quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Angola é nossa!


Era assim o refrão duma cantiga que, naquele tempo, se ouvia a toda a hora na telefonia. Ouvia-se também dizer que os pretos andavam a matar à catanada os donos das fazendas lá em África, e era preciso mandar tropas para lá, para defender o que era nosso. Era o começo da guerra.
Passado pouco tempo de abalarem as primeiras tropas, chegou cá a notícia de um polícia dos Pereiros que tinha sido morto em Angola. Durante algum tempo não se falava noutra coisa e no dia do funeral parecia o fim do mundo, com o povo todo em peso no cemitério, aos gritos. Apareceram também uns senhores fardados, cheios de medalhas ao peito, a dizer que era um herói morto em defesa da Pátria. Nessa altura eu tinha os meus dezasseis ou dezassete anos, e fiquei ansioso que chegasse o dia em que pudesse ir também para Angola ajudar a defender Portugal. À medida que o tempo passava, o meu entusiasmo aumentava; aumentava ainda mais a tristeza da minha mãe, que à noite rezava o terço, lavada em lágrimas, a pedir à Nossa Senhora de Fátima que acabasse com a guerra.
O dia em que fui à inspeção foi um dos mais lindos da minha vida. Só cá da Vila éramos perto de trinta, fora os da charneca, que iam noutros dias. Na véspera tínhamos andado a roubar vasos de flores às cachopas solteiras e durante a noite enfeitámos a Fonte da Praça com eles. Eram craveiros, cabeleiras, brincos de princesa e tudo o que apanhássemos. Elas também já sabiam e muitas até já os arranjavam de propósito para nós. De manhã abalámos todos numa camioneta e foi uma alegria, todo o caminho a cantar. Nesse ano ficámos todos apurados e mal chegámos cá à terra, já ao cair da tarde, deitámos meia dúzia de foguetes, logo ali na estrada Nova, e depois corremos as ruas todas da Vila, com o Zé Tété à frente a tocar concertina e o povo todo atrás, a acompanhar-nos. À noite, foi bailarico até às tantas.
Passados uns tempos assentei praça em Castelo Branco, em Cavalaria. Ao fim de dois meses, quando acabei a recruta e já estava à espera de embarcar, apareceram lá uns oficiais no quartel a perguntar quem é que se queria oferecer para os Comandos. Ao princípio ficou tudo calado, a olhar uns para os outros, mas quando eu levantei o braço houve mais dois que foram atrás e também se ofereceram. Passado pouco tempo estávamos a embarcar no Vera Cruz para Angola. Foram doze dias e doze noites sempre a andar, e foi lá, em Luanda, que tivemos mais quatro meses de instrução.
A recruta em Castelo Branco não tinha sido brincadeira, mas comparada com o que veio a seguir, parecia coisa de crianças. Ainda hoje não sei como é que alguém é capaz de aguentar tanta fome e tanta sede, e suportar as humilhações e as coisas horríveis que éramos obrigados a fazer. Foi tão duro que houve dois rapazes que não chegaram ao fim e voltaram às terras deles passado pouco tempo, dentro dum caixão.
Todos os dias, logo de manhã, o comandante punha-se à nossa frente, na formatura, e a primeira coisa que fazia era berrar: «Há alguém que queira desistir?» Foram poucos os que quiseram, e esses eram logo mandados embora, para a tropa regular, mas antes levavam uma carga de porrada à frente de toda a gente, que era para aprenderem.
Ainda houve duas ou três vezes que eu também pensei em ir-me embora. Um dia até cheguei a desabafar com um companheiro que já não aguentava mais e queria desistir. A resposta dele foi que fazia bem, que aquilo era coisa só para homens, não era para maricas. Maricas, eu? Havia de mostrar se não era tão homem como os outros, e se eles aguentavam eu também havia de ser capaz. Agora era uma questão de orgulho.
Depois de acabar a instrução estive em vários sítios, sempre em Angola. Não é que fosse igual em todo o lado, que houve pessoal que passou lá maus bocados, mas comparado com o que se ouvia dizer de Moçambique, e principalmente da Guiné, em Angola as coisas nem foram muito ruins. As tropas angolanas estavam mal preparadas e não tinham grande armamento, algumas vezes só catanas e canhangulos. A vantagem que tinham sobre nós era que conheciam bem o terreno, eram muito rápidos e atacavam de surpresa e onde menos se esperava. Muitas das mortes que lá houve do nosso lado também foram porque a instrução não tinha sido grande coisa, dois meses de recruta não era nada, e havia muitos descuidos, principalmente a mexer nas armas e com as minas, que quando explodiam davam logo cabo dum homem.
A maior parte das vezes a missão dos Comandos era socorrer as tropas quando eram apanhadas nalguma emboscada. Com a preparação e o equipamento que tínhamos, e transportados de helicóptero, depressa chegávamos aos sítios e resolvíamos a coisa. Mas nem sempre era assim; também houve ocasiões muito complicadas, só que parece que a gente enfrentava tudo como se fosse uma brincadeira, sem medo nenhum. Ainda hoje, quando penso nisso, me pergunto onde é que íamos arranjar tanta coragem. Havia quem dissesse que andávamos drogados, mas os únicos comprimidos que nos davam diziam que eram para desinfetar a água. Hoje não acredito.
O lema dos Comandos era “Um por todos, todos por um”. Tínhamos muito orgulho nele e dava-nos muita força. Nos grupos éramos escolhidos uns pelos outros, com base na confiança que nos unia, e havia um espírito de corpo tão grande entre nós que sabíamos que se algum estivesse em perigo, os outros arriscavam a vida para o socorrer. Mas era assim com todas as tropas, porque todos sabiam que, sozinho, ninguém saía da guerra com vida.
Quando acabei o tempo do serviço militar e regressei à terra, durante mais de um ano ainda continuei a ter algumas manias que trouxe lá de Angola. Por exemplo, quando ia à horta, ia sempre por atalhos ou pelo meio do mato. Fazia isso automaticamente, sem pensar, e eram os meus pais, ou quem ia comigo, que estranhavam e me perguntavam porque é que não ia atrás deles, pela vereda. Eu bem tentava disfarçar, mas mal dava por mim, lá estava outra vez fora do caminho. E se alguma coisa rebentava ao pé de mim, nem que fosse um balão, deitava-me logo por terra, a julgar que era uma bomba.
Hoje em dia, passados tantos anos, já ultrapassei muita coisa, mas há noites em que acordo às duas, três da manhã e ponho-me a pensar naqueles tempos. Muitas vezes já não sou capaz de voltar a adormecer e tenho que me levantar da cama com medo que a minha mulher acorde e me ouça a chorar. Choro por aquilo que fiz e que vi fazer; coisas horríveis que hei de levar comigo para a cova, porque nunca as contarei a ninguém, por mais que puxem por mim. Mas é assim: guerra é guerra e, ou se mata ou se morre. O problema é que aquela não foi uma guerra justa porque eles lutavam por aquilo que lhes pertencia: Angola não era nossa!

A guerra colonial: alguns números
A guerra colonial foi um dos acontecimentos mais dramáticos da História recente de Portugal. Com início em Angola, em 1961, na Guiné-Bissau em 1963 e em Moçambique em 1964, arrastou-se por 13 anos, terminando apenas com o fim da ditadura, no 25 de Abril de 1974.
Do lado do governo português envolveu cerca de 1 milhão de militares recrutados na Metrópole, e mais de 450 000 recrutados nas colónias.
Ao longo dos anos de guerra os efetivos mobilizados aumentaram significativamente: em Angola passaram de 33 477 em 1961, para 65 592 em 1973; na Guiné-Bissau passaram de 9 658 em 1963 para 33 035 em 1973 e em Moçambique passaram de 18 049 em 1964 para 51 463 em 1973.
Segundo dados das Forças Armadas, a guerra provocou 8 289 mortos (da nossa freguesia morreram 4) e deficiências permanentes em mais de 15 500 militares portugueses.
As despesas diretas com a Defesa Nacional pesaram cerca de 30% no Orçamento Geral do Estado, totalizando 150 milhões de contos.
Para além dos militares mortos ou que ficaram com deficiências permanentes, um número muito elevado terá ficado com traumas psicológicos difíceis de avaliar, mas que marcaram as suas vidas de forma indelével. Alguns, passados tantos anos, ainda se recusam a falar desses tempos. À maior parte ainda se lhes embarga a voz e humedecem os olhos quando recordam algumas barbaridades em que participaram ou testemunharam.            
Nota: Os números apresentados foram recolhidos no Museu do Aljube, Resistência e Liberdade, um lugar onde, facilmente, se pode revisitar a história de Portugal desde quase o início da República até ao 25 de Abril.

M. L. Ferreira

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Um monarca sem monárquicos


José Teodoro Prata

A nossa praça



Foi sempre bonita a nossa Praça! A da nossa infância, como nos lembra a publicação anterior, e a atual, da idade mais madura.
Era assim o aspeto dela no sábado à noite, para receber o Festival de Bombos.
À medida que os vários grupos (salvo erro eram uns nove ou dez, todos diferentes, mas todos muito bons) foram chegando, as pessoas começaram a juntar-se e a Praça quase encheu; e valeu a pena. Foi um dos momentos altos da “Agenda cultural” da nossa terra.
Parabéns aos organizadores!

M. L. Ferreira

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Poesia BIO



APRENDER A FAZER ALGO

I
Tinha linhas e agulha,
Mas faltava-me o modelo.
Saí ao meu quintal e vi
Uma aranha bem ocupada
E zás, a obra bem acabada.

II
Peguei nas linhas na agulha.
E segui o desenho.
Fiz um tal naperon, em teia bem acabado.
E em cima da mesa, muito bem representado.

III
Outro dia sentei-me, um pouco para descansar.
Então vi um formigueiro e formigas a passar.
Umas iam outras vinham, lá ao seu formigueiro.
E todo o santo dia, trabalham sem parar.

IV
Mas quem não viu já,
Um carreiro de formigas?
Mas olhem, reparem bem,
As que vão ao formigueiro.
E as que dele vêm,
Para contar com a outra.
Alguma coisa já tem.

V
Até é, como que se beijam.
Eu fiquei admirada,
Quando as olhei e vi,
Naquele banco sentada.
A natureza tanto tem para nos dar,
É um livro aberto,
Onde se estende o olhar.

Maria Ascensão Candeias dos Santos

Adelino Costa