«Nunca fui afeto a essa vaidade necrófila que
leva tanta gente a pesquisar os que passaram, buscando os ramos e os enxertos
da arvora que nenhuma botânica menciona - a genealógica. Entendo que cada um de
nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o
tempo que por cá anda. Saber de onde vimo e o que é que nos gerou, apenas nos
dá um pouco mais de firmeza civil, apenas concede uma espécie de alforria para
a qual em nada contribuímos, mas que poupa respostas embaraçosas e olhares mais
curiosos do que a boa educação haveria de permitir. Ser filho de alguém
bastante conhecido para que não fiquem em branco as linhas do cartão de
identidade, é como vir ao mundo com uma espécie de salvo-conduto.
Para mim, nada me incomoda saber que para lá da
terceira geração reinam as trevas completas. É como se os meus avós houvessem
nascido de geração espontânea num mundo já todo formado, do qual não tinham
qualquer responsabilidade: o mal e o bem eram obra alheia que a eles só
competia tomar nas mãos inocentes. Apraz-me pensar assim, principalmente quando
evoco um bisavô materno, que não cheguei a conhecer, oriundo da África do
Norte, a respeito de quem me contavam histórias fabulosas. Descrevem-no como um
homem alto, magríssimo e escuro, de rosto de pedra, onde um sorriso, de tão
raro, era uma festa. Disseram-me que matou um homem em duvidosas
circunstâncias, a frio, como quem arranca uma silva. E também me disseram que a
vítima é que tinha razão: mas não tinha a espingarda.
Apesar de tão espessa nódoa de sangue na
família, gosto de pensar nesse homem que veio de longe, misteriosamente de
longe, de uma África de albornozes e areia, de montanhas frias e ardentes,
pastor talvez, talvez salteador - e que ali fora iniciar-se na ciência
agrícola, de que logo se afastou para ir guardar lezírias, de espingarda
debaixo do braço, caminhando num passo elástico e balançado, infatigável.
Depressa descobriu os segredos dos dias e das noites, e depressa descobriu
também a negra fascinação que exercia nas mulheres o seu mistério de homem do
outro lado do mundo. Por isso mesmo
houve aquele crime de que falei. Nunca foi preso. Vivia longe da aldeia, numa
barraca entre salgueiros, e tinha dois cães que olhavam os estranhos fixamente,
sem ladrar, e não deixavam de olhar até que os visitantes se afastavam, a
tremer. Este meu antepassado fascina-me como uma história de ladrões mouros. A
um ponto tal que se fosse possível viajar no tempo, antes o queria ver a ele do
que ao imperador Carlos Magno.
Mais perto de mim (tão puro eu estendo a mão e
toco a sua lembrança carnal, a cara seca e a barba crescida, os ombros magros
que em mim se repetiram), aquele avô guardador de porcos, de cujos pais nada se
sabia, posto na roda da Misericórdia, homem toda a vida secreto, de mínimas
falas, também delgado e alto como uma vara. Este homem teve contra si o rancor
de toda a aldeia, porque viera de fora, porque era filho das ervas, e, não
obstante, dele se enamorara minha avó materna, a rapariga mais bela do tempo. Por
isso meu avô teve de passar a sua noite de núpcias sentado à porta da casa, ao
relento, de pau ferrado sobre os joelhos, à espera dos rivais ciosos que tinha
jurado apedrejar-lhe o telhado. Ninguém apareceu, afinal, e a lua viajou toda a
noite pelo céu, enquanto minha avó, de olhos abertos, aguardava o seu marido. E
foi já de madrugada clara, que ambos se abraçaram um no outro.
E agora meus pais nesta fotografia com mais de
cinquenta anos, tirada quando meu pai já voltara da guerra – a que para sempre
ficou conhecida como a Grande Guerra – a minha mãe estava grávida de meu irmão,
morto menino, de garrotilho. Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente
para o fotógrafo, com uma ara de gravidade solene, que é talvez temor diante da
máquina que fixa a imagem sobre os rostos assim preservados. Minha mãe tem o
cotovelo direito assente numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao
longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha
mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como se fosse uma asa. Ambos
pisam, acanhados, um tapete de ramagens. Ao fundo, a tela mostra vagas arquitecturas neoclássicas.
Um dia tinha de chegar em que contaria estas
coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, um outro
avô posto na roda, (filho oculto de uma duquesa, quem sabe?), uma avó
maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato – que
mais genealogia me importa? A que melhor árvore poderei encostar-me?»
Crónica do livro "Bagagem do Viajante", de José Saramago
Maria Libânia Ferreira