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sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O Pelourinho

 Há dias, a propósito do artigo sobre a digitalização dos jornais pela Biblioteca de Castelo Branco, não respondemos à dúvida sobre se existiria o Pelourinho na Biblioteca Hipólito Raposo. De facto não existe. Há apenas um exemplar que foi doado, há tempos, pela Maria José (Alfaiate). É o número 2, publicado em 15 de setembro de 1960, era diretor o padre Sílvio.

Era bom que fosse possível reunir todos os números publicados (também de O Vicentino) e torná-los acessíveis através da digitalização. É que, dando-nos conta, mensalmente, dos acontecimentos mais importantes em cada uma das povoações da freguesia, foi um documento fundamental para ficarmos a saber quase tudo sobre a vida de São Vicente durante várias décadas: dados económicos, sociais, demográficos, culturais, costumes, valores, etc. que muitos vivemos e ainda recordamos, mas a maior parte da população mais jovem nem imagina.

Deixo algumas das notícias deste Nº2; acho-as significativas porque testemunham bem como estávamos todos irmanados nas alegrias, nas tristezas e nas necessidades mais básicas:

 - No Mourelo pedia-se às “Exmas. Autoridades” que fosse feito um chafariz para abastecimento de água à população, porque a única fonte disponível era ainda a Fonte de Mergulho, “pouco higiénica e muito distante”; realizara-se a festa de Santo António, “glorioso protector”, com missa e sermão feito pelo Padre Sílvio e cânticos dirigidos por um seminarista da Guarda; deu-se ainda conta da visita de várias pessoas aos seus familiares.

- Na Partida ansiava-se ainda pela chegada da estrada e pedia-se ajuda para o arranjo de alguns caminhos; a população viveu em festa, entre os dias 26 de agosto e 5 de setembro, pela presença de um grupo de seminaristas da Guarda que “… proporcionaram a todos momentos de inesquecível prazer espiritual”; também houve grande satisfação pela chegada de alguns conterrâneos vindos de França ou de Lisboa para passarem férias com a família; no dia 3 de setembro faleceu a senhora Amélia Bonifácio de Carvalho.

-Nos Pereiros festejava-se já a chegada da nova estrada que tanto iria beneficiar a população; mas chorava-se a morte de uma criança de 2 anos, num incêndio num palheiro, e queimaduras graves na mãe ao tentar salvar o filho; esteve de visita à família o senhor João António Varandas, sócio gerente da Fogás Lda.

 - Na Paradanta esperava-se com impaciência a construção da escola, tanto mais que a população estava disposta a ceder o terreno no local que as “Exmas. Autoridades” julgassem mais adequado; estavam ainda de férias alguns estudantes da terra (6, no total!), e também o “menino” Norberto Gomes Filipe tinha ficado bem no exame de admissão ao Liceu; o senhor António Gomes Filipe e esposa pediram, para seu filho, a mão de D. Maria Emília Ventura Russo “Professora Oficial”, filha do senhor Alfredo Ventura Russo e da senhora D. Trindade Diogo Ventura Russo; faleceu inesperadamente a esposa do senhor Álvaro Martins Faustino.

 - No Vale de Figueiras festejava-se o início das obras de alargamento do caminho de acesso à povoação; pedia-se a construção de uma fonte com “água pura”, em alternativa à dos poços e presas; deu-se também conta da participação de muita gente em algumas atividades e cerimónias religiosas realizadas pelos seminaristas da Guarda (na Partida) onde viveram uma “alegria sã e vida piedosa”.

- No Casal da Serra fora caiada a igreja e dourado o altar, que “ficou muito bonito”; continuava também em construção a estrada até ao Louriçal, que vinha encurtar o caminho de acesso à Estação e pediam-se também melhoramentos no caminho para a sede da freguesia; dava-se notícia da visita de várias pessoas, residentes fora, às suas famílias.

- No Violeiro pediam-se melhoramentos nos caminhos, autênticos lodaçais no inverno; festejava-se ainda os bons resultados nos exames dos estudantes José António Rato e Conceição de Jesus Rato e a partida de Francisco Magueijo para o seminário de Fátima; desejava-se boa viagem ao senhor José Roque, esposa e filhos, que regressavam a França onde residiam há sete anos.

 - No Tripeiro festejava-se a chegada do telefone com muita alegria porque “já podiam fazer-se ouvir ao longe sem a triste necessidade de percorrer longos caminhos lamacentos”; dava-se a notícia de que a escola estava quase pronta, pelo que se agradecia muito ao “Estado”; iam também ter água canalizada em breve, coisa para admirar porque outras terras maiores ainda não a tinham; dava-se também conta da vitória, num jogo amigável, entre a equipa da terra e a do Mourelo.

 - Em São Vicente iam realizar-se, nos dias 18, 19 e 20 as festas em honra do Santíssimo Sacramento, do Senhor Santo Cristo e de Nossa Senhora do Carmo; No dia 15 de Agosto tinha-se realizado “com grande fervor”, a festa em honra da nossa Padroeira: “… a imagem da «Senhora da Ordem» foi conduzida processionalmente até à Sua Capela. Subiu ao púlpito o Rev. Frei Crespo…”; estiveram em São Vicente, entre muitas outras pessoas, Amélia Rey Colaço Robles Monteiro e Mariana Rey Monteiro e filhos; esteve também a D. Aldina Caldeira com o marido e uma excursão, vinda de Lisboa, organizada pelo senhor Elias; estiveram na Vila os “montadores” do relógio novo para darem algumas instruções sobre o seu funcionamento e já havia quem tivesse contribuído para o seu “badalar”; no dia 21 de agosto a equipa de futebol “os Novatos de São Vicente da Beira” tinha ganhado à equipa da Partida (parece que pela primeira vez…); pelos “ Novatos” alinharam Chico, Martins (1 golo), Dias e Jaime, Nicolau e Ribeiro, L. Bruno, Quica (3 golos), Barroso, Inverno e Luís.

M.L. Ferreira


Nota: Há comentários novos na postagem anterior.

José Teodoro Prata

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

José Venâncio


José Venâncio nasceu na Partida, a 5 de fevereiro de 1893. Era filho de António Venâncio e Maria do Rosário.

Assentou praça no dia 9 de julho de 1913 e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21, no dia 13 de janeiro de 1914. Era na altura analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.

Fazendo parte do CEP, embarcou para França em 21 de janeiro de 1917, integrando a 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, como soldado com o número 202 e placa de identidade n.º 9171.

Do seu boletim individual constam as seguintes ocorrências sobre o tempo em que permaneceu em França:

a)   Baixa ao hospital em 14 de agosto de 1917, por ter sido ferido em combate; teve alta em 15 de outubro (segundo contava, esteve mais de um mês em coma);

b)   Várias punições e detenções por faltas ao trabalho;

c)    Em Junho de 1918, foi-lhe confirmado pelo Tribunal de Guerra a sentença de seis meses de presídio militar ou, em alternativa, a pena de oito meses de incorporação em Detenção Disciplinar (de acordo com a folha de matrícula, este castigo foi aplicado, no dia 22 de Outubro de 1918, a José Venâncio e mais outros seis militares da sua Companhia, por serem acusados de se terem coligados entre si com o intuito de tirar da casa, que servia de prisão, um soldado que ali se encontrava recluso, por ordem do Comandante do Batalhão);

d)   Foi repatriado em agosto de 1918 e desembarcou em Lisboa, no dia 25.

Por decisão de 28 de Maio de 1921 o crime de que era acusado foi amnistiado nos termos do Art.º 1 da Lei n.º 1146, de 9 de Abril de 1921. Na sentença referida na sua folha de matrícula pode ler-se o seguinte: «O crime por que os réus foram condenados se acha amnistiado, assim o julgo e mando que sobre tal crime se faça perpétuo silêncio.»


Condecorações:

Medalha de Cobre comemorativa da expedição a França com a legenda: França 1917-1918.



Família:

José Venâncio casou com Maria dos Santos, no dia 18 de janeiro de 192,0 e tiveram 6 filhos:

1. Maria Lucinda, que casou com José Pedro e tiveram 3 filhos;

2.    Manuel Venâncio, que casou com Margarida de Jesus Costa e tiveram 9 filhos;

3.    João José Venâncio, que casou com Deolinda Marques e tiveram 5 filhos;

4.    António Venâncio, que casou com Cândida Alves e tiveram 2 filhos;

5.    José Venâncio, que casou com Maria Lucinda Pinto e tiveram 2 filhos;

6.    Fernando Venâncio, que faleceu ainda jovem.

«Do que o meu pai mais falava sobre o tempo em que esteve na guerra era do frio e da fome que por lá passou. Diz que às vezes o frio era tanto que até parecia que as pernas não eram dele. E para matar a fome tinham que ir pedir comida por aquelas quintas, mas os camponeses também não tinham quase nada que lhes dar, porque a miséria era por todo o lado. Por causa de fugir à procura de comida e faltar aos trabalhos, foi muitas vezes castigado, ele e os outros companheiros. Também falava dos gases que os alemães lá deitavam e matavam muita gente, porque alguns nem máscaras tinham. Ele tinha uma e quando veio ainda a trouxe. Lembro-me de a ver durante muito tempo lá em casa, mas depois desapareceu.» (testemunho do filho José Venâncio).

José Venâncio toda a vida foi moleiro. Tinha um burro e andava de terra em terra a transportar o grão para moer na azenha; teve uma vida de muito trabalho e poucos ganhos, para sustentar os filhos ainda pequenos. Viveu sempre com muitas dificuldades, porque a vida de moleiro não lhe trazia grandes proventos e também não tinha terras para cultivar.

Nunca recebeu nenhuma pensão pelo tempo e ferimentos que sofreu na guerra; foram os filhos que lhe valeram na velhice, ajudando-o no seu sustento.

Faleceu em Outubro de 1968. Tinha 75 anos de idade.

 

(Pesquisa feita com a colaboração do filho José Venâncio)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

sábado, 16 de setembro de 2023

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Nunes

José Nunes nasceu em Ribeiro d´Eiras, no dia quatro de setembro de 1892. Era filho de António Nunes e Maria Joaquina. Como era habitual naquele tempo, começou a trabalhar muito cedo, na agricultura e como pastor.

Assentou praça em Castelo Branco, no dia 9 de julho de 1914, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21. Segundo a sua folha de matrícula, era analfabeto e jornaleiro.

Embarcou para França, no dia 18 de janeiro de 1917, integrando a 6.ª Companhia do 2.º Batalhão do 2º Regimento de Infantaria 21, como soldado com o n.º 723 e a chapa de identidade n.º 9125. Desembarcou em Brest, no dia 4 de fevereiro.

Do seu boletim individual consta o seguinte:

a)   Baixa ao Hospital n.º 26, em cinco de fevereiro; alta em 20;

b)   Colocado na 1.ª Companhia com o n.º 723, em 16 de novembro de 1917;

c)   Baixa ao Hospital de Base 1, em 14 de abril de 1918; alta em 20;

d)   Baixa ao Hospital de Base 2, em 30 de maio;

e)   Em sessão de junta médica realizada em 14 de junho, foi-lhe concedida licença por 60 dias para convalescença; esta licença foi posteriormente reduzida para 30 dias;

f)     Embarcou para Portugal a bordo do navio Helenus, no dia 17 de março de 1919, e desembarcou em Lisboa a 20 do mesmo mês.

José Nunes, à direita, com dois companheiros

Passou à reserva territorial em dezembro de 1935.

Condecorações: Medalha militar de cobre comemorativa da participação de Portugal na Grande Guerra com a legenda: França-1917-1918.

Família:

José Nunes casou com Ana Maria no dia 27 de abril de 1920 e ficaram a viver na Partida, de onde era natural a esposa. Tiveram três filhos:

1.     João Nunes, que casou com Maria do Carmo e tiveram 1 filha;

2.     Maria de Jesus Nunes, que casou com Joaquim Martins e tiveram 4 filhos;

3.     Celestina Nunes, que casou com César Alves e tiveram 2 filhos.

«Quando o meu avô regressou à terra foi recebido como um herói; mas vinha tão traumatizado que não conseguia falar de outra coisa que não fosse a guerra. Todas as conversas iam dar ao mesmo: as muitas tropas do seu batalhão; os muitos homens nas trincheiras; os muitos mortos que uma vez viu espalhados pelo chão, uns sem pernas, outros sem braços, outros com a cabeça ou a barriga abertas; os que morreram quando tiveram que atravessar um rio agarrados a umas cordas, com a roupa atada ao corpo com umas correias e o pouco dinheiro que tinham, dentro da boca. Referia-se sempre a eles utilizando a expressão «Mais de mil homens!» um número que ele achava ser o maior para definir todas as atrocidades que por lá viu e dificuldades por que passou. Por causa disto puseram-lhe a alcunha de “Mil Homens” e toda a família ficou assim conhecida.

Quando andava na escola também me tratavam por “Mil Homens”. Eu ficava muito envergonhada, porque não sabia a origem do nome e achava-o muito feio. Atualmente, depois de conhecer a história que deu origem à alcunha da família, tenho o maior orgulho nela e no meu avô. (testemunho da neta Celestina Nunes)

A filha Celestina Nunes também se lembra de ouvir o pai contar que, quando chegou a Portugal, por trazer uma caderneta tão limpa, lhe quiseram dar emprego em Lisboa, mas ele não aceitou, porque o que queria era voltar para perto da família, das suas cabras e das suas hortas.

Toda a vida trabalhou na agricultura, quase sempre como jornaleiro numa casa de gente abastada da Partida. No verão raramente faltava a um quinto e no inverno fazia quase todas as campanhas da azeitona. Mas do que ele gostava mais era da sua Metanhosa, uma terra, quase brava, que ele transformou numa propriedade que era o seu orgulho e onde cultivava de tudo para a casa. Também teve quase sempre um rebanho de cabras, que era uma grande ajuda para o sustento da família.

José Nunes faleceu no dia 24 de maio de 1962. Tinha 69 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração da filha Celestina Nunes e da neta Celestina Nunes)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Os Sanvincentinos na Grande Guerra

 José Domingos

José Domingos nasceu na Partida, a 18 de Março de 1893. Era filho de António Domingos e Joaquina Freire.

Assentou praça no dia 9 de Julho de 1913, como recrutado, pertencente ao contingente de 1913, a cargo do concelho de Castelo Branco. Foi incorporado no Regimento de Artilharia de Montanha, no dia 13 de janeiro de 1914. De acordo com a sua folha de matrícula, sabia ler, escrever e contar, e tinha a profissão de jornaleiro.

Terminou a instrução da recruta em 4 de julho de 1914, e regressou à sua terra. Foi novamente mobilizado em Agosto desse ano, e destacado para a província de Angola, para onde embarcou em 11 de setembro, integrando a 1ª Expedição enviada para aquela província ultramarina. Chegou a Moçâmedes no dia 1 de Outubro de 1914.

De acordo com a sua caderneta militar, tomou parte na ação do dia 18 de Dezembro de 1914 contra os alemães, fazendo parte das tropas que ocuparam o vau de Calueque. Pertencia ao destacamento do Humbe, onde entrou em 7 de julho de 1915. Fez parte do destacamento de reconquista e ocupação do Cuamato, de 12 a 27 de Agosto, e participou no combata de Chana da Mula, em 24 do mesmo mês, dia em que, com o mesmo destacamento do Cuamato, se reuniu às forças do destacamento de conquista do Cuanham de Mongua. Fez também parte do estacamento da Ngiva, de 4 de setembro de 1915. Regressou à Metrópole, no dia 16 de Novembro de 1915, e desembarcou em Lisboa, a 4 de Dezembro.

Licenciado em 15 de Março de 1916, foi promovido a 1.º Cabo em 9 de Abril. Apresentou-se novamente em 27 de Abril e foi destacado para fazer parte das tropas da 3.ª Expedição enviada para Moçambique. Seguiu viagem no dia 24 de Junho de 1916 e desembarcou no porto de Palma, a 24 de julho. Terá participado nos combates levados a cabo para conquistar o território na margem norte do rio Rovuma, nos quais muitos militares perderam a vida. Felizmente não fez parte desse número e regressou à Metrópole, em 31 de Março de 1918.

Passou ao Batalhão n.º 1 da Guarda-Fiscal, como soldado de Infantaria, em 25 de Outubro de 1918, e novamente ao Regimento de Artilharia de Montanha em 25 de outubro de 1921. Licenciado em 28 de outubro, fixou residência na freguesia dos Olivais, em Lisboa, onde terá feito formação numa área relacionada com o seu percurso profissional futuro.

Em Janeiro de 1922, José Domingos regressou a Moçambique e foi colocado na Companhia do Niassa, no norte de Moçambique (o seu primo Albano Frade, que na altura se encontrava em Lourenço Marques, refere-se a ele, em notas biográficas que deixou, dizendo que José Domingos tinha passado por aquela cidade, em maio de 1922, a caminho do Niassa). Mais tarde exerceu o cargo de Chefe de Posto, na região de Porto Amélia.

Passou à Companhia de Trem Hipomóvel, em 2 de Setembro de 1930, e à reserva territorial, em 31 de Dezembro de 1934.

Condecorações:

·        Medalha das Operações no Sul de Angola 1914-1915;

·        Medalha da Vitória.

Família:

José Domingos voltou à Metrópole uns anos depois e casou com Maria Ana Lourenço, natural dos Pereiros, no dia 21 de Fevereiro de 1927. Era uma rapariga muito bonita, uns anos mais nova que o noivo, e que gostava muito da sua terra. Terá sido por isso que, tendo acompanhado o marido de regresso a Moçambique, e apesar da viagem de núpcias que ele lhe proporcionou através do Canal do Suez, com escalas e passeios pelas várias cidades por onde passaram, nomeadamente Veneza, nunca se adaptou à vida em África, nem superou as saudades da terra. Regressou pouco tempo depois, já grávida da primeira filha, que nasceu em dezembro de 1927.

José Domingos permaneceu em Moçambique por mais alguns anos, nesta altura já como Chefe de Posto da Administração Civil, na região de Porto Amélia. Apesar de alguma insistência por parte da esposa, para que regressasse à terra, só voltou quando a filha estava quase a completar a instrução primária e Maria Ana lhe terá dito que ia pô-la a aprender costura. Foi esta notícia que fez com que José Domingos regressasse mais depressa, porque não estava de acordo com a esposa quanto ao futuro da menina e queria que ela prosseguisse os estudos. Tiveram depois mais uma filha.

As duas filhas de José Domingos e Maria Ana foram:

1.    Aurora de Jesus Domingos Lourenço que casou com Alexandre Domingos Lourenço, do Ninho do Açor, e tiveram 3 filhos;

2.    Emília da Conceição Domingos que casou com Manuel Canário e tiveram 2 filhos.


Embora não tivesse sido muito do agrado de José Domingos, que pretendia mudar-se para uma localidade maior, o casal manteve a residência nos Pereiros, onde construíram uma das maiores casas da terra e se estabeleceram com uma mercearia e uma taberna. Adquiriram também bastantes terrenos de cultivo (alguns já tinham sido comprados por Maria Ana com o dinheiro que o marido lhe enviava de Moçambique) e tinham a sua própria junta de bois com ganhão e um grande rebanho com pastor. Na terra há ainda quem se lembre de o ver a visitar as propriedades montado no seu cavalo, coisa pouco habitual naquela altura.

Talvez por ter estado em África, era um homem de horizontes largos. Gostava de viajar e fez parte da comitiva que acompanhou o Governador de Porto Amélia por vários países vizinhos de Moçambique. Também fez questão que as filhas estudassem, e ambas concluíram o antigo Curso Geral do Liceu (a mais nova formou-se em Assistente Social).

Passados muitos anos, o casal vendeu a casa e o comércio nos Pereiros e mudou a residência para Castelo Branco onde viveu alguns anos. Já no fim da vida, Maria Ana adoeceu e mudaram-se para o Ninho do Açor, para junto da filha mais velha, e foi aí que faleceram os dois.

As netas lembram-se dele, sentado num banco no quintal, a ler o jornal. Quando uma notícia lhe despertava mais a atenção, chamava a filha e punha-se a ler em voz alta. Acontecia isto sempre que via qualquer notícia sobre África, da qual guardou saudades para sempre. 

Maria Ana Lourenço faleceu no dia 13 de abril de 1977. José Domingos teve uma vida mais longa: faleceu no dia 10 de outubro de 1979. Tinha 86 anos de idade. Está sepultado no cemitério do Ninho do Açor.

(Pesquisa feita com a colaboração das netas Maria Cristina Lourenço e Maria Teresa Lourenço)

Maria Libânia Ferreira

Do livro: Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Crenças Populares

 

Desde que existe vida humana na Terra que a necessidade segurança e sobrevivência, ou de entender determinados fenómenos para os quais não havia explicação racional, levou ao aparecimento de mitos e crenças que foram passando de geração em geração, perpetuando-se ao logo dos tempos. Muitos chegaram até nós através das histórias que povoaram a nossa a infância, quase sempre pela voz dos mais velhos, e condicionaram, de certa forma, o nosso modo de vida desde muito cedo.

Quem não se lembra de, em criança, ouvir que se brincássemos com o lume fazíamos xixi na cama? Ou que brincar com a sombra era brincar com o diabo? Que contar as estrelas fazia crescer cravos nas mãos? E que andar para trás era ensinar o caminho ao diabo? E se era uma tentação, naquela idade, fazermos todas estas coisas! Ainda hoje, algumas vezes, dou comigo a brincar com o lume ou a contar as estrela.

Muitas destas histórias, com algumas especificidades regionais, são contadas em vários pontos do País; algumas até por esse mundo fora. As que aqui deixo ouvi-as, mais ou menos como as conto, na nossa freguesia. E há tantas outras para contar!

 

Bruxas e lobisomens

Havia algumas mulheres cá na terra que, dizia-se, eram bruxas; pelo menos da fama não se livravam. A maior parte já eram velhas, e só lhes dava para o mal. Recomendavam-nos que fizéssemos figas se tivéssemos que nos cruzar com elas. Mas às vezes nem as figas nos valiam e de um dia para o outro começávamos a ficar doentes, cheios de fastio e o olhar mortiço; ou então dávamos em fazer coisas que não lembravam ao diabo, prova mais que provada de que nos tinham feito mal.

O remédio para tirar o acedente (mau-olhado) era encher um prato com água e dizer esta oração: «Deus te viu, Deus te criou, Deus te livre de quem para ti mal olhou; em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo tirai este quebranto.» ao mesmo tempo iam-se deitando pingos de azeite no prato (cinco ou sete, para ser pernão). Se o azeite se espalhava, era sinal de mau olhado, mas se os pingos ficavam juntinhos numa bolha, o mal seria outro. Para acabar com o bruxedo tinha que se despejar a água do prato e repetir tudo as vezes que fossem precisas até os pingos ficarem juntinhos.

Quando se queria saber quem é que tinha feito o mal, bastava por uma panela com água a ferver ao lume, mergulhar lá dentro uma peça de roupa da pessoa embruxada, e picá-la com um espeto durante um bocado. Isto tinha que se fazer entre a meia-noite e a uma hora, e era limpinho que a bruxa havia de aparecer a pedir que parassem, que lhe estavam as doer muito as picadelas do espeto no corpo. 

 

Faziam coisas terríveis, as malvadas! Disse que uma vez, na Vila, houve uma que entrou pelo buraco da fechadura duma casa, pegou numa menina que estava a dormir no berço e trouxe-a pelas escadas abaixo. Eram as Festas do Verão, a banda a tocar na Praça, e os pais, gente nova, quiseram ir dançar uma moda. A mãe não se demorou muito, mas quando chegou a casa até lhe ia dando uma coisa. Não é que a menina estava caída no limiar, já rouquinha de tanto chorar, sujeita a ser comida pelo porco que estava na furda, mesmo ali ao lado?! Foi um caso tão badalado que ainda hoje se fala dele. 

 

Também me contaram que um dia uma mulher foi à missa e, no banco atrás, estavam duas calhandreiras a falar tão alto que ela já nem podia ouvi-las. Preada, voltou-se a mandá-las calar. Não é que quando chegou a casa tinha a toalha da mesa com uma grande tesourada? E que linda era aquela toalha! Percebeu logo o que tinha sido porque uma das calhandreiras não se livrava da fama de bruxa, e que Deus lhe perdoasse se estava a pecar por maus pensamentos, mas ali estava a prova...

 

E o susto que um homem cá da Vila apanhou uma vez? Era no tempo de fazer a aguardente e naquele dia tinha andado até tarde a ajudar o pai no alambique. Quando estavam a subir a rua da Costa, cada um com dois garrafões de cada lado, já tinha dado a meia-noite. Nisto começou a sentir passos atrás dele, e voltou-se para ver quem era. Até se lhe arrepiaram os cabelos quando viu um vulto negro, enorme, como nunca tinha visto igual. Nem abriu a boca para não assustar o pai, mas sentiu aquela presença até à porta de casa, no cimo da rua. Entrou a correr, e até ia a por a tranca na porta, mas encheu-se de brio e disse lá para com ele: «Mas eu sou um homem ou um cachopo?», e saiu porta fora com a tranca no ar, disposto a dar cabo do que quer que fosse. Mas o vulto tinha desaparecido; só ouviu um barulho, rua abaixo, como se fosse um cavalo a correr.

 

Faz lembrar o que contavam de um homem da Partida, boa pessoa, respeitador de toda a gente, um mouro de trabalho; mas diziam que era lobisomem. Em certas noites, principalmente noites de lua cheia, transfigurava-se e corria desalmadamente pelas ruas levando pela frente tudo o que se lhe atravessasse no caminho. Tiveram a certeza que era ele quando, uma vez que a mulher se atrasou a cozer o pão, já passava da meia-noite quando voltou para casa. Ia a subir a rua com o tabuleiro à cabeça e, nisto, começa a ouvir um barulho estranho, ao longe, que se ia tornando cada vez mais perto, até que sentiu que estava mesmo encostadinho a ela. Só teve tempo de se atirar para a valeta, não fosse levada à frente, mas sentiu o bafo e uns dentes enormes a abocanharem-lhe o xaile.

Por sorte, um dos irmãos do lobisomem ouviu o barulho e percebeu logo o que era. Saiu da cama a correr e, com o agulhão das vacas em punho, saltou-lhe ao caminho. Com tanta pontaria que conseguiu espetar-lho direito ao coração. Só desta maneira pôde desfazer a perneta que o irmão tinha desde novo.

Quando chegou a casa, tão amedrontada que quase não se tinha nas pernas, viu o homem sentado ao cimo das escadas, a arfar, ainda a cuspir bocados da franja do xaile.

 

Almas penadas

Às vezes os casos eram tão bicudos que só gente entendida, a poder de muitas rezas, defumações e esmolas, eram capazes de atalhar. Como o daquele homem que há que tempos trazia um peso no corpo e nenhum médico conseguia dar com o mal. Não teve outro remédio senão ir a uma dessas benzedeira que têm fama de curar todos os males. Não é que ela lhe afirmou, assim que o viu, que era o pai dele que lhe andava encavalitado nas costas? O caso era que o velho tinha morrido com promessas por pagar e queria que o filho as pagasse para poder descansar. A verdade é que depois de tudo pago, como mandou a tal mulher, o dito homem começou a sentir algumas melhoras.     

 

E o caso daquele pastor do Casal da Serra a quem, sem mais nem menos, começaram a aparecer ovelhas feridas e algumas até mortas? Desacorçoado, em saber o que fazer à vida, resolveu-se a ir a uma dessas mulheres, não fosse coisa do diabo. E a verdade é que ela viu, claro como a água, que era um amigo do dito pastor que tinha morrido há uns tempos, e todas as noites vinha fazer pontaria ao rebanho com uma fisga. Tal e qual como tinham feito muitas vezes juntos, ainda rapazes novos, só para apostarem qual acertava mais longe. Dizem que depois de cumprir as recomendações que a mulher lhe fez, não tornaram a aparecer ovelhas feridas nem mortas.

 

Esta contaram-ma há pouco tempo. Eram duas irmãs que moravam no fundo – vila e tinham uma tia, muito amiga, que morava do lado de cima da Fonte Velha. Em solteiras, de verão, iam quase todos os dias passar o serão para casa dela e ficavam lá até às tantas. Uma vez demoraram-se mais e deram-lhes as badaladas da meia-noite ainda antes de chegarem à Praça. Então não é que na rua Nicolau Veloso, mesmo à frente duma casa onde tinha morado uma costureira, ouviram claramente o pedalar duma máquina de costura? Ó pernas para que vos quero, todas arrepiadas, rua abaixo, porque bem sabiam que desde que a costureira tinha morrido a casa estava fechada. Não tornaram a passar por lá àquela hora, mas parece que houve quem por lá tivesse passado, também a más horas, e tivesse ouvido o pedalar da máquina de costura.      

 

Já lá vão muitos anos, uma amiga minha foi a Castelo Branco fazer o exame da quarta. Quando voltou à terra vinha numa tristeza tão grande que mal comia e sempre a suspirar. Por mais que lhe perguntassem, não dizia a ninguém o que é que tinha. As más-línguas até já diziam que se calhar tinha ficado mal no exame e não queriam dizer; como se fosse possível, numa terra onde tudo se sabe. A mãe fez o que pôde, mas nem rezas, nem defumações, nem xaropes, nada resultou. Até que a levou à benzedeira de Abrantes que diziam que era muito entendida nestas coisas. E a verdade é que ela viu logo qual era o mal: nem mais nem menos que o espírito de um tio afastado que tinha morrido há já uns bons anos, mas que ainda andava por aí, feito alma penada. Recomendou que rezassem umas certas orações, mandassem dizer duas missas e deixassem uma esmola na caixa das almas. A verdade é que, ao fim de pouco tempo a cachopa começou a melhorar e já nem parecia a mesma.

Passados uns tempos contou-me o segredo da doença: quando tinha ido a Castelo Branco fazer o exame, tinha lá visto um rapaz tão bonito como nunca tinha visto. De cabelos encaracolados, moreno, olhos verdes (ou seriam castanhos?), foi amor à primeira vista. A paixão tinha sido tão grande que até que se lhe tinha atado um nó na garganta e o coração parecia um cavalo a correr, a querer saltar-lhe do peito. O mais certo era nunca mais tornar a vê-lo, mas o nó da garganta também já se lhe tinha desatado e o coração batia mais devagar.

 

E outros mistérios

Contou-me a minha avó que, um ano, pela Páscoa, atrasou-se noutras andanças e não teve tempo da fazer os bolos antes de Sexta-Feira Santa. Começou a amassar logo de madrugada, com as medidas, as rezas e todas as voltas já do tempo da mãe dela. Nem de tapar a massa com o capote do meu avô ela se esqueceu. Lá para o meio-dia a massa havia de estar pronta para ser tendida e ir para o forno, ainda a tempo de poder ir à Procissão do Encontro. Qual quê? Quando foi ao meio-dia a massa ainda estava no fundo da masseira, e à noite continuava na mesma. Nunca tal lhe tinha sucedido.

 

Contava-se que a outra mulher tinha sucedido uma coisa parecida, só que a ela a massa tinha fintado que era uma maravilha; tendeu os bolos e meteu-os no forno, aquecido como deve ser. Quando foi por eles, estavam que nem carvão. Também era Sexta-Feira Santa…

 

A outra mulher, também cá da terra, houve um ano que a forneira teve tanto trabalho que já só já lhe arranjou vez para cozer os bolos na sexta-feira. Não teve outro remédio senão sujeitar-se, mas com o coração nas mãos por causa das histórias que já tinha ouvido contar. Razão tinha ela, que quando começou a partir os ovos estavam todos cheios de pintas de sangue. Nesse ano, na casa dela, não houve a fartura de bolos da Páscoa que era costume. Só o que uma vizinha, com pena dos filhos, lhe levou.

 

Conta-se também que uma vez uma mulher foi lavar a farda da tropa de um dos filhos. Tinha chegado de véspera, já quase noite e abalava para o quartel no dia a seguir, à tardinha. Mal o sol nasceu, a mãe foi a correr para a ribeira, mas assim que começou a ensaboar a roupa, parece que se desfazia em sangue; até a água ficou encarnada. Era dia do Corpo de Deus…

 

M. L. Ferreira

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Naquele tempo...

Daquele tempo lembramo-nos nós, os mais velhos. Foi o tempo da nossa infância. Depois tudo mudou, tanto que até as crianças acabaram nas terras abaixo referidas.

O texto que se segue é um trecho de um artigo publicado no jornal Gazeta do Interior da semana passada (13 de outubro). A sua autora chama-se Cesaltina Gilo, professora aposentada com ligações familiares a Monsanto, que ainda conheci na Escola Secundária Nuno Álvares. Antes de se licenciar em História, foi professora do Ensino Primário e esta história autobiográfica conta a sua experiência na primeira colocação que teve depois de concluir o Magistério Primário, precisamente nas Rochas de Cima.


José Teodoro Prata

domingo, 23 de maio de 2021

Festas e romarias

 A cultura popular tem muitas manifestações, mas as festas e romarias são talvez das mais antigas e mais importantes: num tempo em que as populações eram ciclicamente atormentadas por pestes, pragas (principalmente de gafanhotos), guerras e secas, a fome, a doença e a morte eram uma ameaça constante na vida das pessoas. O povo, quase sempre pobre e pouco instruído, não tinha outra forma de enfrentar estas ameaças, muitas vezes sentidas como castigo divino pelos pecados do mundo, senão através da oração, do cumprimento de promessas ou de esmola aos mais pobres ou à Igreja. Foi desta forma que, por todo o país surgiram igrejas e capelas onde as populações se juntavam em preces pelo auxílio divino, da Virgem ou dos santos da sua devoção.

Mas não eram apenas locais de oração, estes santuários. Ao longo dos séculos foram-se tornando também lugares de festa, diversão e convívio social, tão aguardado pelas populações durante o ano inteiro de trabalho no campo. A Beira Baixa é um bom exemplo desta prática, testemunhada pela abundância de ermidas espalhadas por todo o território, quase todas com uma lenda associada.

Segundo Jaime Lopes Graça, só no distrito de Castelo Branco existem perto de oitenta destes pequenos templos, quase sempre capelas com alpendre, dedicados às mais variadas devoções. São muitos os santos e Senhoras venerados, mas há alguns que têm maior representação entre nós: São Sebastião, Santa Bárbara, Santo António, Santa Cruz, Senhora dos Remédios, Senhora das Preces, e vários outros.    

Muitas destas capelas situam-se dentro ou às portas das povoações, mas algumas foram construídas em locais mais distantes, quase sempre de grande beleza natural ou com vistas desafogadas. É o caso da Senhora de Mércules, em Castelo Branco, da Senhora do Almortão, em Idanha-a-Nova ou da Santa Luzia, no Castelejo. Serão também estes os santuários que mais peregrinos concentram nos dias das suas festas; a maior parte das povoações à roda, mas muitos vindos de longe.

Na nossa freguesia, à semelhança de tantas outras da Beira Baixa, dizimada ciclicamente por toda a espécie de calamidades, é antigo o culto a vários santos e à Nossa Senhora:

 

O São Sebastião

Tem capela numa das entradas da Vila, no largo com o seu nome. A festa, realizada no fim-de-semana mais próximo do dia 20 de janeiro; é simples, mas cheia de valor simbólico para toda a população: no sábado à noite, depois duma oração, a imagem do santo é levada para a Igreja Matriz onde permanece até ao dia seguinte. Na manhã de domingo regressa em procissão, acompanhado pelo São Vicente, para a sua capela onde é rezada a missa.

A São Sebastião pede-se proteção contra a fome e as doenças, e é o único santo a quem continuamos a celebrar o bodo. Esta prática antiga consiste, entre nós, na bênção de papo-secos que são distribuídos pela população (antigamente seria apenas aos mais pobres). Acredita-se que se forem guardados até ao ano seguinte, não faltará pão em casa ao longo todo o ano. Depois da missa, são também oferecidas filhós e tremoços a todos os presentes, e vendidas fitas coloridas que era hábito colocar à volta do pescoço das crianças para as proteger das doenças. Não serviriam de muito porque continuavam a morrer às dezenas todos os anos, mas também não era por isso que a fé no santo diminuía…  

Na Partida o São Sebastião também tem uma capela, e continuam a fazer-lhe a festa no dia 20 de janeiro. 

 

 

A Santa Bárbara

Já foi do Sobral, mas agora tem capela no Casal da Fraga, onde lhe fazemos a festa no terceiro fim-de-semana a seguir à Páscoa. Nem sempre foi assim, mas desde há alguns anos que a imagem da santa é levada na véspera à tarde para a Igreja Matriz onde fica até à noite. Regressa depois à sua capela numa, procissão à luz das velas e na cadência do toque da Banda. Já na capela, é feita uma oração com muitos fiéis a assistir no exterior, por não caberem lá dentro. No domingo, depois da missa, faz-se também a procissão acompanhada pela Banda.

A esta mártir pede-se proteção contra as trovoadas:

 

Santa Bárbara, Bendita

Que no céu está escrita

Com raminhos de água benta,

Livrai-nos desta tormenta.

Espalhai-a lá para bem longe

Onde não haja eira nem beira,

Nem raminho de oliveira,

Nem raminho de figueira,

Nem mulheres com meninos,

Nem ovelhas com borreguinhos,

Nem pedrinhas de sal,

Nem nada a que faça mal.

Amém!

 

Desde há alguns anos que esta festa alia também a vertente de diversão e convívio às manifestações religiosas. O concerto da Banda e a atuação do Rancho são os momentos mais esperados pelos mais velhos. Para os mais novos não falta a música para dançar até às tantas.

 

O Santo António 

Com capela na entrada da Vila, oposta à de São Sebastião, tem a festa em Agosto. Para além da missa e da procissão pelas ruas da Vila, também acompanhada pela Banda, fazia-se o leilão das ofertas doadas pelos fiéis. Protetor dos animais domésticos, principalmente dos porcos, faziam-se-lhe promessas de chouriças, morcelas e farinheiras se os livrasse das malinas que os atacavam com alguma frequência. Se morriam, faltava o conduto do ano inteiro…

Por alturas do carnaval organizava-se o ramo: um homem (o Ti Calmão, no nosso tempo) percorria as ruas da Vila com um pau muito comprido que tinha cravado outros mais pequenos a toda a roda. As pessoas que tinham feito promessas vinham à porta, ou mesmo da janela dependuravam as peças de enchido que tinham prometido. O ramo era depois leiloado e o produto da venda revertia a favor do Santo.

Para além de proteção para os animais, também lhe eram feitas preces para proteção do olival:

 

Santo Antoninho pequenino

Que anda plos olivais

A guardar as suas azeitoninhas,

Que lhas comem os pardais.

Cruz em monte, cruz em fonte

Que nunca o diabo encontre,

Nem de noite nem de dia

Nem às horas do meio-dia.

Já os galos cantam,

Já os anjos se alevantam

Já Jesus subiu à cruz

Para nos guardar pra sempre.

Assim seja, Ámen Jesus.

 

O povo da Partida, do Casal da Serra e do Mourelo também tem muita devoção neste santo. Faziam-lhe grandes festas durante o mês de Agosto, mas, à semelhança do que se passa na Vila, também por lá as celebrações têm vindo a perder o fervor e brilho de outros tempos.  

 

O Santiago

Diz a lenda que depois de muito penar nas Lameiras, ao fundo da Partida, o Santo lá conseguiu que lhe fizessem a capelinha no cimo do Cabeço. É modesta, mas de lá abarca tudo à roda e pode ver os irmãos, com os quais andaria desavindo. A festa fazem-lha os moradores da Partida, do Violeiro, do Mourelo e Vale de Figueiras no primeiro de maio (na Partida fazem-lhe outra em Agosto). E que festa! Nenhum dos povos, nomeado rotativamente, quer ficar atrás do outro.

Com que vivacidade recorda a Ti São Pedro: «Quando era pelo Santiago era uma alegria. Mesmo quem andava por lá, nunca faltava. Era uma festa muito linda. Cada terra trazia o seu ranchinho com um homem a tocar concertina, e as mulheres atrás, a cantar. Ia tudo a pé por esse caminho afora. Quando lá chegávamos dávamos a volta à capela, sempre a cantar, a ver quem ganhava. Os do Vale da Figueira ganhavam quase sempre porque vinham os do Açor e ajudavam-nos no rancho. Depois da missa vínhamos para casa e comia-se a carne e os doces que já tinham sido preparados de véspera ou de manhã cedo. As famílias todas juntas, nem cabiam dentro de casa e vinha-se para a rua a comer. Era muito lindo!»

Com algumas diferenças, sinais dos tempos, a festa continua com o mesmo entusiasmo. Depois da missa e da procissão os homens dão várias voltas ao recinto a tocar bombos, pífaros, concertinas e castanholas; as mulheres, atrás, vão cantando e dançando. Um homem eleva a bandeira da terra que organiza a festa (neste ano vê-se a do Mourelo). Sempre que passam em frente da capela ajoelham todos, em recolhimento. A seguir, no adro, continuam a tocar, ao despique, e as mulheres dançam à roda. Uma alegria que contagia todos os que participam ou assistem.

Algumas famílias levam merenda, outras continuam a comê-la em casa, quase sempre com amigos que vêm de longe ou de outras terras ali à roda. Mais recentemente, já há que comer e beber com fartura no recinto da festa e muita gente mantém-se junto à capela até mais tarde. Aproveitam para cumprir uma tradição que diz que quem puser o chapéu do santo passa o ano inteiro livre de dores de cabeça:

 

Santiago, lá no alto,

É um anjinho do céu,

Tira as dores de cabeça

A quem põe o seu chapéu.

 

A Senhora da Orada

Por dentro há muito que a capela está a pedir obras, mas por fora é uma beleza. É também a que está no lugar mais bonito das redondezas. Será por isso que é visitado por muita gente ao longo de todo o ano; alguns para rezar e pagar promessas, mas muitos apenas para usufruírem da paz e beleza da paisagem e da frescura da água da fonte, com fama de milagrosa.

A festa é no quarto domingo de maio, mas houve tempos em que ainda o dia lá vinha longe e já no ar andavam as cantigas:

 

Nossa Senhora da Orada,

Este ano lá hei de ir,

Não vos hei de levar nada

Inda vos hei de pedir.

 

Nas vésperas era uma azáfama a fazer a merenda: tudo do melhor que havia em casa, a contar com a família toda. No domingo de manhã, um mar de gente, caminho acima; os cestos da merenda à cabeça das mulheres ou às costas dos homens. Os filhos mais pequenos, pela mão ou ainda ao colo.

Na missa campal, o sermão a contar a vida da menina escorraçada pelo pai ou a lembrar os que estavam longe, punha as mulheres em lágrimas. Depois era a procissão, toda a gente com velas que mal se conseguiam abarcar, para agradecer os favores recebidos ao longo do ano; quase sempre para pedir outros ficados por conceder.

O andor da Senhora, aos ombros dos rapazes mobilizados para a guerra.  

A seguir a merenda: uma fartura de tudo o que era bom estendida no chão, em cima duma toalha; a família toda à roda. Finalmente uma visita pelas tendas espalhadas ao longo do caminho ou um pezinho de dança ao toque de realejo ou concertina.

À tardinha regressava toda a gente a casa, já com saudades, mas ainda a cantar:

 

Nossa Senhora da Orada,

As costas vos vou virando,

Minha boca se vai rindo,

Os meus olhos vão chorando.

 

Algumas destas festas e romarias mantêm a mesma capacidade de chamar gente, quer seja levada pela fé ou apenas pela tradição, mas uma grande parte tem vindo a perder a importância de outros tempos. As razões são muitas, mas a principal será a perda de população em muitas terras, que começou com a emigração de muitos homens, principalmente para França. As mulheres que ficavam sozinhas com os filhos não tinham alegria para romarias; muitas acabaram por partir também e as terras foram-se esvaziando de gente. Por outro lado, a evolução da ciência e a melhoria da condição económica e social contribuiu para eliminar muitas doenças e a situação de pobreza que atravessava as gerações desde sempre. Deixou, por isso, de haver necessidade de recorrer tantas vezes à ajuda dos santos protetores.

Mas a fé no poder divino e dos santos continua. Ainda há dias o Papa Francisco pedia a união dos povos numa oração pelo fim desta pandemia. Conhecendo nós um pouco do seu pensamento e do teor das suas mensagens, não me parece que se referisse apenas a que batêssemos no peito e disséssemos muitos Pai-nossos e Ave-Marias…

M.L. Ferreira