mais equilibrados entre homens e mulheres: dos 99 registos de batismo, apenas 23 tinham a assinatura das madrinhas e 33 a dos padrinhos.
Estes números não podem ser lidos de forma simplista, mas são um indicador importante do estado de iliteracia na nossa terra, naqueles tempos.
Não encontrei referência a mais professores, mas deve ter havido outros depois de Manuel Marques Leite. Entre o final do século dezanove e o princípio do século vinte o Padre José Antunes, para além de padre, foi também professor de muitos rapazes durante aquele período. Devia ser pessoa de cultura vasta porque parece que, para além de ensinar a ler e escrever, ensinava também outras disciplinas aos alunos. Morreu em 1940 e está sepultado no nosso cemitério.
Deve ter havido outros antes deles, mas muitos já nos lembramos do professor Couto e da mulher. Ele era professor dos rapazes e ela das raparigas. Sobre este período, moí o juízo a uma das minhas tias para me contar porque é que não tinha andado na escola. A explicação dela:
 «Sabes, isto d’agente querer aprender é uma coisa que já nasce connosco. A tua mãe era muito inteligente, que nunca foi à escola, mas sabia ajuntar as letras e assinar o nome. Eu ainda lá andei aquase um ano, mas era burra e não aprendi uma letra. A professora também não ajudava, que mal entrava na sala, assentava-se na cadeira, amouchava a cabeça em cima da mesa e começava a dormir. Não sei lá o que é que ela andava a fazer de noite… Mandava era a filha do doutor Alves, a mai velha, fazer uns riscos na pedra de cada uma e dizia para a gente copiarmos. Eu sabia lá agora fazer aqueles riscos! De modos que quando chegou a altura, fui mas é a regar e a sachar o milho e os feijões, que era aquilo que nos enchia a barriga, e nunca mais pus os pés na escola».
Depois destes, vieram as nossas professoras: a Dona Susana, a Dona Teresinha, a Dona Natália, a Dona Nazaré, a Dona Maria do Carmo, e outras que já não são do meu tempo, mas a quem, cada um de nós, deve um pouco do que é hoje.
Penso que neste exercício de memória seria injusto esquecer o Padre Branco. Para além de ser o responsável maior pela implementação da Telescola (um marco histórico na democratização do ensino em Portugal) na nossa terra, foi também um professor empenhado e competente para muitos dos alunos que a frequentaram. Incluo-me nesse número.


M. L. Ferreira

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Memórias da mina

Eram as maiores minas de volfrâmio de Portugal e diz que no tempo da Guerra eram aos milhares as almas que lá trabalhavam; que até pareciam formigas a entrar por aquelas bocas adentro, de dia e de noite. A maioria era das terras ali à roda, mas chegou a vir pessoal do Alentejo e até doutros sítios mais longe, que naquele tempo a penúria era igual por todo o lado. Da nossa terra também por lá passaram muitos, que aqui o trabalho também era pouco e as pagas nem davam para matar a fome aos filhos. Um homem a cavar de sol a sol não levava para casa mais que doze mil réis por dia; lá pagavam a vinte e cinco, coisa que só os melhores artistas cá ganhavam.
Este gasómetro, nas minas da Panasqueira, é o maior do mundo. Funciona como museu.

Que me lembre, naquela altura andava lá o Patanucho, o Taladinho, o Zé Nó, o Zé Tota e o irmão, o Luís Lérias, o homem da Emília Sardinheira e o da Maria do Carmo Reinoca, o Zé Rolo, o meu pai, e outros que agora não me alembro. Mas estavam sempre a mudar, que alguns aguentavam lá pouco, e os que ficavam mais tempo vinham de lá quase todos com os pulmões apanhados pela doença da mina e já nem porte tinham para pegar numa enxada ou ir a roçar um molho de mato. Acabavam os dias sentados à soleira da porta ou a arrastar-se nos bancos da Praça, à espera que a morte os levasse.
Mesmo assim, todos queriam para lá ir. Eu, ainda não tinha os dezoito anos feitos, também pedi ao meu pai para ver se me lá metiam, mas disseram-lhe logo que enquanto não tivesse idade não me aceitavam. Quando foi em primeiro metiam lá toda a gente; diz que até cachopitos abaixo dos dez anos lá andavam, mas no meu tempo já eram mais finos e, para trabalhar dentro da mina, só se podia entrar com os dezoito já feitos. De modos que não tive outro remédio senão esperar mais uns tempos, mas, mal fiz os anos, pedi logo à minha mãe que avultasse a merenda do meu pai porque, nessa semana, já ia com ele.
Abalei na segunda-feira, à sorte, com a saca da merenda às costas e um santinho da Santa Bárbara que a minha mãe me meteu no bolso. Assujeitava-me a ter que voltar para trás se não me dessem lá trabalho, mas não me importei. Saímos de madrugada e fomos a pé daqui até ao Castelejo, e lá é que apanhámos a carreira. Assim que chegámos à Panasqueira, o meu pai levou-me a falar com o capataz e quando que ele me disse que podia começar ainda nesse dia, até cresci um palmo. Já tinha passado por tanto, que julgava que dali para a frente é que ia ter uma vida regalada. Trabalhinho certo, à sombra, e a uma féria que era uma categoria.  
Mas estava mal enganado! O meu pai já me tinha avisado que aquilo era ruim, mas uma coisa é aquilo que nos dizem, outra é aquilo que a gente vê: um bafo que parecia que andávamos dentro dum forno, e às vezes até assovacavamos com tanta poeirada e o cheiro da pólvora. Mal entrávamos, ficávamos logo com a roupa colada ao corpo, e muitas vezes tínhamos que nos despir da cintura para cima, mas mesmo assim andávamos sempre lavados em suor; as calças sempre encharcadas e cheias de lama, porque a água era tanta que às vezes nos dava pelo meio da perna. Ainda por cima havia sítios em que a galeria nem a altura de um homem tinha e era preciso andarmos quase de rastos. Havia alturas que, de andarmos um dia inteiro sem ver a luz do sol, quando chegávamos cá fora mal podíamos abrir os olhos.

Gasómetro utilizado pelos mineiros. A parte de baixo era enchida com carboreto e a de cima com água. A mistura produzia o gás que alumiava o interior da mina. Cada mineiro tinha que comprar o seu próprio gasómetro e a empresa só fornecia o combustível.

Ao fim dum mês, já andava tão desacorçoado que me virei para o meu pai e disse-lhe que ia pedir para me fazerem as contas, que me vinha embora.
- Tu resolve lá como entenderes, mas não penses que se abalares torno a pedir para te cá meterem.
Aguentei-me até me chamarem para a tropa.
O serviço em si nem era muito duro e, se não fossem as condições, até se levava bem. Hoje em dia deve estar tudo demudado, mas naquele tempo andavam os marteleiros à frente a abrir os buracos para meterem a pólvora e rebentar com a rocha; ao outro dia, quando aquela poeirada toda abatia, iam os entevadores a ver se havia pedras soltas: batiam com um ferro comprido, chamávamos-lhe nós lá uma ponteirola, e consoante o barulho que fazia viam logo se as pedras estavam seguras ou não. Se estivessem em risco de abater, tinham que acabar das derrubar, não fosse algum calhau soltar-se e cair por cima d’alguém. Só depois de tudo bem escorado com barrotes é que íamos nós a apartar o minério da rocha. Aquele que estava limpo era logo metido em sacas e levado nas zorras para fora da mina; o mais sujo ia para um depósito e depois era levado nas correias para as lavarias para ser tratado e ensacado. Com o cascalho que ficava lá dentro, andavam outros a fazer parede ao comprido da galeria para a suster.
Todos os dias saíam dali carradas de minério. Diz que era pago a um conto de réis o quilo; a fortuna que ali havia! Por isso é que ali à roda era só guarda, uns à paisana, outros armados; até se constava que havia uns que eram da Pide. Não saía ninguém lá de dentro que não fosse revistado, que aquilo era uma tentação. Umas gramas que fossem, vendidas na candonga, já era uma grande ajuda ao fim do mês! Por isso alguns ainda arriscavam a trazer umas migalhas escondidas em sítios que nem lembravam ao diabo; mas, se calhava a serem apanhados, o menos que lhes podia acontecer era ficarem com o nome riscado a encarnado nas folhas de pessoal e nunca mais lá punham os pés. Por modos ainda houve alguns que até chegaram a ir parar à cadeia.

Máquina de arrasto. Servia para trazer as zorras do interior da mina. Chegava a trazer mais de vinte de cada vez.

Não foi no meu tempo, mas diz que uma vez houve dois ou três gabirus que se meteram dentro da mina disfarçados e, quando foi à saída, conseguiram desarmar os guardas que estavam a fazer a revista. Amarraram-nos a um pinheiro e levaram o carrego de uma zorra que vinha cheia lá de dentro. Fizeram aquilo tão bem feito que nunca foram apanhados nem se soube quem eles eram, mas havia quem dissesse que tinha sido tudo combinado. E não m’admira nada, que naquele tempo andava muita gente no contrabando do minério e encobriam-se uns aos outros.
Quando lá andei ainda era solteiro, mas vinha quase todas as semanas à terra pra ver a família e os amigos, e sempre se levava alguma coisa de comer. Não que tivéssemos precisão, que tínhamos lá cantina e tudo, mas o que ia de casa sempre estava mais certo. Ao princípio fazia o caminho metade a pé e a outra metade na camioneta da carreira; mas aos poucos fui ajuntando algum do dinheiro que o meu pai me dava ao fim da semana e comprei uma bicicleta em segunda mão. A partir daí já vinha o caminho todo a cavalo. De inverno era duro, mas no verão fazia-se bem. Ainda por cima éramos uns poucos e íamos parando pra matar a sede em cada terra por onde passávamos. Uma vez pagava um, outra vez pagava outro e quando cá chegávamos já vínhamos todos contentes. Mas uma vez, chovia se Deus a dava e já era noite de todo, um companheiro não viu a curva da estrada e foi a rebolar pelo aterro abaixo. Vimo-nos perdidos para o trazer pra cima e depois tivemos que ir a ver duma camioneta para o levar para o hospital, que ele não se calava com dores. Partiu três costelas e esteve pra cima dum mês sem poder trabalhar; mas não lhe serviu de emenda, que a gente quando é novo não tem juízo nem um.
Quando não vínhamos à terra passávamos o domingo no Clube a beber e a jogar matraquilhos e às cartas; outras vezes íamos a ver o jogo da bola entre os da Panasqueira e os da Barroca, mas aquilo acabava quase sempre à pancada entre os dum lado e os do outro. Era o nosso entretém, que, a não ser no verão, que faziam lá uma grande festa à Santa Bárbara, não tínhamos mais nada com que nos advertir.
Também lá havia muito homem já casado. Esses, se quisessem, podiam levar a família, que fizeram lá um grande bairro e davam-lhes casa, escola e abono para os filhos. Às vezes até lhes arranjavam um bocado de terra para fazerem a horta. Naquele tempo, por cá, mais ninguém tinha regalias daquelas. Não duravam era muito tempo, que ninguém aguentava muitos anos enterrado debaixo da terra como se fosse um bicho. Mas, ao menos enquanto lá andavam, tinham a certeza de não lhes faltar o pão em casa; que aquilo era o pão que o diabo amassou, porque muitos morriam cedo e deixavam a mulher e os filhos à míngua.  
Ao pé de mim nunca vi morrer ninguém, mas de vez em quando já se ouvia dizer que tinha ido mais um. Uma vez, já eu me tinha vindo embora há que tempos, chegou a notícia que tinha lá morrido o Jaquim Paulino. Era dos que andavam à frente com a ponteirola, mas daquela vez não deve ter medido bem o perigo e caiu-lhe uma pedra em cima. Diz que era cá uma filha da mãe que tiveram de a rebentar para tirar o homem debaixo dela. Cá na terra toda a gente teve muita pena porque era ainda novo e bom homem. Ainda por cima deixava a mulher viúva com três filhos pequenos nos braços.
Nesse dia jurei que, nem que morresse de fome, nunca mais para lá tornava. Se calhar foi o que me valeu, que, dos que lá andaram naquele tempo comigo, já sou o único que ainda cá está.


Depoimentos de uma das filhas de Joaquim Paulino:
«Quando o meu pai morreu tinha eu sete anos, mas era ainda muito acriançada, que a gente naquele tempo não era como agora, por isso nem tive consciência da desgraça que tinha acontecido. Lembro-me de vir para a terra numa camioneta cheia de gente. E eu toda contente, como se viéssemos para as Festas de Verão, que era a altura em que costumávamos vir à terra de camioneta da carreira. Quando chegámos ao Casal estava a estrada toda enfeitada com bandeiras e a aparelhagem a tocar. Fiquei ainda mais contente, como se a festa fosse também para nós. Ouvi depois dizer que era o dia da festa da Santa Bárbara.
Só comecei a tomar consciência do que tinha acontecido quando voltámos para casa, passados uns dias, e o meu pai nunca mais chegou; e a minha mãe toda vestida de luto pesado e com um lenço atado à cabeça; e na escola via as outras cachopitas apontarem para mim e para a minha irmã a dizerem que o nosso pai tinha morrido. A minha mãe teve que começar a andar por dia para nos dar de comer. Éramos três, todos a seguir uns aos outros e o meu irmão mais novo ainda só tinha três anos.
Isto foi nos princípios de maio, e tivemos que ficar nas Minas até junho, por causa da escola. Quando demos férias voltámos para a terra e a pouco e pouco a nossa vida foi-se recompondo, mas nunca mais foi a mesma coisa.
Uma vez a minha mãe contou-nos que foi o Padre Leal que fez um peditório junto dos mineiros para alugar a camioneta que trouxe o meu pai e as pessoas que quiseram vir ao enterro. Também contou que um dia foi ter com ele a perguntar quanto era do funeral; que naquela altura não tinha dinheiro, mas que lhe ia pagando a pouco e pouco. A resposta dele foi que não era nada; que comprasse comer para os filhos e não os deixasse passar fome. Diz que quando foi perguntar a mesma coisa ao senhor Vigário a resposta foi que se arranjasse como quisesse, mas que queria o dinheiro quanto antes, que também tinha precisão de se governar…».

Depoimento de uma das filhas de José Pereira:
«O meu pai já trabalhava nas Minas há algum tempo, mas depois começaram a dar casas aos trabalhadores para poderem levar as famílias, e nós também fomos para lá. Naquela altura já éramos cinco irmãos; eu era a mais nova, mas depois ainda lá nasceram mais três.
Deram-nos uma casa muito jeitosa, com três quartos grandes, uma sala e a cozinha. E tínhamos uma horta onde o meu pai, nas horas vagas, cultivava de tudo. Nunca passámos fome, graças a Deus.
Foi lá que fiz a escola. Tínhamos uma professora muito boa, que era a dona Otília. Depois das aulas levava-nos para casa dela para nos dar explicações. Eu gostava muito de fazer desenhos e uma vez ela apanhou-me distraída a copiar a cara do Salazar que estava pendurada ao lado do quadro e deu-me duas reguadas, mas foi a única vez que apanhei.
Naquele tempo estava lá o Padre Leal. Era uma jóia de pessoa, que ajudava muito toda a gente que precisava. Foi com ele que fiz a Primeira Comunhão.
No verão íamos de férias para a Nazaré pela Companhia. Ficávamos numa casa de Irmãs, perto do mar. Era muito bom! De manhã íamos à missa e depois abalávamos logo para a praia. Havia lá um banheiro que nos levava à água, duas a duas agarradas por um cinto, e fazia-nos dar três mergulhos. Depois apanhávamos um bocadinho de sol e brincávamos na areia, e íamos almoçar. A seguir à sesta tornávamos para a praia e levávamos uma merenda para lá comer. Era sempre um papo-seco com manteiga ou doce e uma peça de fruta. Eram vinte e dois dias tão bem passados que no terceiro ao em que para lá fui, como já sabia que não voltava, no último dia ajoelhei-me na areia a chorar.
Foram tempos maravilhosos, aqueles!»

Memórias da ti Felicidade:
«Naquele tempo ia muita gente de cá a trabalhar prás Minas e a mim também me pra lá levaram; tinha uns dezasseis ou dezassete anos. Fui pra casa da minha tia Luzia que morava no Rio. O meu serviço era coser as sacas do minério.
Lá onde eu andava, todos dias via passar um homem que ficava muito tempo parado a olhar pra mim. Até parecia que nunca tinha visto uma cachopa. Tantas vezes fez aquilo que comecei a ficar com medo, não quisesse ele fazer-me mal, e um dia contei-o à minha tia. Ela só me disse assim:
- Quando ele tornar a olhar para ti pergunta-lhe o que é que ele te quer.
E foi isso que eu fiz quando o tornei a ver:
- Olhe lá, vossemecê o que é que me quer? Nunca viu uma cachopa com uma agulha na mão?
Ele só me respondeu assim:
- O que é que eu quero? Gostava de falar pra si…
         - Ainda mai essa! Eu conheço-o lá dalgum lado pra falar pra si, assim sem mai nem menos!
- Olhe que é coisa séria! E quero casar quanto antes. Há de ser ainda este ano.
- E o que é que eu tenho a ver com isso? Case-se lá quando achar, mas comigo é que não há de ser!
A verdade é que ele veio cá à terra a falar com os meus pais. Não sei lá o que é que lhe disseram, que ele foi logo ao Fundão comprar um corte de fazenda pra me mandar fazer um fato de saia e casaco, e passado pouco tempo fez-se o casamento.
Ficámos a viver uns tempos na casa dos pais dele, num sítio que lhe chamavam lá a Parada. Ele continuou a trabalhar na mina e eu a coser sacas. Mas depois viéramos a morar cá pá terra até que ele abalou pá França.
            Foi um grande trabalhador e tratou-me sempre muito bem; lá isso tratou, graças a Deus. Que Deus o lá tenha em descanso!».

M. L. Ferreira