As referências dos
últimos tempos à Cruz da Oles e ao Rolão Preto, feitas pelo Zé Manel, trouxeram-me
à lembrança memórias antigas que gostava de partilhar convosco.
No início da década de
60, quando apareceram os Beatles, que ouço enquanto vos escrevo aqui no petromax, e que nós nem fazíamos ideia
do que isso era, porque não tínhamos televisão, nem telefonia, que traziam de
fora outros mundos tão diferentes… andava o meu pai na resina, na quinta do
Rolão, a ganhar uns cobres para comprar a serra e amealhar qualquer coisa para
a velhice, que reforma não havia.
Juntou lá algum dinheiro,
porque aquilo funcionava num mix de
pagamento à jorna e de uma percentagem sobre o produto final. O objetivo
consistia em produzir o máximo, para receber no final da fragata dois tostões
por quilo de resina entrado na fábrica. Não faço ideia, mas deviam ser uns
milhares que ele colhia e este era um dos motivos pelos quais o Rolão gostava
dele. É que ele recebia também uma percentagem por quilo e sabia, através de
conhecimentos que tinha na Fábrica, que a equipa do meu pai era das mais
produtivas.
O pinhal, tanto quanto
sei, também era bom. Pinheiros graúdos e a maioria das voltas (quantidade de
pinheiros diários que cada trabalhador tinha de colher ou renovar) era de bons
caminhos, mas disso saberá melhor o Zé Manel, que eu para fugir ao destino fui para
o Seminário e foi o melhor que fiz.
Ainda fiquei um ano na
Serra, depois da quarta classe, com a minha mãe, a guardar cabras, a regar, a
plantar batatas, ao mato, mas depressa percebi que aquilo era pesado demais
para a minha magreza.
- Ainda posso ir para o
Seminário? - E lá fui. Até latim estudei…
O meu pai andou na resina
imensos anos. O Rolão gostava dele, porque era bom trabalhador e bem-disposto.
E não digo isto por ser filho dele. Estou aqui mais como porta-voz de
testemunhos que alguns que com ele trabalharam me deixaram e que me aqueciam a
alma quando os ouvia:
- Eh pá, que bons tempos
passei no Rolão com o teu pai! Era uma alegria. E depois, nos meses de Verão,
tínhamos a companhia das terceiras (tratavam o milho e o feijão pequeno ao
terço, lá na quinta).
Houve uma época em que a
equipa era constituída pelo Zé Augusto (da Ti Eulália do café), companheiro de tantas
fragatas, O Manel Pedro, mais conhecido por Manel Pecanino e pelo Zé Manel Mosca,
que viria a ser meu primo.
Também por lá passou o primo João
(paraquedista) e o meu pai todo gabarola:
- Ó Sr. Rolão, sabe que
trago aí comigo um sobrinho que é paraquedista? É um gajo corajoso. Eu nem era
capaz de subir ao cimo de um pinheiro, quanto mais saltar lá de tão alto com um
lençol aberto.
- O quê, Barroso?! Anda
aí contigo? Vai lá chama-lo…
- Aqui está o meu
sobrinho João, Sr. Rolão.
- Então pá, tu andas lá
nos aviões a saltar de lá para baixo e não tens medo que aquilo não abra? Não
tens medo de morrer?
O João com a resposta
pronta:
- Não tenho medo, porque
aquilo não foi feito para matar homens, mas para salvar vidas.
O Rolão sem resposta.
Disse mais tarde ao meu:
- Ó Barroso, o teu
sobrinho é um gajo arrojado e inteligente. Vê a resposta que me deu… ainda um
garoto.
De Verão, como as noites
são pequenas e não havia posses para motorizadas, só bicicletas e não para
todos, para poupar tempo e esforço, que a barreira da Oles é dura de roer,
dormiam lá durante a semana.
À noite, coziam umas
batatas com bacalhau ou uma chouriça, uns feijões pequenos com um pedaço de
conduto e não havia esquisitices. O ar dos pinheiros e o trabalho pesado, sem
horas de largar, abriam o apetite para o que viesse.
Depois da ceia, conversa
e paródia com as terceiras. Jovens como eles e doidas para namoriscar, enquanto
durasse o terço ou até mais, se a coisa pegasse como deve ser.
O tempo da colha era
duro, mas as voltas da renova levavam-se bem e sobravam uns tempos que eram
ocupados ao gosto do freguês.
Um belo dia, o Zé Manel,
com imenso isco à mão de semear, (andavam as terceiras a colher milho, os
caneiros não faltavam) lembrou-se de armar uns custis que lá tinham e vai na
volta apanha uma pega, que na verdade é um gaio comum, e vai de o depenar,
estripar e de o pôr à brasa. Um cheirinho evanescente a assado a perfumar o ar
e o meu pai a chegar de pôr uns barris na água, para não perderem resina quando
começassem a colha, atira:
- Então, Zé Manel, caça
grossa, hoje?
- Ó Ti Jaquim, pegue lá um
bocadito.
- És tonto? Isso até para
ti é pouco.
- Vá lá, nem que seja só
um bocadinho.
Abre a navalha e volta à
carga:
- Nem que seja só um bocadito
do coração, para provar.
Vai cortar o coração e
começam a cair areias, grãos de milho, formigas e pinhos bravos já meio
desfeitos e eis o Ti Jaquim:
- Ó Zé Manel, mas que
rapaz que tu me saíste. Como é que raio, um filho de um caçador não distingue
um coração de uma moela?
Gargalhada geral e gozo
por muito tempo… Até hoje ou não acharam piada? Isto ao vivo era outra loiça,
mas estamos longe.
Lisboa, 28 de janeiro 2015
Francisco Barroso.