quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Santos e santorinhos

Aproximamo-nos dos Santos e dos santoros e por isso vale a pena republicar uma história já aqui apresentada em 2013, que nos recorda dois santos (duas santas) dos muitos que vamos lembrar e ainda nos dá a conhecer as nossas tradições da época.

Aos onze anos fui trabalhar para Castelo Branco, estive lá dois anos e depois vim para a Casa Conde, em 1947 ou 48. O feitor era o senhor José Lourenço que vivia na casa com a mulher, o filho e a nora. Mas ele e a mulher iam dormir à casa do convento, na Cerca.
Como eram duas casas grandes e muito trabalho, havia mais duas criadas, uma criada de voltas e a cozinheira. Numa semana eu lavava a roupa, na semana seguinte limpava as casas. Eu gostava muito de cozinhar e a cozinheira deixava-me. Mas, como ainda era pequena e não chegava ao fogão, punha-me em cima de um meio alqueire para lá conseguir pôr as panelas.
Às vezes estava a passar a ferro e o senhor José Lourenço no escritório. Ele queria que o concelho voltasse e andava a escrever uns versos para eu ir cantar à Fonte Velha.
Vinha ter comigo e dizia-me: “Ó Eulália, canta lá agora esta.”

Querido São Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
que torne o concelho a vir.

Foi terra muito importante
Lá nos seus tempos de glória.
Ainda tem alguns pregões
Que lhe servem de memória.

Querido São Vicente,
Nosso protetor
Para vos ver contente, amor,
Vai novo, vai velho, vai tudo a pedir,
Que torne o concelho a vir.

Se nós trabalharmos
Todos de amor e vontade
O concelho virá já, já.

Se não trabalharmos,
De amor e vontade,
O concelho virá mais tarde.

Não sei se havia alguma cerimónia, mas não cheguei a ir lá.
Ele tinha uma caderneta para cada mercearia. Fazia compras em todas, para todos andarem contentes: Chico Tavares, Manuel da Silva, Aurélio e Francisco Matias. Quando uma criada ia às compras, levava a caderneta e o merceeiro apontava tudo. No fim do mês, faziam-se os pagamentos.
Onde agora mora a ti Janja, era o forno deles. A Luz Jerónimo é que trabalhava como forneira, mais o marido, o Albertino Henriques. Todos os dias cozia o forno, menos ao domingo. Quem lá ia deixava a poia: um pão por cada tabuleiro e dois ou três bolos por cada lata. Como coziam várias pessoas ao mesmo tempo, cada uma punha um sinal nos seus pães, para os conhecer. À noite, a forneira pegava no cesto do pão da poia e ia à Casa Conde fazer a divisão, metade para cada um. Como nós não conseguíamos comer o pão todo, nas quartas-feiras de manhã dava-se o pão aos pobres. Cortava-se cada pão em dois ou três pedaços e oferecia-se a quem viesse à porta.
Pelo São Martinho, a malta nova juntava-se em grupo e ia cantar e pedir o vinho novo aos ricos. No ano em que eu lá trabalhei, vieram à Casa Conde. No fim de cantarem, o Sr. José Lourenço veio à porta e respondeu-lhes:

Cantam muito bem e muito lindo
Mas este ano o vinho já está findo

Os rapazes insistiram e, como não lhes davam nada, cantaram o trinta martelos:

Trinca martelos
E torna a trincar
Este barba de farelos
Não tem nada para nos dar

O Sr. José Lourenço e a Dona Palmira foram dormir para a casa do convento, mas os rapazes não largaram a porta. Então a Menina Belinha e o Menino Antoninho regaram-nos com um regador, da varanda, e eles abalaram a fugir, todos molhados.
Nos Santos, as crianças vinham pedir um santorinho. Havia um cesto cheio de nozes e cada um só podia meter uma vez a mão e levar as que conseguisse tirar. Alguns ficavam muito tempo com a mão lá dentro, a esticar os dedos para apanharem mais nozes.
Os diospiros vendiam-se a um tostão cada um. No fim da escola, as crianças vinham comprá-los. Aliás, toda a fruta era para vender, o pessoal da casa só podia comer a fruta caída.
Uma noite, o Sr. José Lourenço estava em casa e viu pela janela os ramos do diospireiro a abanar. Mandou um sobrinho ver o que era, porque a viúva do irmão dele trabalhava lá com os dois filhos. O rapaz voltou e disse que era o irmão dele. “E quem mais, não era só uma pessoa!” O rapaz respondeu a custo: “Mais o Mudo.” O senhor José Lourenço chamou a cunhada e disse-lhe que o filho estava despedido e só ficava se ele lhe pedisse perdão de joelhos. A senhora chorava, pois não tinha para onde ir, mas o filho não queria pedir perdão. Andaram nisto quinze dias, mas nesse tempo havia poucos trabalhos e o rapaz acabou por vergar. Foi uma coisa que me fez muita impressão. Na vereda, com a mãe e o filho a chorarem muito, o rapaz pôs-se de joelhos no chão, em frente ao tio José Lourenço, e pediu-lhe perdão.
Ele era muito rigoroso, mas também era bom homem. Dava trabalho a muita gente, sobretudo aos mais velhos que já não podiam andar ao dia. Devia pagar-lhes um pouco menos, mas para eles era bom.
Eu vim-me embora por causa de uma coisa que se passou com a Dona Palmira. No fim de servirmos as refeições, se a comida que sobrava era para guardar para outra refeição, ela mandava-me guardá-la num certo armário e dizia-nos o que devíamos comer. Um dia, a comida foram lulas e no fim a Dona Palmira não me mandou guardar o resto. Eu trouxe para a cozinha e foi dividido pelas três criadas: uma colher para cada uma. À hora de preparar o jantar, a Dona Palmira destinou a comida para cada um e disse que o senhor José comia o resto das lulas. A cozinheira respondeu-lhe que já as tínhamos comido, porque ela não mas tinha mandado guardar. A Dona Palmira ficou muito exaltada e ralhou comigo aos gritos, porque eu é que as tinha trazido para a cozinha.
Nos dias seguintes, ela ficou na casa do convento e eu mandei dizer à minha mãe que me despedia. A minha mãe veio à Casa Conde e disseram-lhe que eu podia ficar se fosse pedir desculpa à Dona Palmira. A minha mãe disse que eu é que decidia, mas que a colher que eu tinha deixado em casa ainda lá estava, por isso a decisão era minha. E eu não quis ficar, pois não ia pedir desculpa por uma coisa que não era só eu que tinha feito.
 José Teodoro Prata
com colaboração de Luzita Candeias

José Teodoro Prata

sábado, 26 de outubro de 2019

Pe. Jerónimo à desgarrada


Acabo de chegar do Tortosendo, onde decorreu o encontro dos antigos alunos do Seminário. Depois do almoço, fui surpreendido com o Pe. Jerónimo a  cantar à desgarrada com os trovadores Costinha (esteve em SVB, na festa das bodas de ouro do sacerdócio do Pe. Jerónimo) e Tiago Silva. No momento da foto, o Costinha (de costas) responde ao desafio do Pe. Jerónimo.

José Teodoro Prata

terça-feira, 22 de outubro de 2019

A Aldeia das Dez - A terra dos Moreira

À procura das raízes
                                                          
Quando, há dois anos, o José Teodoro publicou o registo de batismo de Inácio Moreira, a primeira criança com aquele apelido a nascer em São Vicente, fiquei cheia de vontade de ir conhecer a terra de onde viera José Moreira, o pai do menino, para se casar com Rosa Luísa, nossa conterrânea, já lá vão uns duzentos anos. O casal teve muitos filhos e é dele que descendem todos os Moreiras que atualmente vivem em São Vicente ou cá têm raízes.  
Já tinha andado mais que uma vez por aqueles lados, mas, por ficar um pouco fora de mão, nunca me aventurara pelo caminho que leva à Aldeia das Dez. Nem sabia o que perdia, mas se calhar ainda bem, porque agora, sabendo os laços que nos unem, pude olhá-la com outros olhos.
O caminho até lá é muito bonito, com montanhas e vales que nos fazem querer parar várias vezes ao longo da estrada (se for na primavera e Verão, é ainda mais bonito, pela variedade de cores que pintam a serra). A primeira paragem foi nas Pedras Lavradas, para um café e olhar a paisagem a perder de vista. Depois, quase a seguir, o Poço da Broca. É um espelho de água formado por várias cascatas e açudes, rodeado por campos de cultivo, um antigo moinho, agora transformado em restaurante, e várias azenhas também recuperadas.


Na porta de uma das azenhas está escrito o provérbio «Se a farinha for grossa, fica a broa esquartejada; se a farinha for fina, fica a broa esconchada», e lembrei-me do desânimo da minha avó quando a broa ficava mal cozida.
Continuando a viagem, pouco depois de Vide, chega-se a Alvoco das Várzeas, de onde eram naturais alguns antepassados de José Moreira (um avô paterno e outro materno).

É uma aldeia já quase sem gente, como tantas, mas com uma zona ribeirinha muito bonita e cuidada,


                   e uma ponte medieval, sobre o rio Alvoco

Na Ponte das Três Entradas, um pouco mais à frente, é obrigatório parar para ver a ponte onde se juntam os rios Alva e Alvoco, afluentes do Mondego.


Logo a seguir começamos a subir a encosta e chegamos à Aldeia das Dez. Fica quase no cimo da serra, com uma vista larga sobre o Açor e a Estrela (infelizmente, quase tudo queimado pelos fogos de há dois anos).


               Penedo da Saudade (miradouro à entrada da aldeia)

Sítio de encontro em segredo
Antigamente o Penedo
Era só dos namorados
E a sobreira fingia
Não os ver e até sorria
Quando os via abraçados

Este mirante é antigo
Desde sempre deu abrigo
A quem cá veio por bem
Em noites quentes de estio
Vinham as ninfas do rio
Aqui namorar também

Serenatas no Penedo
Eram feitas em segredo
Em noites de lua cheia
E a sobreira não dizia
Quem é que as fazia
Já tarde depois da ceia

Ó Penedo da Saudade
Diz à sobreira que guarde
Os segredos dos namorados
Nesta paisagem de enleio
Segredos de quem cá veio
Entre os dois estão guardados

Ó Penedo eu não sei
Quem te fadou eu sonhei
Que foi uma fada boa
E te deu por companheira
Amiga esta sobreira
Diz que nunca te atraiçoa.

(Poema escrito na placa junto ao miradouro. Como se vê, a sobreira também ardeu, mas continua de pé, atenta.)


Aldeia das Dez é uma terra muito antiga, provavelmente ainda de antes da fundação de Portugal. Os becos estreitos, o granito das casas e monumentos, e as ruínas de antigos solares e são testemunhos de outros tempos.


                               Ao fundo da rua estreita vê-se a ruína do Solar Pina Ferraz

A justificar o nome da aldeia, existe uma lenda (ver na internet ou na publicação de 13/07/2017, aqui nos Enxidros), mas há também quem lhe chame a Aldeia das Flores por, cada recanto, ser um pequeno jardim.


Para além das vistas, Aldeia das Dez tem também muito património construído (casas de habitação, cemitério dos Abranches, fontes, Igreja Matriz e capelas) que merece ser visitado.


Largo com fonte e cruzeiro, bom para uma pausa

Deve também ter sido uma povoação com alguma importância em termos económicos, que se adivinha pela arquitetura de algumas habitações e o nome das ruas que referem atividades variadas (Tecelões, Ferreiros, Douradores, etc.).
Por fim, a cereja em cima do bolo:


Placa na frontaria de uma casa (encontrei muitas placas com o nome Moreira no cemitério)

Dei a volta a quase toda a aldeia, mas cruzei-me apenas com um morador. A conversa foi quase só lamentos pela falta de gente, pelos tempos que levaram os novos para longe, pela saudade dos filhos que estão fora, ou pelo fogo que vai deixando tudo negro à roda. Mas, nas entrelinhas, lia-se o enorme orgulho por aquela terra tão antiga e tão bonita. 
A viagem de regresso a São Vicente foi pelo Piódão, com passagem pelo santuário da Senhora das Preces, lugar de romagem de muita gente da nossa terra. A beleza da paisagem salpicada de pequenas aldeias de casas de xisto dava para outro artigo. Fica a referência a um lugar, com vista sobre Piódão, memorial a Miguel Torga.


Dizem que era neste lugar, com vista para a serra imensa, com a aldeia lá em baixo, que Miguel Torga vinha meditar e inspirar-se para a sua escrita. Lê-se na inscrição:
Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo. Já o fiz das outras imagens da configuração adulta. Faltava-me esta do ovo embrionário.”

Ao longo de quase toda a viagem não deixei de pensar nas razões que terão levado José Moreira a deixar a sua terra, atravessando montes e vales, para vir casar em terra alheia.
A Revista do Expresso de 12 de outubro traz uma entrevista de Ai Weiwei, um artista e ativista chinês, onde, a dado passo, diz o seguinte: “A migração é a condição humana. É onde estamos hoje. Todos viemos de algum lado, ninguém é nativo de um só local.” Estará aqui a explicação para esta mistura que nos caracteriza como povo. Oxalá também ajudasse a compreender e aceitar as idiossincrasias dos outros.

Maria Libânia Ferreira (também Moreira)

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A apresentação de 17.10.2029


Ontem, 17 de outubro, no anfiteatro da USALBI. 
A mesa da sessão: Maria Libânia, autora; José Teodoro, autor; Dr.º João Ruivo, apresentador; o representante no núcleo de Castelo Branco da Liga dos Combatentes; João Carrega, representante da editora RVJ; Carlos Semedo, representante da Câmara Municipal.




 Depois da apresentação da obra, os sanvicentinos presentes falaram de alguns combatentes, em especial dos combatentes seus familiares.
Comecei eu, José Teodoro...

 ... seguiu-se a Zulmira...

 ...depois o João Candeias...

 ...o António Ramos, o filho de Hipólito Nascimento dos Santos (não visível na foto), Maria João Guardado Moreira (neta de Manuel da Silva)...

...e a Libânia.

Pena que, após mais de um mês de diligências, ainda não tenhamos conseguido mais livros para vender em São Vicente da Beira!

José Teodoro Prata
Fotos de Florinda e Afonso Carrega

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Apresentação do livro em Castelo Branco

Esta quinta-feira, 17 de outubro, às 18 horas, no anfiteatro da USALBI (no antigo quartel de Cavalaria, onde funcionavam os serviços técnicos da Câmara - passar o arco e virar à esquerda).
Apresentação do Dr.º João Ruivo.

José Teodoro Prata

domingo, 13 de outubro de 2019

Um enxame "bravio"

O meu primo João Candeias tinha um enxame de abelhas entre uma rocha e a raiz dum pinheiro. Comprámos o equipamentos necessário e, vestidos a rigor, fomos mudá-lo para uma colmeia.
Não foi fácil, pois era preciso deslocar a rocha.

 

Tinha uns 8 favos, uns grandes  e outros pequenos. Havia alguma criação, mas pouco mel, pois já há mais de dois meses que não há floração. 

 

Prendemos os favos aos quadros e colocámo-los na colmeia.


 E lá deixámos as abelhas na sua nova casa, guardadas pelo caça-vespas asiáticas.

Dirão que era melhor deixar a natureza funcionar por si. Neste caso, tenho dúvidas que o enxame sobrevivesse até à primavera, sem alimento e sob os ataques constantes das vespas.

José Teodoro Prata
(Fotos do Francisco Luzio)

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Na próxima quinta-feira

Auditório da USALBI: na Devesa, no edifício do antigo quartel, passa-se o pórtico de entrada e vira-se à esquerda. Entra-se e segue-se em frente.

José Teodoro Prata

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Legislativas 2019

Como de costume, na freguesia de São Vicente da Beira os resultados quase coincidiram com os nacionais.

PS: SVB - 43,33%; concelho - 40,10%; distrito - 40,88%; nacional - 36,65%

PSD: SVB - 32,17%, concelho - 26,04%; distrito - 26,33%, nacional -27,90%

BE: SVB - 9,00%; concelho - 11,54%; distrito - 11,05%; nacional - 9,67%

CDU: SVB - 2,67%; concelho - 4,28%; distrito - 4,75%; nacional - 6,46%

CDS:  SVB - 2,83%; concelho - 3,02%; distrito - 3,71%; nacional - 4,25%

PAN: SVB - 1,17%; concelho - 3,10%; distrito - 2,38%; nacional - 3,28%

LIVRE: SVB - 1,33%; concelho - 0,97%; distrito - 0.89%; nacional - 1,09%

ALIANÇA: SVB - 1,50%; concelho - 1,04%; distrito - 0,76%; nacional - 0,77%

PCTP: SVB - 1,00%; concelho - 0,69%; distrito - 0,74%; nacional - 0,68%

Restantes partidos: abaixo de 1%

José Teodoro Prata

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

O amigo e outras narrativas


Era uma velha casa de granito, no cimo de Vila, mesmo em frente da minha! A cor clara das paredes escureceu com os anos, por ação do carujo das invernias rigorosas e continuadas que havia naquele tempo!
De início, desde que me lembro, morou lá o Zé Rente e a mulher, a Cecília, a quem, nunca soube porquê, todos tratavam por Decília. Não era caso único de troca de nomes ou palavras. A gente comum da Vila e, mesmo, da Beira Baixa, percebiam muito de plantar couves e semear batatas! No seu mester, faziam tudo como é dado! Agora, dizer os nomes e as palavras corretamente, é que não era com eles! Não admirava! Nem eles eram menos inteligentes que os outros! Nada disso! Cada um, sabe daquilo que aprendeu!
Já, o Rente, do nome do marido, era alcunha!
Como noutras ocasiões se tem dado nota, a malta da Vila, lançava barbaramente, sobre qualquer boa criatura, a corrosão da alcunha! Bastava uma pequena lacuna moral ou física do fabiano e a coisa acontecia!
— Para isso têm eles porte! Almas de seiscentos! — diziam alguns dos alcunhados, por despeito…!
E, falando de alcunhas. Costumava vir todos os anos à Vila, pelas festas, o machacaz de um tendeiro da Póvoa, a vender ratoeiras, costis, armelas para pássaros e outras balhanas. De riso insosso e benévolo, alto e largo de ossatura, um tanto taralhouco e pouco desembaraçado, era um pobre diabo a roçar um nadinha a carência de expediente mental! 
Nos primeiros anos que veio mercadejar, foi logo objeto da atenção de certa mocidade da terra, inconsciente e desafiadora, ávida de algum caráter benevolente como o dele, para lhe extirpar o âmago. Puseram-lhe, então, a alcunha de Ratoeiras, tendo em vista o material que vendia para combate aos roedores.  
Porém, vendo bem, a avaliar pelos seus atributos pessoais, este negociante — que mereceria tanta dignidade como qualquer outro! — suscitava outra alcunha que não aquela; e, em conformidade com esse exame mais cirúrgico, passaram a chamar-lhe Alma Grande!
Mas havia quem o apodasse das duas maneiras! Se calhar, o homem, na terra dele, nem tinha qualquer apêndice estranho ao nome próprio! Nesta terra, porém, as regras eram estas!  
Não era apenas nos contos de Torga que havia um Alma Grande. Muitos outros podiam existir por esse Portugal. O que, decerto, aconteceria. Caso, era que mostrassem os predicados que este tendeiro da Póvoa exibia.
Na Vila, era tudo deste jaez!
Tanto assim que também cá esteve um rapaz da Atalaia do Campo, filho do feitor da Casa Conde — uma das quatro casas nobres da terra — que frequentava as primeiras letras, na Vila, com os da mesma idade.
Ora, lia-se no livro de leitura da escola uma lição sobre um pastor que ia para o campo com as ovelhas e levava o seu farnel, que repartia com o Fiel, o cão. Mas o rapaz em vez ler:
— O pastor leva a sua merenda para si e para o Fiel;
lia:
— O pastor leva a sua merenda pêra si e pêra o Fiel.
Foi quanto bastou para, de imediato, ser cognominado de Pêra, pelos próprios condiscípulos! E a partir dali, fosse nos jogos do pião ou da bilharda, era o Pêra.
E pronto! O rapaz estava marcado!
Ah! Malta de um raio para a velhacaria!   
O curioso é que parecia não haver memória de uma bulha por causa das alcunhas. Se houvesse desentendimento, essa não seria, com certeza, a causa próxima. E quando havia um demandante que tratasse alguém pelo epíteto excrescente, podia logo receber na resposta, mais ou menos acre, a devolução da sua própria alcunha. Porque, com toda a certeza, também a devia ter, para não fugir à norma!  
Mas não! A alcunha não era ofensa — se de ofensa se pode falar — capaz de gerar um conflito a sério. Os barulhos — quando os havia — eram mais por amor ao tinto e à aguardente que outra coisa! 
Conformando-se pois, em parte, e dando por outra parte, um certo desconto aos mal intencionados, a maioria dos concidadãos fazia por não ligar nenhuma a essa malandragem de impositores de apelidos e suas tramoias; das quais, segundo se crê, as mais sofisticadas eram entretecidas contra o semelhante, à noite, nas rodas de adjunto e nas vendas do Zé Canhoto ou do João Coxo, enquanto bebiam copos!
Estes mesmos dois taberneiros o podiam atestar, com os respetivos enxertos no nome, aliás, bem notórios e evidentes. O primeiro, usava principalmente a mão esquerda quando enchia os copos de vinho e os punha em cima do balcão; e o segundo tinha uma perna amputada por causa de um acidente de caminho de ferro, só podendo deslocar-se com a ajuda de duas muletas. Os dois homens de negócios estavam, também eles, devidamente rotulados!
Correões e hereges era o que se podia chamar àqueles grupos de renegadores dos cristianíssimos nomes da gente pacata, solenemente apostos pelo representante da santa religião católica na pia batismal.
Enfim, apesar disso, sempre sobrava da alcunha algo de positivo. É que, depois de suficientemente divulgada, tinha o préstimo de identificar melhor e mais rapidamente o seu titular do que o próprio nome que, muitas vezes, era relegado para o património imaterial caduco da coletividade!
  
O Zé Rente e a Cecília, de que falávamos, tinham três filhos.
Durante a semana, ele andava lá para a Covilhã a trabalhar nas fábricas de têxteis e só regressava aos sábados. Também era muito dado a montarias! Quando vinha, no fim da semana, se fosse na época da caça, fazia as suas batidas ao coelho, à lebre e à perdiz, juntamente com os parceiros de atividade venatória! Um deles era o pai, o ti’ Chico das Petas, um velho caçador; tão antigo, que a sua espingarda ainda era das de carregar pela boca! E cujas aventuras na caça — que ele contava com o ar mais sério deste mundo! — eram tão fantasiosas que só os mais ingénuos acreditavam! Mas davam para criar uma grande narrativa, cheia de histórias hilariantes! Porque ele tinha muito talento para contar partes da caça! Recordar aqui uma dessas passagens, tem que ficar para outra ocasião, se vier a haver lembrança!  

Enquanto o marido laborava nos teares nas encostas da serra da Estrela, a Cecília vivia na Vila, na casa de granito, com os filhos, a Ana Maria, o Chico e o Emílio. Como era sua obrigação, em primeiro lugar, cuidava deles, para os trazer limpos e desassemelhados; em segundo lugar, tratava de um bocado de horta! Mas era manifesto que, pela sua forte estrutura física, energia e vontade, era capaz de muito mais! Uma verdadeira mulher de armas! Tanto quanto era certo o marido — que a ela se abaixava uns bons centímetros em largura e altura — possuir espingarda e ser caçador!
Em certas manhãs de sol, pousavam, numa grande oliveira cordovil do meu quintal — um quintal enorme que eu tinha! — bandos de pardais a chilrear; então, a Cecília pegava na espingarda do marido, apontava para o sítio onde eles eram como um novelo e fazia tiro da janela de sua casa, do outro lado da rua! Caíam logo mortos oito a dez infelizes pardais!
— Ah! Mulher de uma cana! Uma dama a valer mais que um valete! — diria um vizinho que por ali passasse e presenciasse a cena!
Já, as vizinhas, essas, benziam-se de admiração! Nunca se vira uma coisa assim! Uma mulher pegar numa espingarda a sério e disparar contra os bandos de pardais, sem medo do coice do tiro! Era obra! Ela, porém, bem se importava com a maneira como os vizinhos reagiam à sua alma de caçadora! Jovial e faladeira, sempre a tratar da vida de casa e do amanho da horta! Se, entre a vizinhança, havia alguns salamurdos dissimulados, que os levasse o diabo! Era mulher desenganada!       

Os dois primeiros filhos do casal, mais velhos que eu, para mim, já eram grandes, porque andavam na escola! Por isso, não podiam ser meus amigos! Tinham que arranjar outros companheiros, maiores que eu, para a brincadeira! O terceiro, como tudo indicava, devia ser da minha idade; e foi o meu primeiro amigo! Era o único que tinha conhecido até então que me parecia ser como eu! Por isso, não admirava!
A aleatoriedade obscura da vida, infelizmente — ou felizmente! — incognoscível para o ser humano, juntou ali as nossas famílias em cujo seio nós surgimos. E assim, mal nasci, dei de caras com o Emílio. Dei de caras, é um modo de dizer porque, na verdade, terá sido, quando comecei a botar consciência e a usá-la para me meter com o mundo! Morávamos mesmo muito perto! Eu só tinha que atravessar a estreita rua de calçada antiga, para ambos irmos brincar para junto da parede da casa dele, onde as pedras do chão eram um bocadinho mais regulares. Quando não estávamos na rua, estava cada um em sua casa, mas podíamos ir para a janela e, por isso, estávamos sempre a ver-nos!
Eu tinha um quintal muito grande para brincar e ele não! Ele só tinha a rua! Por isso, eu convidava-o, muitas vezes, para ele ir brincar comigo no meu quintal! As nossas mães, uma vez, ataram duas pinhas de pinheiro bravo, abertas, uma em cada ponta de uma baraça comprida e disseram:
— Isto são duas vacas! São as vossas vacas! Agora puxem pela baraça, aí ao meio, e levem-nas a pastar! 
Nós assim fizemos. Arranjámos, dessa forma, a nossa primeira junta de vacas. E nunca mais tivemos outra como aquela! 
O nosso mundo era, portanto, muito pequeno. Era a nossa casa, a nossa rua e o meu quintal. Mas parecia-nos que os irmãos do Emílio, esses, já sabiam muito da vida! Conheciam a praça, lá em baixo, ao pé da igreja! Era lá que era a escola! Havia lá muitos meninos e meninas e eles tinham arranjado muitos amigos! Juntos, aprendiam imensas coisas e no recreio brincavam todos!
Apesar da pequenez do nosso cosmos, eu e o Emílio percebíamos o que se passava, porque ouvíamos as conversas dos grandes, à esquina! Pensavam que nós não compreendíamos nada do que diziam! Porém, nós íamos ouvindo e magicando como, afinal, faz qualquer adulto que tenha sonhos! E eles sempre a tratarem-nos como se fôssemos crianças…!  
Eu não conhecia a casa do Emílio. Da rua, só se viam as escadas de madeira que começavam no lumiar e subiam, subiam, até lá acima! Na parede, ao lado das escadas, havia uma porta que dava para a loja, onde se punha a lenha, a cabra, o borrego e o porco. Muitas pessoas, no entanto, só tinham algum ou alguns destes animais, conforme o que lhes dava mais jeito, porque davam muito trabalho; era preciso arranjar-lhes comida!
A cabra dava o leite; os outros era para morrerem, cada um quando chegasse a altura, como toda a gente, afinal! Nas festas de verão, morria o borrego; no inverno era escachado o porco e metido na salgadeira!
Das escadas para lá, era o mundo das pessoas maiores, da mãe e do pai do Emílio e dos irmãos. Mas, de certeza, que devia haver lá a lareira com o lume, a cozinha, os quartos e a sala! Isso, todas as casas tinham! Eu é que não sabia como eram porque nunca lá tinha ido! Pois, entretínhamo-nos sempre na rua ou no meu quintal e não podíamos sair desse espaço bem definido; as nossas mães não deixavam! E, por aquilo que diziam os adultos, nós compreendíamos que o mundo devia ser muito grande e hostil. Por isso, antes de tempo, não queríamos aventurar-nos!
Pois, uma vez, um rapaz mais velho passou na nossa rua e disse que tinha ido com outros até à estrada nova. Essa estrada era tão longe que ficava ainda mais para lá da praça e da igreja; e que, quando iam na tal estrada, tinham aparecido os estrangeiros num carro. Foi muito estranho ter aparecido ali aquele carro, porque era muito raro passarem carros na estrada! Só lá passava a camioneta da carreira, todos os dias, à hora certa, a apitar! Os estrangeiros — disse ele — queriam tirar-lhes o sangue e os órgãos e matá-los! Valeu-lhes terem fugido e desaparecerem por entre o mato e os bastos chaparros de pinheiro bravo que havia naquele sítio, lá para o pé da Escavação, na curva dos Pereiros.
Já, as nossas mães, também andavam sempre a advertir-nos para não sairmos de casa ou do quintal. Se andássemos às cegas, podíamos ir parar à Tapada do ti’ Chico Gabilês — do lado da Vila oposto à estrada nova — e os filhos dele andavam sempre lá a atirar pedras a quem passava no caminho e podiam partir-nos a cabeça! Logo, quanto a aventuras em qualquer ponto periférico da Vila, longe de onde costumávamos brincar, estávamos conversados! Porque todo o cuidado era pouco!

Eu e o meu amigo tínhamos um bibe que as nossas mães nos tinham feito para podermos brincar e não sujar a roupa, quando guardávamos as vacas e quando construíamos as casinhas com terra amassada, que tinham telhado e tudo; ou quando fazíamos festas ao Tejo e ao Mondego, dois dos cães de caça do pai do Emílio que eram muito mansos e com os quais nos divertíamos imenso a fazer-lhes diabruras. Os cachopos maiores, se não estavam na escola, também andavam, às vezes, na rua, a apanhar abelhas com moscas espetadas na ponta de carumas, a servir de isco.
Gerava-se ali uma grande algazarra com tanta gente que ali vivia! As nossas vizinhas, as filhas da ti’ Maria do Carmo, da ti’ Celeste, da ti’ Laurentina ou da ti’ Luz, perguntavam por nós às nossas mães.
— Onde estão os meninos, os crianços? — bradavam da janela!
Vinham, pegavam-nos ao colo com os pujantes braços de raparigas novas e casadoiras. E sentiam a criança que éramos, procurando, através de nós — como se crê que toda a mulher procura — o frémito e o desejo dos futuros filhos. Esperneávamos e tentávamos libertar-nos porque nos interrompiam a brincadeira. Elas, porém, bem se importavam! Ignoravam os nossos gritos, passavam-nos de umas para as outras, de abraço em abraço, assim como menino em mãos de bruxas, e beijocavam-nos, esmagando-nos a cara…!  
De maneiras que era assim…

Em determinado momento da sua vida, o Zé Rente, farto de andar todas as semanas para trás e para a frente, entre o trabalho dos teares e a Vila, deixou a casa de granito. Levou consigo a mulher e os filhos e foi morar para a Covilhã! Assim perdi, repentinamente, o meu amigo! As decisões alheias bolem, muitas vezes, com a nossa existência e apoquentam-nos! Mas, que havemos de fazer?!
Alguns anos mais tarde, chegou a vez de eu ir também aprender as primeiras letras e conhecer novos amigos! Eu e o Emílio nunca chegámos a andar na escola juntos. Ele tinha ido para a Covilhã e foi lá que começou a frequentá-la. Mas eu ainda fui tendo algumas notícias. A avó dele era a mulher do ti’ Chico das Petas e continuava a ser minha vizinha; pelas cartas que recebia da Covilhã, dizia que ele quase não precisava de estudar porque sabia sempre tudo o que a professora lhe perguntava.
— Era um rapazinho muito inteligente! — afirmava ela enlevada!

Num certo dia de manhã — um fatídico dia! — ouviu-se um alvoroço! A avó do Emílio, estava à porta de casa, ali ao pé da esquina, banhada em lágrimas, a gritar!
— Ai, meu Deus que desgraça! Ai que infortúnio o nosso! Ai! Nossa Senhora!
Perguntaram-lhe a razão de estar assim tão aflita e chorosa e ela procurava falar por ente os soluços.   
— Ai, meu Deus, o que nos aconteceu! A notícia veio pelo telefone dos correios! Vieram agora dar-me o recado! — lamentava-se a pobre mulher. — Ai! Meu Jesus! — gritava, tentando recompor-se da respiração ofegante, sentada na pedra do lumiar! — Ai, que infelicidade! Meu querido neto!
— O que foi que aconteceu com o seu neto, ti’ Maria de Jesus? — perguntavam.
— Ai! Houve uma corrida na escola dele, do meu neto, do Emílio! Ele sabia tudo na escola e, nas carreiras, ganhava sempre aos outros! Era muito esperto aquele meu neto! Ele ganhou a corrida e no fim foi beber água à fonte e morreu! Ai, Jesus! O meu neto, o meu netinho! Era o mais novo e o mais inteligente! Meu querido neto!
E assim se foi juntando muita vizinhança, especialmente as mulheres que ainda estavam em casa àquela hora, procurando reconfortar a desanimada avó na sua infinita dor! Pudera! A dor da perda de um neto é tão grande como a da perda de um filho! E não foi nada fácil consolarem-na!  
Mais tarde, quando tudo estava um pouco amenizado, disseram que o Emílio, para ganhar a corrida, fez um esforço grande e, em consequência disso, morreu; não por ter bebido água após a prova atlética, mas por causa de um sopro no coração; também disseram que tinha ido para o céu num caixão branco!
E eu nunca mais voltei a vê-lo…!


Nota 1 - Os factos aqui narrados têm um fundo de verdade, mas não são rigorosos, tendo servido, no essencial, para uma narrativa de ficção.  
Nota 2 - Como de costume, alerta-se para o facto de, neste texto, poderem ter sido usadas palavras ou expressões locais que não constam dos dicionários oficiais.

JOSÉ BARROSO