terça-feira, 2 de agosto de 2022

Retrato de antepassados

«Nunca fui afeto a essa vaidade necrófila que leva tanta gente a pesquisar os que passaram, buscando os ramos e os enxertos da arvora que nenhuma botânica menciona - a genealógica. Entendo que cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que por cá anda. Saber de onde vimo e o que é que nos gerou, apenas nos dá um pouco mais de firmeza civil, apenas concede uma espécie de alforria para a qual em nada contribuímos, mas que poupa respostas embaraçosas e olhares mais curiosos do que a boa educação haveria de permitir. Ser filho de alguém bastante conhecido para que não fiquem em branco as linhas do cartão de identidade, é como vir ao mundo com uma espécie de salvo-conduto.

Para mim, nada me incomoda saber que para lá da terceira geração reinam as trevas completas. É como se os meus avós houvessem nascido de geração espontânea num mundo já todo formado, do qual não tinham qualquer responsabilidade: o mal e o bem eram obra alheia que a eles só competia tomar nas mãos inocentes. Apraz-me pensar assim, principalmente quando evoco um bisavô materno, que não cheguei a conhecer, oriundo da África do Norte, a respeito de quem me contavam histórias fabulosas. Descrevem-no como um homem alto, magríssimo e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, de tão raro, era uma festa. Disseram-me que matou um homem em duvidosas circunstâncias, a frio, como quem arranca uma silva. E também me disseram que a vítima é que tinha razão: mas não tinha a espingarda.

Apesar de tão espessa nódoa de sangue na família, gosto de pensar nesse homem que veio de longe, misteriosamente de longe, de uma África de albornozes e areia, de montanhas frias e ardentes, pastor talvez, talvez salteador - e que ali fora iniciar-se na ciência agrícola, de que logo se afastou para ir guardar lezírias, de espingarda debaixo do braço, caminhando num passo elástico e balançado, infatigável. Depressa descobriu os segredos dos dias e das noites, e depressa descobriu também a negra fascinação que exercia nas mulheres o seu mistério de homem do outro lado do mundo.  Por isso mesmo houve aquele crime de que falei. Nunca foi preso. Vivia longe da aldeia, numa barraca entre salgueiros, e tinha dois cães que olhavam os estranhos fixamente, sem ladrar, e não deixavam de olhar até que os visitantes se afastavam, a tremer. Este meu antepassado fascina-me como uma história de ladrões mouros. A um ponto tal que se fosse possível viajar no tempo, antes o queria ver a ele do que ao imperador Carlos Magno.

Mais perto de mim (tão puro eu estendo a mão e toco a sua lembrança carnal, a cara seca e a barba crescida, os ombros magros que em mim se repetiram), aquele avô guardador de porcos, de cujos pais nada se sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem teve contra si o rancor de toda a aldeia, porque viera de fora, porque era filho das ervas, e, não obstante, dele se enamorara minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por isso meu avô teve de passar a sua noite de núpcias sentado à porta da casa, ao relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinha jurado apedrejar-lhe o telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a noite pelo céu, enquanto minha avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E foi já de madrugada clara, que ambos se abraçaram um no outro.

E agora meus pais nesta fotografia com mais de cinquenta anos, tirada quando meu pai já voltara da guerra – a que para sempre ficou conhecida como a Grande Guerra – a minha mãe estava grávida de meu irmão, morto menino, de garrotilho. Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, com uma ara de gravidade solene, que é talvez temor diante da máquina que fixa a imagem sobre os rostos assim preservados. Minha mãe tem o cotovelo direito assente numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como se fosse uma asa. Ambos pisam, acanhados, um tapete de ramagens. Ao fundo, a tela mostra vagas arquitecturas neoclássicas. 

Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, um outro avô posto na roda, (filho oculto de uma duquesa, quem sabe?), uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato – que mais genealogia me importa? A que melhor árvore poderei encostar-me?»

Crónica do livro "Bagagem do Viajante", de José Saramago

Maria Libânia Ferreira